São Paulo, sábado, 22 de novembro de 2008

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ARTIGO

Lula compra sua 1ª "briga"

Ao chamar embaixador para consultas, presidente sinaliza que está pronto para radicalizar, contrariando estilo "paz e amor" nas relações internacionais

CLÓVIS ROSSI
COLUNISTA DA FOLHA

ERA UMA VEZ um tempo em que o presidente Luiz Inácio Lula da Silvia dizia: "Se eu não briguei com o Bush, não vou brigar com ninguém".
Esse tempo acabou ontem, no momento em que Lula instruiu o chanceler Celso Amorim a chamar para consultas o embaixador brasileiro em Quito, Antonino Marques Porto, no que equivale, para usar a linguagem do próprio presidente, a brigar com Rafael Correa, o presidente equatoriano.
Não deixa de ser uma ironia que o presidente que não brigou com Bush, teoricamente seu antípoda ideológico, entre em conflito justamente com um mandatário com o qual tem afinidades ideológicas, na medida em que Correa faz parte da leva de governantes de esquerda/centro-esquerda que se elegeram na América do Sul neste século, ainda que a maioria deles tenha adotado políticas que só uma licença poética poderia chamar de esquerdistas.
Mas a divergência com Correa não é de conteúdo, é de forma. Traduzindo: o governo brasileiro não questiona o direito de Correa de contestar o empréstimo de US$ 243 milhões contraído no BNDES -o motivo da "briga".
Mas diverge radicalmente da forma como foi feita a operação. Correa não teve a delicadeza básica de telefonar para Lula ou para o Ministério brasileiro das Relações Exteriores para consultar ou, pelo menos, avisar que estava recorrendo à arbitragem internacional para tentar não pagar o empréstimo.
"Os telefones em Quito funcionam", ironiza, por exemplo, Marco Aurélio Garcia, o assessor internacional do presidente Lula e interlocutor assíduo dos governantes sul-americanos.

Em outra moeda
O que irrita Lula é o fato de que o seu governo tratou Correa -e todos os demais governantes sul-americanos, de direita, de esquerda, de centro, de centro-esquerda- com o máximo de atenção, cortesia e disposição para ouvir queixas e tentar resolvê-las.
A atenção e a cortesia foram ainda maiores para com presidentes de países mais pobres (Bolívia, principalmente).
"Se um governo amigo nos trata dessa maneira, como seria o comportamento de um governo inimigo, se o tivéssemos?" -indaga Marco Aurélio.
O antecedente mais próximo da situação agora criada com o Equador foi a nacionalização do gás na Bolívia, pouco depois da posse de Evo Morales. Não pela nacionalização em si, que Lula disse ter entendido perfeitamente, mas pela maneira como Morales se comportou em seguida: deu uma entrevista coletiva em Viena, à margem da cúpula União Européia-América Latina e Caribe, para criticar duramente o Brasil e a Petrobras, enquanto Lula viajava de Brasília para Viena.
O presidente brasileiro, antes de responder, pediu a fita da entrevista, para não basear-se em interpretações dos jornalistas. Quando se encontrou com o colega boliviano, no dia seguinte, avisou: "Não ponha uma espada na minha cabeça para negociar".
Evo Morales pôs a espada de lado, embora as divergências Brasil/Bolívia continuem em muitos pontos, mas todos sendo tratados em negociações nas quais o governo brasileiro não tem sido surpreendido, ao contrário do que ocorreu com Rafael Correa agora.
Exatamente pela falta de antecedentes, é difícil antecipar o que acontece agora que Lula resolveu "brigar" pela primeira vez em seus praticamente seis anos de governo.
Mas, no governo brasileiro, o que se diz é que a bola está com Correa. Cabe a ele o próximo gesto, se de apaziguamento ou de radicalização.
Ao chamar o embaixador em Quito a Brasília para consultas, Lula está implicitamente avisando que está pronto para radicalizar também, contrariando o estilo "paz e amor", que adotou para vencer a eleição em 2002 e ampliou para as relações internacionais.


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