São Paulo, domingo, 23 de janeiro de 2011

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MARCO AURÉLIO GARCIA

Brasil não vai ser alto-falante sobre direitos humanos

Assessor de Dilma Rousseff afirma que o tema será definido na prática, sem criar "tribunal de opiniões"

CLAUDIA ANTUNES
ENVIADA A BRASÍLIA

Os responsáveis pela política externa do governo Dilma ainda tateiam para pôr em prática a orientação da presidente de dar prioridade aos direitos humanos sem agir de modo seletivo, revela entrevista à Folha de Marco Aurélio Garcia, assessor internacional do Planalto.
O Brasil vai "trabalhar melhor as coisas" nesse tema, mas não será um "alto-falante giratório que vai denunciar todas as violações" nem um "tribunal de opiniões" sobre países árabes e africanos.
No Planalto desde 2003, Garcia elevará sua equipe de 5 para 7 pessoas, para ir além do dia a dia e ter uma "sofisticação maior na reflexão".

Como será o estilo Dilma de diplomacia presidencial? Marco Aurélio Garcia - Será, à sua maneira, um estilo muito ativo. Ela tem um interesse muito grande pelos temas internacionais. A Dilma tem uma gigantesca curiosidade intelectual.


Folha - No Haiti, há pressão de EUA e França para que o presidente Préval aceite o relatório da OEA (Organização dos Estados Americanos), que concluiu que o candidato governista deve ficar fora do 2º turno. Qual é a posição brasileira?
França e EUA podem fazer declarações, mas quem está no Haiti somos nós. Nosso embaixador [Igor Kipman] tem conversado com o governo e ponderado a necessidade de chegarmos a uma solução. Essa solução passaria pela aceitação do relatório.
Mas o relatório não pode ser entendido como coisa imposta. O Haiti tem instituições, e a primeira delas é o Conselho Eleitoral. Temos que pensar com base no respeito à soberania nacional.


O Brasil não tem reservas sobre o conteúdo do relatório?
As informações que nós temos são que o relatório é um retrato bastante aproximado [da votação].


Na nota de Dilma em resposta à carta da parlamentar iraniana, foi dito que o governo tratará os direitos humanos de maneira prioritária, mas de forma não seletiva e não discriminatória. Como será na prática?
A prática é que vai nos mostrar. Temos que trabalhar com cuidado.
A ênfase que a presidenta deu não significa que ela está propondo transformar o Brasil num alto-falante giratório que vai denunciar todas as violações todo o tempo com igual intensidade.
No dia em que ela me convidou para permanecer nas funções, disse: vamos denunciar isso [apedrejamento de mulheres no Irã], mas vamos denunciar Guantánamo, Abu Ghraib [prisão americana no Iraque em que presos foram torturados].


O Brasil vai se pronunciar sobre esses casos?
Ela [Dilma] mencionou concretamente que tinha ficado contrariada com o voto na Terceira Comissão [da ONU, quando o Brasil se absteve em resolução que condenou violações no Irã]. Vamos ter, e isso é um debate que já existia no Itamaraty, de fazer com que as coisas sejam melhor trabalhadas.
Alguns países, porque têm um critério seletivo, apresentam um prato pronto contra determinados países, não por acaso sempre do Sul do mundo.

A questão é como o Brasil vai lidar com isso.
Uma questão é o próprio procedimento na apresentação dessas moções. Se alguém quer fazer propaganda, politização seletiva, não é um bom caminho.
Podemos pensar em negociar uma resolução que seja equilibrada ou apresentar uma outra.


O tema deve surgir na Aspa (Cúpula América do Sul-Países Árabes), em fevereiro. Tivemos o caso da Tunísia, com manifestantes mortos. O Brasil soltou uma nota branda.
Se você acha que nós vamos transformar as reuniões da Aspa num tribunal dos países árabes, é melhor não realizar as reuniões.
Se fizermos isso, e, depois, na reunião América do Sul-África, fizermos juízo sobre os governos da África, é melhor constituirmos um grande tribunal de opiniões.
No caso da Tunísia, a prudência das notas correspondia à flutuação da situação.


A Turquia sediou nova reunião entre o Irã e as potências. O Brasil se manterá ativo na mediação da questão nuclear iraniana?
A atividade da Turquia, que tem sido discutida e acordada com o Brasil, está se dando pela cessão do território. A Turquia não participa da negociação. Acho até que seria positivo que Turquia e Brasil participassem.


Dilma foi convidada a visitar o Irã. Ela vai?
Ela já foi convidada a x países. Estamos avaliando as viagens de primeiro ano, e está mais concentrado na América do Sul, na China, nos EUA. Ela vai à Bulgária, talvez na ida vá à Turquia.


O que há de novidade na pauta com a Argentina, que Dilma visita no dia 31?
Há uma discussão de acelerarmos a integração produtiva em alguns setores, entre os quais o automotriz, onde nos dois países houve certa desnacionalização da produção de autopeças.
A segunda questão está ligada ao pré-sal. Queremos agregar valor ao petróleo e teremos de desenvolver uma parafernália industrial gigantesca na região. Queremos que a América do Sul seja um polo deste novo mundo multipolar que se forma.


A presidente conversou na posse com o colombiano Juan Manuel Santos sobre o ingresso no Mercosul. Isso se confirma?
Vou à Colômbia em fevereiro. Esse tema está na agenda há tempos. O presidente Santos dá a impressão de querer mudar radicalmente a agenda da Colômbia.


Nos telegramas do WikiLeaks, a embaixada americana fala que o Brasil tem uma "necessidade quase neurótica" de ser reconhecido como igual. Os EUA levam o Brasil a sério como o país gostaria de ser levado?
Não sei se levam e não estou preocupado. Há, em alguns casos, uma enorme distorção na preparação desses informes. Os meus são melhores, entre outras coisas porque despossuídos desse psicologismo vulgar.


O embaixador Thomas Shannon fala em levar adiante uma agenda positiva, por exemplo em biocombustíveis. Como isso caminha?
Parou um pouco, e tem de ser retomado. Mas, quando falo em agenda positiva no sentido de coisas concretas, não quero dizer que vamos esquecer problemas de natureza política.
Temos problemas políticos a discutir, entre eles o relacionamento com a América do Sul.
Por que essa relação tem de estar sempre mediada por ideólogos? Por que a política externa americana tem que ser tão ideológica? A nossa é muito mais realista.


A China é acusada de pretender uma relação neocolonial com África, América Latina...
Uma relação neocolonial só se estabelece se colonizador e colonizado estão de acordo.
Da mesma forma que China e EUA usam instrumentos de política interna que têm incidência sobre a política externa, por exemplo no câmbio, nós podemos fazê-lo. A diferença hoje é que não vem ninguém dizer como é que tem que ser nossa política macroeconômica. Nós decidimos.


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