São Paulo, domingo, 23 de abril de 2006

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TEORIA DO PODER

Debate nos EUA expõe as rachaduras de um sistema que tem a perigosa capacidade de autodestruição

Até onde o desejo democrático é confiável?

EDWARD ROTHSTEINE
DO "NEW YORK TIMES"

Tenha cuidado com o que você deseja, especialmente quando se trata de política. Deseje eleições democráticas, e você pode receber uma tirania eleita e terror. Deseje um debate político, e pode ganhar partidos polarizados e um eleitorado dividido. Deseje reação do governo à vontade popular, e pode receber uma liderança que age seguindo pesquisas de opinião. Deseje um líder que é estadista, e pode receber demagogia.
Uma tentação poderia ser não desejar nada em especial, mas então quem sabe o que seria capaz de acontecer? A dificuldade parece consistir na própria natureza da liderança política num Estado democrático. Um líder democrático é, pelo menos em parte, uma contradição. Um líder fica à frente daqueles que são liderados, mas o que se supõe é que um líder democrático também seja um seguidor, alguém que obedece à vontade da população.
Nenhuma dessas posições é destituída de perigos. Em vista dos exemplos existentes de expressões perversas da vontade popular -os terrores da Revolução Francesa, o nazismo, o Hamas-, como podemos simplesmente confiar no sentimento democrático? E, em vista de exemplos semelhantes de demagogia, como é possível acreditar na tirania esclarecida?
Questões dessa natureza, tão relevantes nos EUA e na Europa quanto no Iraque, inspiraram uma conferência na Universidade Yale neste mês, organizada pelo cientista político Steven Smith, com o apoio de seu colega Bryan Garsten, sob o título "Estadistas e Demagogos: a Liderança Democrática no Pensamento Político". Entre os participantes estavam o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso e o cientista político francês Pierre Hassner.
A conferência também foi um reflexo da crença de Smith em que as perguntas do mundo acadêmico sobre a natureza da liderança política não são tão plenamente exploradas quanto deveriam ser.
Smith disse que isso acontece em parte devido a uma tendência presente há muito tempo de enxergar a política como reflexo de forças econômicas ou históricas supostamente mais profundas. Mas a compreensão da natureza da capacidade de governar também requer uma reflexão sobre os poderes de indivíduos notáveis.
O que acontece, por exemplo, em países em desenvolvimento em que a democracia e a demagogia disputam o poder? Quando surgiram as idéias que temos sobre demagogia e liderança? E em que diferem alguns exemplos de liderança política admirada de outros exemplos de tirania ou demagogia? Não basta apresentar fórmulas simples. Afinal, Lincoln suspendeu o habeas corpus durante a Guerra Civil, mas atribui-se a ele a preservação da Constituição. Hitler frequentemente é descrito como demagogo que difundiu teorias sobre conspirações judaicas com o intuito de mobilizar o apoio público -no entanto, como argumentou o historiador Jeffrey Herf, não se tratava de demagogia pura, porque Hitler acreditava nessas teorias.
"Um estadista" - comentário de Harry S. Truman citado mais de uma vez durante os dois dias de debates - "é um político morto há dez ou 15 anos". Será que é simplesmente uma questão de gosto político? Será que quem é estadista para uma pessoa pode ser demagogo para outra? As discussões deixaram isso claro: as coisas não se resumem a isso.
Os participantes receberam para ler uma cópia do discurso feito por Lincoln no Lyceum em 1838, no qual o futuro presidente condenou a violência das turbas e os linchamentos raciais, mas também falou sobre a tensão entre uma ordem constitucional e indivíduos ambiciosos que buscam transcender suas restrições. Esses desafiadores, escreveu Lincoln, aspiram a grandeza e parecem vir "da família do leão ou da tribo da águia". Como faz uma ordem democrática para conter tal ambição, e como tal ambição pode ser satisfeita numa democracia?
Não se trata de uma tensão incidental na vida política democrática: ela pode ser a tensão essencial, aquela que define os riscos e as possibilidades da democracia.
A atuação do estadista passa a ser associada não a visões grandiosas, mas à operação prática das coisas. Não surpreende que a liderança democrática forte seja tão difícil de manter e que seja algo historicamente tão raro: a democracia desencoraja o poder, através da negociação, do debate e do contínuo confronto de vontades.
Existem perigos encerrados também nisso. Se a sociedade não aceitar o princípio da discordância, sua liderança não será democrática, não importa quais sejam suas origens. O leão e a águia continuarão a exercer uma atração tremenda, e o mesmo acontecerá com as tentativas de aleijá-los. Seja como for, a democracia não oferece virtudes, mas uma luta. A virtude requer algo diferente.


Tradução de Clara Allain

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