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TEORIA DO PODER
Debate nos EUA expõe as rachaduras de um sistema que tem a perigosa capacidade de autodestruição
Até onde o desejo democrático é confiável?
EDWARD ROTHSTEINE
DO "NEW YORK TIMES"
Tenha cuidado com o que você
deseja, especialmente quando se
trata de política. Deseje eleições
democráticas, e você pode receber uma tirania eleita e terror. Deseje um debate político, e pode ganhar partidos polarizados e um
eleitorado dividido. Deseje reação
do governo à vontade popular, e
pode receber uma liderança que
age seguindo pesquisas de opinião. Deseje um líder que é estadista, e pode receber demagogia.
Uma tentação poderia ser não
desejar nada em especial, mas então quem sabe o que seria capaz
de acontecer? A dificuldade parece consistir na própria natureza
da liderança política num Estado
democrático. Um líder democrático é, pelo menos em parte, uma
contradição. Um líder fica à frente
daqueles que são liderados, mas o
que se supõe é que um líder democrático também seja um seguidor, alguém que obedece à vontade da população.
Nenhuma dessas posições é
destituída de perigos. Em vista
dos exemplos existentes de expressões perversas da vontade
popular -os terrores da Revolução Francesa, o nazismo, o Hamas-, como podemos simplesmente confiar no sentimento democrático? E, em vista de exemplos semelhantes de demagogia,
como é possível acreditar na tirania esclarecida?
Questões dessa natureza, tão relevantes nos EUA e na Europa
quanto no Iraque, inspiraram
uma conferência na Universidade
Yale neste mês, organizada pelo
cientista político Steven Smith,
com o apoio de seu colega Bryan
Garsten, sob o título "Estadistas e
Demagogos: a Liderança Democrática no Pensamento Político".
Entre os participantes estavam o
ex-presidente Fernando Henrique Cardoso e o cientista político
francês Pierre Hassner.
A conferência também foi um
reflexo da crença de Smith em que
as perguntas do mundo acadêmico sobre a natureza da liderança
política não são tão plenamente
exploradas quanto deveriam ser.
Smith disse que isso acontece
em parte devido a uma tendência
presente há muito tempo de enxergar a política como reflexo de
forças econômicas ou históricas
supostamente mais profundas.
Mas a compreensão da natureza
da capacidade de governar também requer uma reflexão sobre os
poderes de indivíduos notáveis.
O que acontece, por exemplo,
em países em desenvolvimento
em que a democracia e a demagogia disputam o poder? Quando
surgiram as idéias que temos sobre demagogia e liderança? E em
que diferem alguns exemplos de
liderança política admirada de
outros exemplos de tirania ou demagogia? Não basta apresentar
fórmulas simples. Afinal, Lincoln
suspendeu o habeas corpus durante a Guerra Civil, mas atribui-se a ele a preservação da Constituição. Hitler frequentemente é
descrito como demagogo que difundiu teorias sobre conspirações
judaicas com o intuito de mobilizar o apoio público -no entanto,
como argumentou o historiador
Jeffrey Herf, não se tratava de demagogia pura, porque Hitler
acreditava nessas teorias.
"Um estadista" - comentário
de Harry S. Truman citado mais
de uma vez durante os dois dias
de debates - "é um político morto há dez ou 15 anos". Será que é
simplesmente uma questão de
gosto político? Será que quem é
estadista para uma pessoa pode
ser demagogo para outra? As discussões deixaram isso claro: as
coisas não se resumem a isso.
Os participantes receberam para ler uma cópia do discurso feito
por Lincoln no Lyceum em 1838,
no qual o futuro presidente condenou a violência das turbas e os
linchamentos raciais, mas também falou sobre a tensão entre
uma ordem constitucional e indivíduos ambiciosos que buscam
transcender suas restrições. Esses
desafiadores, escreveu Lincoln,
aspiram a grandeza e parecem vir
"da família do leão ou da tribo da
águia". Como faz uma ordem democrática para conter tal ambição, e como tal ambição pode ser
satisfeita numa democracia?
Não se trata de uma tensão incidental na vida política democrática: ela pode ser a tensão essencial,
aquela que define os riscos e as
possibilidades da democracia.
A atuação do estadista passa a
ser associada não a visões grandiosas, mas à operação prática das
coisas. Não surpreende que a liderança democrática forte seja tão
difícil de manter e que seja algo
historicamente tão raro: a democracia desencoraja o poder, através da negociação, do debate e do
contínuo confronto de vontades.
Existem perigos encerrados
também nisso. Se a sociedade não
aceitar o princípio da discordância, sua liderança não será democrática, não importa quais sejam
suas origens. O leão e a águia continuarão a exercer uma atração
tremenda, e o mesmo acontecerá
com as tentativas de aleijá-los. Seja como for, a democracia não
oferece virtudes, mas uma luta. A
virtude requer algo diferente.
Tradução de Clara Allain
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