São Paulo, domingo, 23 de maio de 2004

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SEXUALIDADE

David Reimer, que se matou em abril, fez de seu drama bandeira contra o realinhamento sexual de crianças

Homem criado como mulher vira herói

ROBERTA RAMPTON
DA REUTERS, EM WINNIPEG, CANADÁ

Um canadense criado como menina após sofrer uma circuncisão malfeita está sendo tratado como um herói cuja tragédia pode poupar outras crianças de cirurgias de manipulação de sexo.
Ele cometeu suicídio neste mês, aos 38 anos, depois de ter vivido primeiro como Bruce, depois como Brenda e em seguida como David, suportando sofrimentos em série -o último foi ver a economia de toda sua vida evaporar no investimento de um amigo.
David Reimer nasceu menino, mas foi transformado em menina aos dois anos, após seu pênis ter sido destruído em uma circuncisão feita por uma pessoa inexperiente usando um cauterizador.
Num primeiro momento, a vida de Reimer foi descrita como história bem-sucedida, sendo objeto do primeiro estudo documentado de realinhamento sexual de uma criança cujos sexo, hormônios e cromossomos eram todos masculinos. Durante mais de duas décadas ele foi descrito em textos médicos como prova viva de que o gênero pode ser determinado pela maneira como uma criança é criada -ou seja, a vitória da criação sobre a natureza.
Mas Reimer chocou o mundo em 1997, ao levar a público sua jornada dolorosa para transformar-se novamente no homem que sempre sentira que devia ser.
"Ele jogou por terra ao menos parte daqueles mitos segundo os quais basta colocar alguém num quarto azul ou cor-de-rosa para que se torne menino ou menina", disse Milton Diamond, pesquisador sexual da Universidade do Havaí que foi o primeiro a documentar o experimento fracassado em detalhes. "Ele foi um herói. Agüentou tanta coisa e conseguiu sobreviver. Pelo menos eu pensava que estivesse conseguindo."
Depois de o pesquisador sexual John Money, do Hospital Johns Hopkins (Baltimore), publicar em 1972 os resultados de seu trabalho com Reimer, a cirurgia e o condicionamento se tornaram o tratamento padrão para crianças cujos órgãos genitais tinham sido danificados ou apresentavam ambigüidades causadas por condições hormonais ou de cromossomos. Ativistas acreditam que até 2% das crianças nasçam apresentando características reprodutivas de ambos os sexos, condição que dificulta ou impossibilita a determinação de seu sexo.
Reimer passou 14 anos vivendo como menina, com o nome de Brenda, mas se revoltava constantemente por sentir que não era do sexo feminino. Em entrevista concedida à Reuters em 2000, disse que se via como assexuado.
Quando tinha 15 anos e seus pais lhe contaram a verdade, ele começou a vestir-se como rapaz. Nos anos subseqüentes, submeteu-se a cirurgias para reconstruir seu pênis e retirar os seios que desenvolvera com a ajuda de hormônios. Além disso, mudou seu nome para David.
"Meu caso lembrava o do sujeito que tinha tudo contra ele, alguém enfrentando um gigante de três metros de altura", disse Reimer a John Colapinto no livro de 2000 "As Nature Made Him: The Boy Who Was Raised as a Girl" (como a natureza o fez -o menino que foi criado como menina).
Durante anos, Reimer levou em Winnipeg uma vida tranqüila, centrada em sua família. Ele se casou e, embora não pudesse ter filhos próprios, adotou os três filhos de sua mulher. Mas ficou estarrecido ao descobrir que outras crianças tinham passado por um trauma semelhante, em parte devido ao suposto êxito de seu caso.
"Quando o conheci, Reimer não se dava conta do que ele representava no mundo científico e médico", contou Diamond. "Ele ficou pasmo. Disse: "Precisamos fazer alguma coisa para pôr fim nisso"."
Reimer passou a relatar sua história a jornalistas e pesquisadores, tentando salvar outras pessoas da mesa de cirurgia. Diamond e um colega publicaram o primeiro relato do fracasso do tratamento de Reimer em um periódico médico em 1997. Outros artigos vieram depois, incluindo um de Colapinto publicado na revista "Rolling Stone".
"Essa passou a ser sua missão na vida: esclarecer o mundo para que os médicos se abstivessem de usar a faca, pelo menos até a criança ter idade suficiente para tomar suas próprias decisões", contou a mãe de Reimer, Janet, em entrevista à rede de televisão CBS.
A família e os amigos de Reimer sabiam que ele estava deprimido desde o suicídio de seu irmão gêmeo idêntico, dois anos atrás. Recentemente, ele se separara e perdera suas economias num esquema de investimento fracassado.
Mas, na última vez que Reimer falou com Diamond, poucos dias antes de se matar com um tiro, na semana passada, ele citou apenas recordações breves de sua infância. "A depressão se devia mais a coisas antigas do que às mais recentes. As coisas recentes foram apenas a gota d'água que fez o copo transbordar", disse Diamond.
Hoje, segundo Diamond, os médicos abordam a possibilidade de cirurgia com mais cautela. Mas o pesquisador quer a suspensão total das operações desse tipo, pedido repetido por ativistas. "Minha posição é: "Criem as pessoas como meninos ou meninas, como vocês acharem melhor, mas mantenham o maldito bisturi longe"."
De acordo com Melvin Grumbach, endocrinologista pediátrico da Universidade da Califórnia em San Francisco, com o passar dos anos os especialistas foram se tornando mais hábeis no diagnóstico e no tratamento de crianças de gênero ambíguo. "Hoje somos muito menos dogmáticos do que antes e temos muito mais consciência das limitações da tentativa de prever um fator determinista na identidade sexual", disse.
Grumbach acha que a sexualidade se tornou um tabu menor do que no passado, o que facilita a discussão de opções pelos especialistas e as famílias envolvidas. Em alguns casos, disse ele, as cirurgias de determinação sexual apresentam resultados melhores quando realizadas na primeira infância. "Procuramos fazer o melhor possível por essas crianças, mas é complicado", concluiu.


Tradução de Clara Allain


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