São Paulo, domingo, 23 de junho de 2002

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TURBULÊNCIA CONTINENTAL

Frustração põe em xeque a combinação de democracia e reformas econômicas, base dos anos 90

Crise derruba "otimismo histórico" da AL

CLÓVIS ROSSI
COLUNISTA DA FOLHA

Argentina e Brasil ocupam nesta semana os dois primeiros lugares no triste campeonato mundial de risco-país, medido pela empresa financeira J. P. Morgan, dos Estados Unidos.
É apenas o mais espetacular indício, embora não necessariamente o mais relevante, de que a América Latina está de volta aos velhos maus tempos, tempos de crise, de instabilidade e de dor.
Avalia, por exemplo, o uruguaio Francisco Panizza, especialista em América Latina da prestigiosa LSE (London School of Economics): "A mudança mais importante dos últimos anos foi a perda do otimismo histórico sobre as perspectivas oferecidas pela combinação de democracia política, reformas econômicas e integração regional que caracterizou a América Latina na primeira metade da década passada".
As dores da crise são, de algum modo, proporcionais ao tamanho da frustração com a não-realização das promessas contidas na combinação apontada por Panizza.

Ilusão
Em fevereiro, a revista britânica "The Economist", já antecipando a crise, apontava como era o ânimo na região no início dos anos 90: "Em meio a um exuberante otimismo, a região abraçou a democracia, a abertura comercial e o livre mercado. Capitais externos choveram, houve um surto de crescimento econômico e a pobreza começou a cair".
A nova ilusão não durou muito. Quando os anos 90 terminaram, o crescimento econômico da região não havia passado de 3,3% ao ano, na média, do que resultou um aumento de magro 1,5% na renda per capita, igualmente na média anual.
Enquanto isso, a desigualdade -a chaga permanentemente aberta na pele do subcontinente- mantinha-se igual ou até piorava.
Se foi assim no passado imediato, o presente não é melhor.
Tome-se como exemplo o que diz o mais recente relatório sobre a situação econômica da América Latina/Caribe, preparado pela Cepal (Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe, órgão da ONU).
"A recuperação do ano anterior [2000] e as esperanças de que ela abrisse caminho para um novo ciclo de crescimento se truncaram com a forte desaceleração da economia mundial em 2001."
Consequência: "A economia regional cresceu apenas 0,5% e as perspectivas de crescimento para o anos de 2002 não são alentadoras (1,1%)".
Corolário inevitável, sempre segundo a Cepal: "A pobreza tem afetado mais pessoas do que antes. Esse fenômeno foi reforçado pela persistente desigualdade na distribuição da renda, que subsiste na região, e pelas características do desempenho do mercado laboral, [que" foi relativamente incapaz de incorporar mão-de-obra à economia formal, razão pela qual aumentaram a informalidade e o desemprego".

Subdesenvolvimento
Tudo somado, o círculo virtuoso que se imaginava inaugurar com as reformas ditas liberais dos anos 90 não passou de ilusão: a América Latina continua presa ao mesmo círculo de ferro do subdesenvolvimento.
Contribui para o fim do que Panizza chama de "otimismo histórico" uma das características das recorrentes crises financeiras que sacudiram a região (e o mundo), conforme aponta Maria Antonieta Del Tedesco Lins, doutoranda em economia pela FGV-SP (Fundação Getúlio Vargas de São Paulo).
"As crises recentes aconteceram em momentos de relativo controle da inflação e até de fases de queda da instabilidade de preços", escreveu Maria Antonieta para o livro "Arquitetura Assimétrica" (do sistema financeiro internacional), que acaba de ser lançado pela Fundação Konrad Adenauer, o instituto de estudos da democracia cristã alemã.
Ou seja, a inflação, o demônio principal que assolou a América Latina nas décadas de 70 e 80, foi aparentemente domada ou controlada, sem que esse avanço significasse a abertura de um novo ciclo realmente virtuoso na região.
Pior: além de perder o otimismo, a América Latina "perdeu também a confiança dos chamados mercados, tanto do capital financeiro como dos que investem em produção", lamenta Francisco Panizza.
Tem razão: a Cepal acaba de informar que, de 1999 para o ano passado, o investimento direto na América Latina/Caribe diminuiu de US$ 105 bilhões para US$ 80 bilhões, interrompendo uma década de crescimento sem precedentes.
Não há, portanto, como escapar da sombria previsão de Panizza: "Pelo menos no curto e no médio prazo, vejo um futuro política e economicamente muito instável na região".


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