São Paulo, domingo, 23 de junho de 2002

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Encanto com neoliberalismo fica trincado

COLUNISTA DA FOLHA

Se a América Latina adotou um modelo único a partir dos anos 90, chamado de neoliberal ou de Consenso de Washington, a crise atual leva à inescapável tentação de concluir que o modelo fracassou.
É assim? Os especialistas divergem, mas coincidem em apontar problemas estruturais que, antes, foram minimizados ou até escondidos no auge do namoro com o modelo.
Gilberto Dupas, presidente do Instituto de Estudos Econômicos e Internacionais e professor da USP, acha que fracassou, sim, e não apenas na América Latina.
Dupas fez um estudo alentado sobre nove países, que representam uma economia somada de US$ 2,9 trilhões, e verificou que, em todos eles, houve "um aumento significativo da vulnerabilidade externa, porque importam mais do que podem exportar".
Entre os nove, estão três latino-americanos, exatamente os mais importantes (o Brasil, o México e a Argentina).
O caso do Mercosul é ilustrativo da tese de Dupas: mesmo no seu período de ouro, de 1992 a 1998, as exportações do bloco aumentaram 56%, mas as importações cresceram quase três vezes mais (146%). Consequência: "O déficit estrutural levou a crises em todos esses países, embora de forma diferente".
Francisco Panizza, da London School of Economics, matiza o fracasso: "Seria mais adequado falar de um crise de certos aspectos do modelo, combinada com sérias falhas em sua implementação".
Mas ele afirma, igualmente, que o modelo tem "problemas sistêmicos bastante claros: excessiva dependência do capital externo, aumento das desigualdades sociais e falta de políticas que promovam as mudanças tecnológicas e produtivas que tornem os países menos dependentes de exportações de matérias-primas".
Renato Baumann, diretor do escritório da Cepal em Brasília, vai um pouco na mesma direção. Primeiro, não concorda em chamar de neoliberal a política, por exemplo, do Brasil. "Um país em que a carga tributária chegou a 34% do PIB não é neoliberal", diz.
Depois, afirma que as economias latino-americanas foram colhidas por uma sucessão de crises, a partir da mexicana de 1994, justamente quando "estavam no meio do processo de reformas; foram colhidas no contrapé".
Mas Baumann também levanta um outro ponto que Panizza com certeza incluiria nos "problemas sistêmicos" do modelo: a sua aplicação universal, na Tailândia e na Argentina, no Uruguai e na Nigéria.
"A Cepal tem insistido sempre em que não se podem jogar no lixo questões ligadas à história de cada país e a traços concretos de cada sociedade", diz Baumann.
O empresário Roberto Teixeira da Costa, que já foi presidente do capítulo brasileiro do Ceal (Conselho de Empresários da América Latina) e acompanha permanentemente o cenário econômico regional e global, também não condena o modelo dito neoliberal.
"O modelo foi mal administrado. Na Argentina, por exemplo, os recursos obtidos com as privatizações sumiram", diz.
De todo modo, Teixeira da Costa admite que a crise da região põe na geladeira um dos pontos essenciais do modelo, que são as privatizações.
"O caso de Furnas é ilustrativo. Não havia ambiente para privatizá-la e tão cedo não haverá", afirma, citando o caso da empresa de energia cuja privatização foi suspensa.
O mais recente sinal de crise na América Latina ocorreu justamente por causa de privatizações na área de energia: o presidente do Peru, Alejandro Toledo, teve de voltar atrás depois de uma rebelião na região de Arequipa, a segunda cidade do país.
Para abalar ainda mais a saúde do modelo dito neoliberal, os seus inspiradores, os Estados Unidos, trocaram de prioridade depois dos atentados de 11 de setembro contra o país.
Antes, eram a economia e o comércio. Agora, é a segurança.
"Com isso, agrava-se o potencial de crises, porque o FMI é menos ativo nelas", diz Gilberto Dupas.
A agonia da Argentina, sem que o FMI fique comovido, demonstra a tese de Dupas. (CR)


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