São Paulo, terça-feira, 23 de outubro de 2007

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ARTIGO

Argentina enterra ciclo histórico

NEWTON CARLOS
ESPECIAL PARA A FOLHA, DE BUENOS AIRES

Voto em Cristina não porque goste, mas porque não há outro.
Esse tipo de comentário, colhido na rua, em Buenos Aires, dá a medida do vácuo político na Argentina de hoje. Graus a mais de degradação num país com antecedentes de primeira grandeza. O voto é secreto na Argentina desde 1912. Numa espécie de "revolução burguesa", caso único na América Latina dos anos dez do século passado, eleitores urbanos tiraram a oligarquia do poder por meio das urnas. Hipólito Yrigoyen ganhou duas vezes a Presidência como herói de uma classe média que se tornara protagonista.
Com uma economia entre as maiores do mundo e mobilidade social, a Argentina parecia um pedaço da Europa. Georges Clemanceau mostrou-se admirado com o que viu em Buenos Aires e deixou isso registrado em livro. O crash de 1929 foi mortal, a começar pelo golpe contra Yrigoyen, primeiro ato do que passaria à história como a "década infame", a dos anos 30, das intervenções militares, até que os "descamisados" se jogassem nos braços do populismo peronista. A classe média foi perdendo peso para os párias da industrialização.
Mas se esgotaram os recursos acumulados com as vendas de produtos agrícolas na Segunda Guerra, a economia enfraqueceu e o peronismo ficou sem caixa. A reversão foi brutal, em meio a disputas dentro dos quartéis. Com o golpe de 1976, além de milhares de assassinatos, pela primeira vez foi montado um projeto antiperonista "coerente". Assumiu o comando da Economia Martínez de Hoz, de família oligarca, com raízes profundas no campo conservador. Segundo o Centro de Pesquisas Sociais, seu projeto produziu "fraturas na evolução da sociedade argentina". Ou seja, a pobreza se espraiou.
A outrora pujante classe média argentina tornou-se estatística dos "novos pobres".
Isto e uma dívida externa astronômica puseram contra a parede a redemocratização, até que a Argentina faliu e um presidente foi enxotado da Casa Rosada com o povo nas ruas e repressão sangrenta. Antes, Carlos Menem botou o peronismo nos trilhos do neoliberalismo, dando seqüência à desmontagem que teve sua etapa mafiosa com Isabelita e o "brujo" López Rega. Na era Kirchner, o peronismo é uma colcha de retalhos sem condutores que possam expressar-se em nome de um movimento nacional. A velha União Cívica Radical, com raízes no século 19, legenda de Yrigoyen e votos de uma classe média que fez história, desintegrou-se depois de longa sobrevivência como contraponto do peronismo.
Um dos seus é vice de Cristina, o que sobrou apóia disfarçadamente candidato de outra legenda. Kirchner quer liderar a criação de um movimento nacional "plural", inspirado na Concertação chilena. Espécie de reconstrução política da Argentina, sob o comando do casal, é claro. Mas o Chile tem partidos políticos fortes, estruturados, e a Argentina não. Por isso Cristina fala em pacto social e não em pacto politico. Os primeiros tijolos seriam colocados conjuntamente por empresários e trabalhadores. Quanto à existência e funcionamento de uma oposição de fato, trata-se de área cinzenta.


O jornalista NEWTON CARLOS é analista de questões internacionais


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