UOL


São Paulo, domingo, 23 de novembro de 2003

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

ENTREVISTA

Presidente quebra tradição americana de fazer alianças por pensar que EUA são poderosos demais, segundo Ivo Daalder

Bush revoluciona ação externa, diz analista

MÁRCIO SENNE DE MORAES
DA REDAÇÃO

Após o 11 de Setembro, o presidente George W. Bush foi responsável por uma revolução na política externa americana, desprezando a política de alianças que caracterizava o país e privilegiando a idéia de que os EUA são tão poderosos que não precisam da ajuda de ninguém na cena global.
A análise é de Ivo Daalder, pesquisador do Instituto Brookings, em Washington, autor -ao lado de James Lindsay- de "America Unbound: The Bush Revolution in Foreign Policy" (América sem amarras: a revolução de Bush na política externa) e ex-membro do Conselho de Segurança Nacional dos EUA (1995-96).
Para ele, o paradoxo dessa revolução é que, embora seja baseada no fato de que os EUA são a única superpotência do planeta e tenha como objetivo consolidar o poder americano, ela tem minado esse poder por conta dos métodos utilizados pela atual administração para colocá-la em prática.
Leia a seguir trechos de sua entrevista, por telefone, à Folha.

Folha - De acordo com seu livro, o 11 de Setembro permitiu que a administração Bush realizasse uma revolução na política externa dos EUA. Como isso ocorreu?
Ivo Daalder -
A idéia básica é que Bush lançou uma revolução na política externa americana. Porém ela não diz respeito aos objetivos que a América pretende atingir, mas aos meios utilizados para chegar a esses objetivos.
Estes são bastante similares aos que tinham todos os outros presidentes americanos. Ou seja, privilegiar os interesses americanos na cena global, conduzindo o mundo em direção aos interesses dos EUA e fazendo com que mais pessoas compartilhem os valores econômicos e políticos americanos. Um mundo mais livre e mais pacífico. Mas isso não é novo.
A verdadeira revolução diz respeito aos meios usados para chegar lá e à certeza de que a América atual é tão poderosa que pode atingir seus objetivos sozinha, sem o auxílio de seus aliados tradicionais, e de que, na verdade, as instituições, alianças e leis internacionais criadas nos últimos 60 anos são obstáculos no que concerne a atingir esses objetivos.
Para a atual administração, uma América sem amarras é um lugar mais seguro. Assim, a "melhor forma" de maximizar a segurança do país é minimizar as restrições que pesam sobre seu governo.
Isso é uma mudança radical em relação ao modo de agir dos outros presidentes dos EUA do pós-guerra. Afinal, os predecessores de Bush realmente acreditavam que fosse importante trabalhar ao lado de seus amigos e aliados nas instituições transnacionais.
O atual presidente crê que essas instituições impeçam a realização de seus objetivos. Na última quarta-feira, Bush deu um exemplo claro de seu modo de pensar ao dizer que a Liga das Nações [precursora da ONU] fracassou porque não conseguiu enfrentar ditaduras. Ele esquece, contudo, que a Liga das Nações fracassou porque os EUA não faziam parte dela.
Em seguida, Bush afirmou que a ONU tinha se tornado tão irrelevante quanto a Liga das Nações porque não conseguira enfrentar seus desafios. De novo, ele disse uma inverdade, já que foram os EUA que contornaram a ONU, tornando-a menos relevante.

Folha - Esse modo de agir na cena internacional é diferente do realismo do ex-secretário de Estado Henry Kissinger (1973-77)?
Daalder -
Sim. Kissinger sabia que era preciso trabalhar ao lado dos outros países ou, ao menos, dos aliados dos EUA. É verdade que, em parte, ele pensava assim porque não acreditava que o país fosse suficientemente poderoso para atingir seus objetivos só.
Até certo ponto, ademais, os realistas vêem as instituições internacionais como convenientes. Todos os realistas, sobretudo os americanos, crêem que o melhor modo para aumentar o poder dos EUA seja a formação de alianças.
Mesmo Ronald Reagan [1981-89], Richard Nixon [1969-74] e George Bush [1989-93] pensavam dessa forma. Provas disso são as enormes diferenças entre a Guerra do Golfo [1991] e a Guerra do Iraque [2003] no que se refere às instituições transnacionais.

Folha - Em sua opinião, as pessoas mais influentes no governo não são os neoconservadores, mas os conservadores. Por quê?
Daalder -
Diferentemente do que pensa a maioria das pessoas, não acredito que a noção de que Bush é uma marionete nas mãos das forças obscuras de sua administração seja verdadeira.
Não é verdade que ele não manda nada. As pessoas que pensam que ele não pode comandar seu governo porque não sabe muito estão enganadas. É errado pensar que quem realmente controla o governo são seus conselheiros porque eles são muito mais cultos e inteligentes que o presidente.
Por outro lado, os conselhos que ele mais ouve são os dos nacionalistas autoritários [conservadores tradicionais], como Donald Rumsfeld [secretário da Defesa] e Dick Cheney [vice-presidente], não os dos imperialistas patrióticos [neoconservadores], como Paul Wolfowitz [subsecretário da Defesa] e Richard Perle [do Conselho de Políticas de Defesa do Pentágono]. Afinal, Bush é um nacionalista autoritário.
Deixe-me, por favor, explicar esses pontos, pois eles são muito importantes. Há uma crença natural de que você não pode ter idéias fortes sobre determinado assunto se não sabe muito sobre ele. Contudo é necessário diferenciar conhecimento de crença.
Na verdade, qualquer pessoa pode ter convicções sobre certo tema mesmo sem conhecê-lo profundamente, visto que pode ter opiniões fortes sobre ele. A maior parte das pessoas que não sabem muito tem opiniões fortes. Quanto menos elas sabem, mais fortes são suas convicções. Ora, Bush tem opiniões muito fortes.

Folha - Como um bom caubói?
Daalder -
Como um bom conservador. Se ouvir programas de rádio de direita nos EUA, você verá que não há necessariamente uma relação entre convicções e um enorme conhecimento.
Bush tem inúmeras convicções. Estas são a pedra angular de sua conduta internacional. Sabemos disso porque, na visão dele, a Presidência é como uma grande empresa, na qual o presidente aponta pessoas muito capazes para liderar suas diferentes divisões.
Assim, o presidente tem assessores de alto nível e confia no conhecimento deles. Em parte, isso ocorre porque ele não quer perder o tempo necessário para aprender. Os secretários e subsecretários fornecem as informações, mas as decisões são tomadas por Bush, como numa grande empresa. Ele ouve as diferentes opiniões de seus assessores e decide com base nisso.
Ademais, ele já mostrou, algumas vezes, que manda no governo. No início de 2001, ele mostrou isso a Rumsfeld ao dizer que não aumentaria os gastos militares. Recentemente, voltou a fazê-lo ao tirar do Pentágono o controle da administração iraquiana.
Bush também já mostrou isso a Colin Powell [secretário de Estado] algumas vezes. Um dos casos mais dramáticos também ocorreu no início de 2001, quando ele disse a seu secretário que não concordava com sua visão sobre a questão norte-coreana.
Cheney tentou tornar-se o principal personagem das relações entre as diferentes agências governamentais americanas, porém jamais conseguiu convencer o presidente de que isso seria positivo e não pôde atingir seu objetivo.

Folha - E quanto às diferentes fontes de influência existentes no governo americano?
Daalder -
Às vezes, as pessoas tendem a acreditar que todos os partidários da linha dura sejam neoconservadores, mas isso não é verdade. Há dois tipos de linha dura em Washington atualmente: a dos neoconservadores, que Lindsay e eu classificamos de imperialistas democráticos, e a dos nacionalistas autoritários.
Há uma diferença básica entre os dois tipos. Os neoconservadores crêem que a América só possa ser segura se o restante do planeta for reformado, tendo como base a imagem dos EUA. Para eles, o propósito do uso do poder é buscar tornar os outros mais parecidos com os americanos.
Já os nacionalistas autoritários acreditam que, para fazer da América um lugar mais seguro, seja necessário derrotar seus inimigos, cuidando das ameaças existentes na cena internacional.
Assim, ambas as correntes eram favoráveis à deposição de Saddam Hussein, mas por razões diferentes. Os neoconservadores pensavam que isso fosse essencial porque seria o primeiro passo para tornar o Iraque um exemplo de democracia no Oriente Médio, o que, mais tarde, permitiria uma mudança do cenário político de toda a região. Eis a teoria do dominó preconizada por Wolfowitz.
Já os nacionalistas autoritários argumentavam que a queda de Saddam era necessária porque, enquanto ele estivesse no poder, suas armas de destruição em massa e seu envolvimento com terroristas constituiriam uma ameaça à segurança dos EUA.

Folha - Eles realmente acreditavam que Saddam dispusesse de armas de destruição em massa e tivesse contato com terroristas?
Daalder -
Sim. Há alguns meses, o presidente adotou a retórica dos imperialistas democráticos, mas isso ocorreu sobretudo porque essas armas ainda não foram encontradas. Porém essa não foi a razão pela qual os EUA entraram em guerra com o Iraque. Além disso, se realmente queria democratizar o Iraque, Bush escolheu os piores métodos para fazê-lo.
Afinal, com base nas decisões anunciadas nas últimas duas semanas, os EUA devolverão o poder aos iraquianos prematuramente e reduzirão sua presença militar no país. Isso poderá tornar o Iraque um país soberano, entretanto nem de longe o transformará num Estado democrático.

Folha - Respeitando as particularidades locais, o perigo seria transformá-lo num novo Afeganistão?
Daalder -
Sem dúvida, o país poderia transformar-se num novo Afeganistão ou numa espécie de Egito, o que, em nenhum dos casos, seria democrático. Curiosamente, no que diz respeito ao Iraque, quem são os maiores críticos do governo hoje? São os neoconservadores: William Kristol, do "Weekly Standard" [revista neoconservadora], e Robert Kagan.
Para eles, Bush está se tornando uma vítima das idéias de Rumsfeld sobre o Iraque. Na verdade, a operação realizada no Afeganistão é muito mais próxima das idéias dos nacionalistas autoritários. Hoje existe um debate entre as duas correntes para saber se a solução para o Iraque seria o modelo afegão, no qual os EUA só se ocupam do terrorismo e de eventuais levantes -deixando o restante do país para seus habitantes e para a comunidade internacional-, ou o modelo alemão.
Neste os EUA seriam obrigados a ocupar o Iraque até que a democracia estivesse enraizada em sua sociedade, o que corresponde à visão dos imperialistas democráticos. Tudo indica que os nacionalistas autoritários estejam vencendo essa disputa. Afinal, os americanos parecem agora estar dispostos a abrir mão da ocupação.

Folha - Mas a dimensão do desafio foi subestimada, o que forçou a mudança de estratégia, não é?
Daalder -
É verdade, porém isso não é o mais importante. A questão central é: uma vez que o problema foi subestimado, o que fazer para resolvê-lo de uma vez por todas? Para os neoconservadores, seria necessário intensificar a ocupação para controlar a situação. Para os conservadores, não. É claro que os neoconservadores são influentes, porém sua influência só vai até o ponto em que suas idéias param de coincidir com as dos nacionalistas autoritários.

Folha - Qual é o balanço que o sr. faz dessa revolução de Bush?
Daalder -
A revolução é baseada num equivoco fundamental, já que não leva em conta o modo como funcionam as relações internacionais. Afinal, ela tem como base a idéia de que os EUA são mais poderosos que o restante do planeta e podem, portanto, agir de modo unilateralista.
Todavia vivemos num mundo em que o poder conta quase tanto quanto a globalização. Assim, precisamos de cooperação internacional para fazer da América um lugar livre do terrorismo, para impedir a proliferação de armas nucleares ou para conter a propagação da Aids no planeta.
A grande tragédia dessa administração é que, pensando que o poder americano é ilimitado, ela acabou, paradoxalmente, minando a posição internacional dos EUA. Afinal, estamos muito mais envolvidos no Iraque do que estaríamos caso tivéssemos feito alianças. Com isso, não podemos fazer outras coisas, como lidar com a Coréia do Norte e o Irã.
Ademais, também perdemos poder porque não conseguimos mais convencer os outros de que nossas causas são legítimas. Isso vale não apenas para o Iraque mas também para outras questões internacionais importantes.

Folha - Se Bush não for reeleito em 2004, o quadro será alterado?
Daalder -
Sim. Aliás, mesmo com uma vitória dos republicanos, a revolução poderá ter fim. Afinal, ela levará o país a um maior isolacionismo. A eleição oporá os internacionalistas, que consideram crucial a aproximação com outros países, aos isolacionistas, que pensam que nossos objetivos podem ser atingidos sem a formação de alianças.
No caso de uma vitória de Bush, como não querem formar alianças, os republicanos acabarão forçando o país a ter uma posição isolacionista. A noção de que a revolução neoconsevadora levaria os EUA a Cabul, a Bagdá, a Damasco e assim por diante morreu.
Outro problema desse governo é que ele só dá valor aos Estados e ao poder, negligenciando o peso dos fenômenos transnacionais. Mas, uma vez que sua visão de mundo está solidificada, é difícil mudá-la. Para o governo, o 11 de Setembro não foi uma transformação, mas uma confirmação de que o mundo é extremamente perigoso e de que os EUA devem cuidar de seus interesses sem levar em conta o restante do globo. Para mim, o mesmo fato foi uma confirmação de que a globalização também tem um lado terrível.

Folha - Bill Clinton teria reagido de outra forma ao 11 de Setembro?
Daalder -
Em relação ao Afeganistão, creio que ele tivesse agido da mesma forma, qualquer presidente teria feito o mesmo após os terríveis atentados de 2001. No entanto Clinton, que entendia o funcionamento da globalização, teria percebido que não era possível lidar com as ameaças sem cooperação internacional.
Não tenho certeza de que ele tivesse feito a Guerra do Iraque. Mas, mesmo que quisesse depor Saddam manu militari, ele teria dado mais tempo à via diplomática, reduzindo consideravelmente os custos político e econômico da operação no Iraque. Tudo seria bem diferente, e, como resultado, o desfecho seria distinto. Penso que o mundo seria melhor atualmente se Clinton ainda pudesse ser o presidente dos EUA.


Texto Anterior: Frase
Próximo Texto: Daalder serviu o governo de Bill Clinton
Índice


UOL
Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.