São Paulo, segunda-feira, 23 de dezembro de 2002

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ARTIGO

Lado "Don Corleone" de Saddam pode evitar a guerra

THOMAS FRIEDMAN
DO "THE NEW YORK TIMES"

Saddam Hussein sempre foi uma figura política única -uma combinação de Don Corleone com Pato Donald-, capaz das táticas de sobrevivência mais astutas, embora brutais, a la Poderoso Chefão, e dos erros mais simples, cometidos numa história em quadrinhos, a la Pato Donald.
Testemunhamos agora o seu lado Pato Donald. Imagine que se, em vez de entregar à ONU e aos EUA um relatório dizendo que o Iraque não tem armas de destruição em massa, Saddam tivesse dito: "Oh meu Deus, acabamos de encontrar oito mísseis Scud e quatro barris com armas químicas escondidos debaixo de cobertores no porão. Eu não tinha idéia de que eles estavam lá! Por favor, levem-nos embora. Já executei o general que os escondia".
Saddam teria criado um problema enorme para o time de guerra de Bush. Em vez disso, Saddam tem ajudado os EUA a fazer a guerra. Acredito que Saddam terá mais uma saída, e o time de Bush precisa estar pronto para isso.
É o que chamo de "momento Primakov". Yevgeny Primakov foi um veterano da KGB (polícia secreta) russa, que fez várias viagens a Bagdá entre 1990 e 1991 para conversar com Saddam, a fim de evitar a guerra do Kuait. Minha impressão é que veremos esse jogo de novo. Antes de a Segunda Guerra do Golfo começar, haverá uma delegação franco-russa ou árabe voando para Bagdá para tentar persuadir Saddam a poupar sua família. Diferentemente da Primeira Guerra do Golfo, muitas nações não querem que essa guerra aconteça.
Na primeira, o Ocidente perdoou dois terços das dívidas do Egito, em troca da participação na guerra. A Síria recebeu US$ 1 bilhão da Arábia Saudita, por aderir ao conflito. Agora, o regime autocrático de Damasco não tem nenhum interesse numa segunda guerra. A Turquia ganhou US$ 3 bilhões pela ajuda em 1990. Hoje, só teria dor de cabeça. Os negócios com o Iraque seriam obstruídos e haveria um enorme fluxo de refugiados curdos atravessando a fronteira para o lado turco.
O Irã, que adorou ver Saddam sendo espremido, não gostaria de vê-lo derrubado e ter como vizinho um governo pró-EUA. Ainda há os curdos do Iraque. Protegidos no norte do país pelos EUA, graças à zona de exclusão aérea, os curdos estabeleceram um Estado quase independente. Eles não estão propensos a abrigar um novo regime "democrático" que venha a emergir em Bagdá.
Finalmente, os árabes sunitas no mundo estão preocupados com o fato de que, se o Iraque se tornar uma democracia, a maioria xiita neste país -que sempre esteve sob as asas de uma minoria sunita- irá assumir o poder, energizar os xiitas na Arábia Saudita, no Líbano e na Síria e ameaçar a dominação sunita.
Por isso, os EUA precisam ter paciência e estar preparados para tudo. Ao nos aproximarmos do clímax dessa história, uma delegação árabe ou européia pode aparecer em Bagdá a qualquer hora e forjar um trato com Saddam para ele recuar ou se exilar. O lado Don Corleone de Saddam diria sim. Ou, mais uma vez, seu lado Pato Donald faria uma avaliação errada. Nesse caso, esse seria, então, seu último quadrinho.


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