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Livro busca Guzmán e a origem do Sendero
Entrevistando colegas e desafetos, peruano investiga líder guerrilheiro
"La Cuarta Espada", escrito pelo jornalista Santiago Roncagliolo, acaba de sair na Espanha e deverá ser lançado no Brasil em 2008
France Presse - 5.nov.2004/Jaime Razuri
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Abimael Guzmán (centro), sua namorada, Elena Iparraguirre (à sua esq.), e outros integrantes do Sendero em julgamento |
SYLVIA COLOMBO
DA REPORTAGEM LOCAL
Quando tinha cinco anos e vivia no México com os pais, o peruano Santiago Roncagliolo viu
nos jornais uma imagem que o
marcou para sempre. A foto
mostrava cachorros enforcados em postes de Lima. Pendurados a eles, pequenos cartazes
enigmáticos diziam: "Deng
Xiaoping: filho de uma cadela".
O pequeno Roncagliolo, intrigado, perguntou aos pais o
que era aquilo. E a resposta foi
dura: "Este é o seu país".
Era o ano de 1980, e o grupo
terrorista de filiação maoísta
Sendero Luminoso anunciava,
assim, o início de sua luta armada contra o Estado peruano.
Mais de 20 anos depois, Roncagliolo, então um jovem escritor e jornalista tentando a sorte
na Espanha, propôs ao diário
"El País" uma reportagem sobre o líder daquele grupo guerrilheiro, o ex-professor universitário Abimael Guzmán.
Madri ainda vivia o trauma
dos ataques do 11 de Março de
2004, e havia bastante interesse dos espanhóis pelo tema do
terrorismo. O jornal topou na
hora, e o escritor voou de volta
ao Peru. Estava determinado a
entrevistar todos os lados daquela guerra que durou mais de
dez anos e provocou a morte de
cerca de 70 mil pessoas. Falou
com senderistas, companheiros e desafetos de Guzmán, encontrou seus irmãos -que hoje
evitam divulgar seus vínculos
de sangue com ele-, além de
oficiais do Exército que encabeçaram a reação, também violentíssima, contra a guerrilha.
O resultado acabou ficando
muito maior do que uma convencional reportagem para um
jornal impresso. Parte dela foi,
sim, publicada no "El País",
mas o projeto resultou mesmo
no livro-reportagem "La Cuarta Espada" (ed. Debate).
Recém-lançado na Espanha
e nos países hispano-americanos, a obra deve sair no Brasil
pela editora Objetiva em 2008.
Leia a entrevista que Roncagliolo, 32, concedeu à Folha, de
Barcelona, onde vive.
FOLHA - Por que ninguém havia
feito, até hoje, um livro sobre Abimael Guzmán?
SANTIAGO RONCAGLIOLO - Isso é
sintomático do trauma que ainda pesa sobre a sociedade peruana. É curioso que esse silêncio contraste com o ambiente
de discussão que encontrei nas
prisões, onde fui ler trechos para os senderistas encarcerados.
FOLHA - Pode falar da experiência
na prisão de Castro Castro, em Lima,
onde estão presos os senderistas?
RONCAGLIOLO - Sim. O interessante lá é que todos estão presos juntos. Não só senderistas,
mas também terroristas de outras facções e soldados julgados
pelas mortes que provocaram
na luta contra o Sendero, e ainda agentes de inteligência do
governo, punidos por afrontas
aos direitos humanos.
São todos os lados do período
da guerrilha, e me falaram muito de suas experiências. Ouvi
histórias incríveis, como a de
um dos terroristas que hoje faz
aulas de violão com o mesmo
soldado que deu um tiro em sua
cabeça numa perseguição.
FOLHA - Você trata a ideologia dos
senderistas, à época, como uma espécie de delírio coletivo. Eles ainda
pensam da mesma maneira?
RONCAGLIOLO - Os mais velhos, a
cúpula do movimento, sim. Primeiro porque estão isolados e
relacionam-se apenas entre
eles. Não sabem o que é o mundo após a queda do Muro de
Berlim, por exemplo. Têm idade e passaram vinte anos de
suas vidas presos. Antes, outros
vinte clandestinos. É praticamente impossível que, agora, se
dêem conta de que suas vidas
inteiras foram um erro.
FOLHA - Você faz uma comparação
até certo ponto divertida, entre o
modo como a ideologia senderista
se impôs entre seus membros e a
Força dos Jedi do filme "Guerra nas
Estrelas". Pode explicar melhor?
RONCAGLIOLO - Pensei nisso
porque o marxismo tornou-se
para aquelas pessoas um guia
místico, uma espécie de força
maior para que tomassem decisões duras sem que parecessem
que eram deles mesmos como
indivíduos. As deliberações coletivas os imunizavam da responsabilidade pessoal. Daí a verem os assassinatos em massa
de inocentes como uma necessidade daquela causa, e não crimes monstruosos, foi fácil.
Agravava a situação o fato de
que os senderistas viviam num
mundo muito pequeno. Debatiam e casavam entre si. O extremismo passou a parecer algo
normal, porque perderam os
referenciais do mundo de fora.
FOLHA - Você aponta também a especificidade de a origem do Sendero
ter se dado no ambiente universitário, e no interior do país. Como esses
fatores combinaram-se?
RONCAGLIOLO - Nos anos 60 e
70, as idéias marxistas circulavam nas universidades. As mais
afastadas reuniam gente de diversas zonas do país, muitos
das mais pobres. As pessoas conheciam o comunismo e depois
voltavam a seus povoados, onde o disseminavam. Assim o
Sendero teve facilidade para recrutar voluntários.
FOLHA - E Guzmán, por ser chefe de
uma universidade, em Ayacucho, tinha grande poder sobre esses professores interioranos, certo?
RONCAGLIOLO - Sim, ele controlava quem entrava na faculdade, e quem poderia graduar-se
para virar professor. Influía no
currículo das escolas da região
serrana, onde o Estado está ausente e os educadores têm papel importante. Isso tudo produziu um contexto perfeito para fortalecer a base do Sendero.
FOLHA - Você voltou do México na
adolescência e passou alguns anos em
Lima. Como era a cidade na época?
RONCAGLIOLO - Era assustadora,
havia bombas, colocávamos fitas adesivas nas janelas para
que não se quebrassem. E havia
os apagões. Nada se parecia
com o que haviam me contado
sobre o que era a "revolução".
Meus pais eram de esquerda e
não entendiam. Aquilo não tinha nada a ver com a ética comunista que defendiam.
Mas, até então, eu ainda via a
violência só de um lado. A única
força que me parecia perigosa
era a do Sendero.
FOLHA - Isso mudou quando começou a escrever o livro?
RONCAGLIOLO - Sim, a investigação me mostrou que a resposta
do Estado foi desproporcional,
desordenada, e só fez aumentar
a violência. Foi revoltante perceber que as duras ações militares foram desatadas em meu
nome e dos de minha geração.
Percebi que todos foram vilões na história recente do meu
país, o Exército, o governo e o
Sendero. E o resultado dessa
guerra só foi ruim de verdade
para os pobres, os camponeses,
que, em conseqüência, morreram inocentes, e aos montes.
Para a sociedade, hoje, é mais
fácil pensar que Guzmán foi um
psicopata isolado e não que todo o Peru contribuiu para uma
tragédia dessa proporção.
FOLHA - O que mais o impressionou nas conversas com senderistas?
RONCAGLIOLO - Elas não foram
nada fáceis, porque seu lado
emocional foi reprimido por
conta da disciplina a que se impuseram. Não concebem sua
vida pessoal fora do partido.
É duro fazer com que contem
coisas mais pessoais. Por exemplo, quando perguntei à Elena
Iparraguirre, namorada de
Guzmán, se havia sido difícil
deixar seus filhos quando foi
para a clandestinidade. Ela disse que sim, mas que sua vontade não importava, pois outras
forças haviam decidido por ela.
FOLHA - Você acabou não conseguindo falar com o próprio Guzmán.
Qual seria sua principal pergunta se
isso tivesse sido possível?
RONCAGLIOLO - Gostaria que ele
falasse sobre maior mistério de
sua vida, que é o que aconteceu
com sua primeira mulher, Augusta La Torre. Ela morreu
com 40 e poucos anos. Os senderistas dizem que foi um ataque cardíaco. Já a polícia diz
que foi Guzmán quem a matou.
Quando perguntei à Iparraguirre, ela reforçou que Augusta tinha morrido do coração. Eu
contestei, dizendo que achava
estranho uma mulher jovem
ter uma morte súbita assim. A
resposta dela foi assustadora.
Disse que essa versão era aquilo
"que o partido tinha decidido".
Assim como outros membros
da cúpula, criticaram meu livro. Não pelo conteúdo, mas
pelo princípio. Afinal, é a história de um homem, o que para
eles não conta. O enfoque que
os interessa é o da causa na qual
ainda crêem e dentro da qual
eles mesmos pouco significam.
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