São Paulo, segunda-feira, 24 de janeiro de 2011

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ENTREVISTA ALEC ROSS

Um governo não pode nem deve ser 100% transparente

CONSELHEIRO DE HILLARY PARA DIPLOMACIA ON-LINE CRITICA WIKILEAKS E DIZ QUE WEB CATALISOU REVOLUÇÃO NA TUNÍSIA

GABRIELA MANZINI
DE SÃO PAULO

Um ano atrás, Hillary Clinton falou do acesso à internet livre como um direito e criou o cargo de conselheiro sênior de Inovação do Departamento de Estado dos EUA.
O ineditismo já indicava que a missão de Alec Ross não seria fácil. Ele é hoje o principal responsável por inserir a diplomacia da superpotência na internet e estendê-la aos cidadãos. Um conceito batizado de "estadismo do século 21".
No cargo, Ross, 38, elaborou projetos que vão do combate ao narcotráfico no México ao mapeamento de minas terrestres no Congo -a maioria ainda no papel. Por outro lado, dominou o Twitter. Misturando as esferas profissional e pessoal, arrebatou 318 mil seguidores -o Departamento de Estado tem 51 mil.
Mas nem a intimidade com a rede conseguiu distanciá-lo da crise causada na diplomacia americana pelo vazamento de 250 mil documentos pelo WikiLeaks. "[O site] e a liberdade na internet não têm nada a ver. Todo direito vem com responsabilidades."
"Defender um governo aberto não significa defender 100% de transparência. Um governo não pode nem deve agir com 100% de transparência", afirma.

 

Folha - Em 2010, pela primeira vez, um alto funcionário dos EUA [Hillary Clinton] pôs a liberdade na internet como prioridade. Isso ainda é verdade, após o WikiLeaks?
Alec Ross -
Certamente. Em primeiro lugar, nossa agenda por liberdade na internet tem sido um sucesso. A secretária Hillary Clinton tornou isso uma questão de direitos humanos e de política externa.
É importante entender que o WikiLeaks e a liberdade na internet não têm nada a ver. Todos os direitos, todas as liberdades vêm com responsabilidades. Nos EUA, temos o direito de portar armas, mas não significa que você tenha o direito de atirar em alguém, por exemplo.
Toda liberdade opera no contexto da aplicação da lei. E a liberdade na internet não é a liberdade para promover danos, sejam eles pornografia infantil, fraude, roubo de propriedade intelectual.

Seu discurso é de transparência, porém as declarações do Departamento de Estado contra o WikiLeaks foram duras. O caso dificultou sua missão?
Defender um governo aberto não significa defender 100% de transparência. Um governo não pode nem deve agir com 100% de transparência. Há várias coisas que são resolvidas com diplomacia silenciosa, inclusive por mim, que não devem ser assunto para registro público.
Em si, a tecnologia é neutra. Ela assume valores dos usuários. Nem eu nem a secretária Clinton somos ciberutopistas. Nós do Departamento de Estado temos sido bastante pragmáticos e lúcidos sobre como a tecnologia pode ser usada para o bem e para o mal.
O WikiLeaks, aliás, atesta o poder e a onipresença das redes de comunicação mundiais. Bem como jovens diplomatas arrecadam mais de US$ 25 milhões para vítimas do tremor no Haiti via SMS; uma organização como o WikiLeaks distribui mensagens roubadas em escala global.

O sr. considera Julian Assange um "terrorista high tech"?
Não vou comentar pois há um inquérito em andamento.

Qual foi o papel do WikiLeaks na revolução na Tunísia?
O que ocorre lá tem a ver com desemprego, corrupção, alta dos preços dos alimentos e insatisfação quanto à família que estava no poder. O WikiLeaks revelou o que os tunisianos já sabiam.
Mas acho que as mídias sociais, sim, tiveram um papel. Elas preencheram o buraco que a mídia tradicional ignorou e fortaleceram laços entre as pessoas. Acho que já não existem movimentos envolvendo pessoas de menos de 40 anos de idade livres de um componente tecnológico.
Também acho que vimos os tunisianos dizerem claramente que a liberdade na internet é direito.
Houve uma forte reação quando o governo do [ditador Zine el Abidine] Ben Ali bloqueou o acesso a sites e promoveu ataques contra o Facebook. Em seu último discurso, Ben Ali disse que "escutara" a população e acabou com os bloqueios.
Eu acho que a internet catalisou o movimento. O que normalmente levaria meses levou semanas.

Como o sr. vê essa influência no restante do mundo árabe?
A internet está mudando o ambiente de informação. Ficou mais difícil regimes controlarem o que é consumido. E ficou mais fácil unir pessoas com interesses comuns.

Não há risco de superestimar a web visando o fim de regimes que não necessariamente virarão democracias?
Não acho que revoluções se tornem bem ou malsucedidas por causa da tecnologia. Ela é só um fator.

Há conflito em pôr firmas como Google, Facebook e Twitter na sua linha de frente?
Acho ingênuo acreditarem que posso, de alguma maneira, controlar essas empresas. Elas têm orgulho de ser independentes. Eu jamais tentaria controlá-las e, se o fizesse, sei que fracassaria.

Houve polêmica quando um dos seus colegas, Jared Cohen, interferiu para adiar a manutenção do Twitter nos protestos no Irã [após a reeleição de Ahmadinejad, em 2009]. Como lidar com isso?
Em primeiro lugar, discordo completamente de que isso seja interferência. Cohen contatou o Twitter e destacou que a manutenção ocorreria durante os protestos.
Não há razão para sentir qualquer coisa senão orgulho do papel que os nossos diplomatas tiveram em facilitar o fluxo de informações.
A Guarda Revolucionária e o governo do Irã estavam suprimindo a capacidade das pessoas de se comunicarem, e o Twitter era o mecanismo pelo qual a informação chegava ao mundo exterior.

Em setembro, Jared se tornou um executivo do Google. Isso o complica de alguma forma?
De jeito algum. O que é o Google? É uma ferramenta de busca. Não é uma firma extrativista, petroleira, mineradora. É uma empresa de tecnologia que dá às pessoas acesso à informação.
Minha pergunta é: o que o Departamento de Estado pode fazer pelo Google? Melhorar seus resultados de busca? É bem difícil para mim imaginar como o Departamento de Estado poderia ajudar o Google a lucrar. Não há conflito.

A sua página no Twitter [@AlecJRoss] tem muito mais seguidores que a do Departamento de Estado [@StateDept]. O sr. atrai mais atenção para si que para a instituição?
Nas mídias sociais, pessoas seguem pessoas, e não instituições.
Por isso um astronauta tem mais de 1 milhão de seguidores [@Astro-Mike, 1,2 milhão], muito mais do que a Nasa [@Nasa, 765 mil].
Pense no total de pessoas e no total de instituições que você segue no seu Twitter ou Facebook. O primeiro será bem mais alto.

E como isso se aplica à sua definição de diplomacia?
Diplomacia é a interação formal entre governos soberanos. O "estadismo do século 21" não a substitui, mas coloca a tecnologia como elo de governo e pessoas.
Por exemplo: pelo Twitter, o secretário da Imprensa da Casa Branca pede diretamente a cidadãos que lhe enviem perguntas. Desta forma, não é apenas a imprensa presente na sala de reuniões que o sabatina.

Quando falamos de projetos de arrecadação, fica óbvia a vantagem da internet. Mas como ajudar os mais pobres?
A relação entre as pessoas pobres e a liberdade na internet é que ela será uma ferramenta educativa e econômica e precisa alcançar as pessoas onde quer que elas estejam.
Na África e no sul da Ásia, por exemplo, há oportunidade de levar conteúdo às pessoas. Mas, se a internet for um muro vigiado, elas seguirão isoladas.


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