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ARTIGOS
Atoleiro jurídico e moral
Não há tecnologia de precisão que possa substituir o julgamento humano
quando se trata de decidir sobre a legitimidade da morte de civis
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DAPHNE EVIATAR
ESPECIAL PARA O "NEW YORK TIMES"
Baixas civis são inevitáveis
nas guerras, e a atual não é
exceção. Mas as Forças Armadas
dos EUA fazem esforços intensos
para evitar mortes de civis. Washington treina soldados sobre leis
de guerra e adotou procedimentos que objetivam minimizar o
sofrimento de não-combatentes.
Os advogados do Departamento da Defesa são consultados sobre os alvos de ataque, quando o
tempo o permite; e as Forças Armadas investiram no desenvolvimento de armas de precisão, para
que se possa reduzir a perda de vidas inocentes. "Isso é parte da cultura militar americana, incorporada após a guerra do Vietnã", diz
William Arkin, pesquisador sênior no Centro de Educação Estratégica da Universidade Johns
Hopkins e assessor militar sênior
do grupo de defesa dos direitos
humanos Human Rights Watch.
Ainda assim, as baixas civis inevitavelmente provocarão angústia e protestos. Isso é particularmente verdade agora, quando a
imagem da guerra pode ser transmitida instantaneamente para
milhões de pessoas.
A experiência de guerra do século 20 gerou um emaranhado de
tratados internacionais que definem regras detalhadas para os
conflitos armados. Quando se trata de não-combatentes, há dois
princípios primordiais sobre os
quais todos parecem concordar.
O primeiro é o de que as Forças
Armadas não podem intencionalmente tomar civis como alvos. O
segundo é o de que se os comandantes que estejam atacando um
alvo militar legítimo podem causar a morte de civis, os chamados
"danos colaterais", devem ponderar a importância do alvo militar
diante das possíveis perdas de vidas civis que o ataque acarretaria.
Mas a maneira exata de interpretar esses princípios e de ponderar as perdas de vidas civis
diante de outros fatores, tais como as vidas de soldados norte-americanos ou o sucesso de toda
uma campanha militar, continua
a ser vigorosamente debatida.
Divergências
As divergências se tornaram tão
severas que ao longo dos dois últimos anos o Centro Carr para o Estudo de Política de Direitos Humanos, na Universidade Harvard,
vem patrocinando um projeto
que reúne representantes dos militares, advogados internacionais
e grupos de defesa dos direitos
humanos, para que discutam as
interpretações jurídicas diferentes que cada grupo adota.
"A comunidade dos direitos humanos é essencialmente absolutista", diz Sarah Sewall, diretora
de programa no Centro Carr e ex-secretária assistente da Defesa no
governo Clinton, período em que
esteve encarregada de missões de
paz e de assistência humanitária.
"De um ponto de vista militar,
baixas civis são um dos percalços
que precisam ser aceitos. A situação é mais complexa do que a maneira pela qual a comunidade de
direitos humanos a aborda".
Uma dessas complexidades, de
acordo com Adam Roberts, professor de direito internacional na
Universidade de Oxford, é o fato
de que "há atos que são questionáveis, mas não ilegais".
As regras aceitas de modo mais
generalizado derivam das quatro
convenções de Genebra, de 1949,
que definem uma ampla gama de
questões humanitárias que podem surgir em tempo de guerra.
Em 1977, protocolos foram
acrescentados ao texto básico para detalhar as convenções, e foi
quanto a esse ponto que surgiram
desacordos amargos, especialmente com os americanos. (Embora mais de 150 países tenham
ratificado os protocolos, os EUA
não o fizeram.) E embora os americanos reconheçam alguns deles
como "lei internacional consuetudinária", rejeitam outros itens,
entre os quais um método proposto para definir o valor militar
de um determinado alvo.
Como até mesmo os especialistas jurídicos internacionais reconhecem, no fim restam decisões
difíceis a tomar. E todos concordam que é muito mais difícil tomar essas decisões no ponto do
conflito, quando soldados avançam de casa em casa durante
combates urbanos, que é o que
pode acontecer em Bagdá.
Criar situações que forcem essas
decisões dolorosas pode ser parte
da estratégia de um inimigo. Funcionários do governo americano
dizem, por exemplo, que Saddam
Hussein colocou boa parte de seu
equipamento militar em torno de
locais essencialmente civis, como
hospitais. Pela mesma lógica, ele
também estacionou civis em
quartéis militares. Duas violações
gritantes das leis internacionais.
Valor
Mas de que maneira uma força
atacante avalia, por exemplo, o
valor comparativo de eliminar
uma posição antiaérea instalada
em um parque infantil se isso puder causar a morte de crianças? "É
um teste que exige comparar os
danos que se pode causar à sua estimativa do valor militar daquilo
que se está tentando atingir", diz
Ken Anderson, professor de direito na American University.
As crianças são claramente civis, mas e as pessoas que se apresentem como voluntárias para
permanecer em uma instalação
militar e impedir um ataque?
Os defensores dos direitos humanos e alguns especialistas jurídicos dizem que esses escudos humanos continuam a ser civis, de
modo que a regra da proporcionalidade se aplica. Os militares
discordam. "Eles perdem essa
proteção", disse o major Ted
Wadsworth, porta-voz do departamento da Defesa. "Optaram por
se tornar combatentes."
E há também os alvos de "duplo
uso", como instalações que são
críticas tanto para fins civis quanto militares, por exemplo, pontes.
Na Guerra do Golfo, em 91, por
exemplo, os EUA destruíram as
redes elétricas iraquianas, paralisando comunicações militares.
Mas isso criou escassez de alimentos, destruiu instalações de
purificação de água e tratamento
de esgotos e interrompeu a assistência médica, afirma um relatório da Human Rights Watch, que
sugere que os ataques violaram a
Convenção de Genebra. Os EUA
alegam que os ataques eram cruciais para a derrota do inimigo.
Roberts diz que "os EUA desenvolveram uma doutrina de seleção de alvos, que tem por objetivo
recursos de poder de seus adversários, instalações do governo ou
residências da elite dominante".
Esses dilemas apontam para outra questão espinhosa: quando se
pondera vidas civis, em comparação com alvos militares, qual é o
critério correto para definir valor
militar? O valor de eliminar uma
determinada arma antiaérea é o
que conta ou é o valor estratégico
mais amplo de eliminar cada uma
das armas antiaéreas do inimigo?
O Departamento da Defesa diz
que o valor de qualquer ataque
precisa ser considerado no contexto da campanha militar como
um todo. Afinal, salvar algumas
vidas no curto prazo pode prolongar uma guerra e aumentar o
total de mortes mais tarde.
Os defensores dos direitos humanos alegam que o Primeiro
Protocolo das Convenções de Genebra sugere o oposto: que a maneira correta de avaliar é a determinação da "vantagem militar
definida" que cada alvo oferece.
Para especialistas jurídicos internacionais, como Anderson,
porém, ambas as interpretações
são possíveis. "O texto é ambíguo,
tenta satisfazer opiniões diferentes quanto ao assunto que existiam quando ele foi redigido".
Há outras armas que
geram disputas legais,
como bombas de submunições, minas terrestres e mísseis contendo
ogivas antitanques com
núcleos de urânio, que
explodem poeira radiativa. E há a questão das armas nucleares.
Em 1996, o Tribunal Internacional de Justiça de
Haia determinou que o
uso de armas nucleares é
ilegal a não ser "em circunstâncias extremas de
autodefesa, nas quais a
sobrevivência mesma de
um Estado esteja em jogo". Os EUA não aceitam
essa teoria. Em sua Revisão de Postura Nuclear
anual para 2002, os planejadores militares do
país pedem o desenvolvimento de novas armas
nucleares mais adequadas para atacar alvos no Iraque,
entre outros países.
É claro que muitas das armas
americanas empregam tecnologia
avançada a fim de ajudar a evitar a
morte de inocentes. Mas não há
tecnologia de precisão que possa
substituir o julgamento humano
quando se trata de decidir sobre a
legitimidade da morte de civis.
"O Departamento da Defesa
americano não considera parte de
sua tarefa essencial responder por
mortes de civis, de modo que ao
sistema militar faltam dados empíricos sobre os danos. Eles têm
procedimentos de revisão judicial
e se orientam de acordo com as
sensibilidades políticas, mas determinar se isso se traduz em práticas efetivas é outra questão", diz
Sewall, do Centro Carr.
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