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São Paulo, segunda-feira, 24 de março de 2003

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ARTIGOS

Atoleiro jurídico e moral


Não há tecnologia de precisão que possa substituir o julgamento humano quando se trata de decidir sobre a legitimidade da morte de civis


DAPHNE EVIATAR
ESPECIAL PARA O "NEW YORK TIMES"

Baixas civis são inevitáveis nas guerras, e a atual não é exceção. Mas as Forças Armadas dos EUA fazem esforços intensos para evitar mortes de civis. Washington treina soldados sobre leis de guerra e adotou procedimentos que objetivam minimizar o sofrimento de não-combatentes.
Os advogados do Departamento da Defesa são consultados sobre os alvos de ataque, quando o tempo o permite; e as Forças Armadas investiram no desenvolvimento de armas de precisão, para que se possa reduzir a perda de vidas inocentes. "Isso é parte da cultura militar americana, incorporada após a guerra do Vietnã", diz William Arkin, pesquisador sênior no Centro de Educação Estratégica da Universidade Johns Hopkins e assessor militar sênior do grupo de defesa dos direitos humanos Human Rights Watch.
Ainda assim, as baixas civis inevitavelmente provocarão angústia e protestos. Isso é particularmente verdade agora, quando a imagem da guerra pode ser transmitida instantaneamente para milhões de pessoas.
A experiência de guerra do século 20 gerou um emaranhado de tratados internacionais que definem regras detalhadas para os conflitos armados. Quando se trata de não-combatentes, há dois princípios primordiais sobre os quais todos parecem concordar.
O primeiro é o de que as Forças Armadas não podem intencionalmente tomar civis como alvos. O segundo é o de que se os comandantes que estejam atacando um alvo militar legítimo podem causar a morte de civis, os chamados "danos colaterais", devem ponderar a importância do alvo militar diante das possíveis perdas de vidas civis que o ataque acarretaria.
Mas a maneira exata de interpretar esses princípios e de ponderar as perdas de vidas civis diante de outros fatores, tais como as vidas de soldados norte-americanos ou o sucesso de toda uma campanha militar, continua a ser vigorosamente debatida.

Divergências
As divergências se tornaram tão severas que ao longo dos dois últimos anos o Centro Carr para o Estudo de Política de Direitos Humanos, na Universidade Harvard, vem patrocinando um projeto que reúne representantes dos militares, advogados internacionais e grupos de defesa dos direitos humanos, para que discutam as interpretações jurídicas diferentes que cada grupo adota.
"A comunidade dos direitos humanos é essencialmente absolutista", diz Sarah Sewall, diretora de programa no Centro Carr e ex-secretária assistente da Defesa no governo Clinton, período em que esteve encarregada de missões de paz e de assistência humanitária.
"De um ponto de vista militar, baixas civis são um dos percalços que precisam ser aceitos. A situação é mais complexa do que a maneira pela qual a comunidade de direitos humanos a aborda".
Uma dessas complexidades, de acordo com Adam Roberts, professor de direito internacional na Universidade de Oxford, é o fato de que "há atos que são questionáveis, mas não ilegais".
As regras aceitas de modo mais generalizado derivam das quatro convenções de Genebra, de 1949, que definem uma ampla gama de questões humanitárias que podem surgir em tempo de guerra.
Em 1977, protocolos foram acrescentados ao texto básico para detalhar as convenções, e foi quanto a esse ponto que surgiram desacordos amargos, especialmente com os americanos. (Embora mais de 150 países tenham ratificado os protocolos, os EUA não o fizeram.) E embora os americanos reconheçam alguns deles como "lei internacional consuetudinária", rejeitam outros itens, entre os quais um método proposto para definir o valor militar de um determinado alvo.
Como até mesmo os especialistas jurídicos internacionais reconhecem, no fim restam decisões difíceis a tomar. E todos concordam que é muito mais difícil tomar essas decisões no ponto do conflito, quando soldados avançam de casa em casa durante combates urbanos, que é o que pode acontecer em Bagdá.
Criar situações que forcem essas decisões dolorosas pode ser parte da estratégia de um inimigo. Funcionários do governo americano dizem, por exemplo, que Saddam Hussein colocou boa parte de seu equipamento militar em torno de locais essencialmente civis, como hospitais. Pela mesma lógica, ele também estacionou civis em quartéis militares. Duas violações gritantes das leis internacionais.

Valor
Mas de que maneira uma força atacante avalia, por exemplo, o valor comparativo de eliminar uma posição antiaérea instalada em um parque infantil se isso puder causar a morte de crianças? "É um teste que exige comparar os danos que se pode causar à sua estimativa do valor militar daquilo que se está tentando atingir", diz Ken Anderson, professor de direito na American University.
As crianças são claramente civis, mas e as pessoas que se apresentem como voluntárias para permanecer em uma instalação militar e impedir um ataque?
Os defensores dos direitos humanos e alguns especialistas jurídicos dizem que esses escudos humanos continuam a ser civis, de modo que a regra da proporcionalidade se aplica. Os militares discordam. "Eles perdem essa proteção", disse o major Ted Wadsworth, porta-voz do departamento da Defesa. "Optaram por se tornar combatentes."
E há também os alvos de "duplo uso", como instalações que são críticas tanto para fins civis quanto militares, por exemplo, pontes.
Na Guerra do Golfo, em 91, por exemplo, os EUA destruíram as redes elétricas iraquianas, paralisando comunicações militares. Mas isso criou escassez de alimentos, destruiu instalações de purificação de água e tratamento de esgotos e interrompeu a assistência médica, afirma um relatório da Human Rights Watch, que sugere que os ataques violaram a Convenção de Genebra. Os EUA alegam que os ataques eram cruciais para a derrota do inimigo.
Roberts diz que "os EUA desenvolveram uma doutrina de seleção de alvos, que tem por objetivo recursos de poder de seus adversários, instalações do governo ou residências da elite dominante".
Esses dilemas apontam para outra questão espinhosa: quando se pondera vidas civis, em comparação com alvos militares, qual é o critério correto para definir valor militar? O valor de eliminar uma determinada arma antiaérea é o que conta ou é o valor estratégico mais amplo de eliminar cada uma das armas antiaéreas do inimigo?
O Departamento da Defesa diz que o valor de qualquer ataque precisa ser considerado no contexto da campanha militar como um todo. Afinal, salvar algumas vidas no curto prazo pode prolongar uma guerra e aumentar o total de mortes mais tarde.
Os defensores dos direitos humanos alegam que o Primeiro Protocolo das Convenções de Genebra sugere o oposto: que a maneira correta de avaliar é a determinação da "vantagem militar definida" que cada alvo oferece.
Para especialistas jurídicos internacionais, como Anderson, porém, ambas as interpretações são possíveis. "O texto é ambíguo, tenta satisfazer opiniões diferentes quanto ao assunto que existiam quando ele foi redigido".
Há outras armas que geram disputas legais, como bombas de submunições, minas terrestres e mísseis contendo ogivas antitanques com núcleos de urânio, que explodem poeira radiativa. E há a questão das armas nucleares.
Em 1996, o Tribunal Internacional de Justiça de Haia determinou que o uso de armas nucleares é ilegal a não ser "em circunstâncias extremas de autodefesa, nas quais a sobrevivência mesma de um Estado esteja em jogo". Os EUA não aceitam essa teoria. Em sua Revisão de Postura Nuclear anual para 2002, os planejadores militares do país pedem o desenvolvimento de novas armas nucleares mais adequadas para atacar alvos no Iraque, entre outros países.
É claro que muitas das armas americanas empregam tecnologia avançada a fim de ajudar a evitar a morte de inocentes. Mas não há tecnologia de precisão que possa substituir o julgamento humano quando se trata de decidir sobre a legitimidade da morte de civis.
"O Departamento da Defesa americano não considera parte de sua tarefa essencial responder por mortes de civis, de modo que ao sistema militar faltam dados empíricos sobre os danos. Eles têm procedimentos de revisão judicial e se orientam de acordo com as sensibilidades políticas, mas determinar se isso se traduz em práticas efetivas é outra questão", diz Sewall, do Centro Carr.


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