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ARTIGO
Teologia de Ratzinger é crítica à modernidade
LUIZ FELIPE PONDÉ
ESPECIAL PARA A FOLHA
Bento 16 é um intelectual. Homens bem intencionados, articulados, midiáticos, tímidos, honestos, "conservadores" ou "progressistas", podem ou não ser intelectuais. Se o forem, a percepção que
temos deles demandará maior esforço cognitivo -esta característica pode se tornar, muitas vezes,
um problema para a informação e
para o entendimento.
Alguns analistas já apontaram
para o fato de que Bento 16 deverá
ter dificuldades no relacionamento com a mídia e o "rebanho".
João Paulo 2º não era um intelectual. Aqui já surge uma diferença
importante para aqueles que pensam que nada muda, pelo menos
no plano da trama teológica teórica e prática, invisível a instrumentos grosseiros de análise. O perfil
intelectual pode ser definido, entre outras formas, por uma tendência a ver o mundo de um modo mais complexo. A questão é:
em qual dimensão este fato influencia na passagem de uma atividade essencialmente teórica e
reflexiva para uma de cunho mais
pastoral e dominada pela lógica
empírica miúda e cotidiana?
Sabemos que a pastoral hoje em
dia flerta abertamente com a "inteligência do marketing" e, por isso mesmo, assume a forma da razão publicitária, seja em seu conteúdo "progressista ou conservador" -há uma clara atmosfera de
consciência empresarial da fé:
quem converte mais? O que o
pensamento de Ratzinger parece
indicar é que o processo de contágio da religião cristã pelas manias
do secularismo moderno pode ser
detectado em várias frentes.
O novo papa não é um intelectual cujo mote é medo de não
agradar. Numa atitude pastoral,
esse traço parece ser contraditório, a menos que esteja imerso numa articulação teológica que o
sustente e organize. A teologia de
Ratzinger é uma crítica aberta à
ditadura da modernidade e, neste
processo, às "soluções" pseudo-religiosas (no entendimento dele)
para "a questão religiosa".
Santo Agostinho pode ser muito mais nosso contemporâneo do
que o último guru espiritual correto ou o último teólogo transteológico. Chamá-lo de "conservador" é má fé (razão estratégica),
barateamento da discussão ou
simples falta de repertório. Mas,
na "democracia real", esse processo de barateamento pode ser
estrutural.
Evidentemente que atitudes
não se dão no vazio dos laços sociais. A democracia como comportamento generalizado, associada a uma economia calcada na
idéia de produção industrial e regida pela lógica do desejo, parece
tender, desde suas origens no século 19, para um cenário pouco
dócil às necessidades estruturais e
dinâmicas de um pensamento
que não se faz facilitador: não é fácil encontrarmos no vaivém infernal da democracia moderna produtivista -isto é, orientada por
um "ethos" da eficácia- os espaços que propiciam os movimentos delicados e sutis de uma reflexão que exige maior repertório
metodológico e conceitual.
O risco de resvalarmos para a
banalização é enorme: o novo papa foi nazista (quem não teria servido o exército então? Era uma
guerra...). Ele é um conservador
retrógrado que é contra mulheres
e homossexuais. Relativizar dogmas, tudo bem, mas só na casa do
vizinho! Não haverá perda no diálogo com os avanços da ciência?
Como se andar em linha reta sempre para frente fosse evidente indicação de avanço e como se dialogar fosse sinônimo de submissão ao encantamento da lógica
ruidosa da eficácia. A agenda moderna não será preterida?
Para Bento 16, a "agenda" não é
moderna, mas sim eterna. Quem
consegue lidar facilmente com
uma categoria de tempo que por
definição exclui e supera a noção
empobrecida de temporalidade?
Uma solução é fugir, fingindo que
tudo é ideologia...
Na obra "O Sal da Terra" (Ed.
Imago), de 1996, podemos ter alguns indícios de como Ratzinger
pensa questões como essas, entre
outras tantas. Obra já madura, nela temos a chance de ver de modo
articulado e coloquial (trata-se de
uma longa entrevista) a evolução
de seu pensamento teológico no
enfrentamento de diversas questões essenciais.
Uma experiência marcou a vida
do novo papa: voltando para a
Alemanha após o período do Vaticano 2º, e assumindo a atividade
docente, um dia foi interrompido
por alunos que tomaram seu microfone em meio à aula sem pedir
licença. O professor Ratzinger ali
percebeu que algo estava se passando e que cuidados eram necessários com o chamado processo
de modernização.
Um dos temas caros à reflexão
de Ratzinger é a dissolução da experiência litúrgica graças ao deslocamento do lugar da relação entre culto e comunidade dentro da
dinâmica eclesial. Segundo ele,
muitos católicos confundem a relação entre fé e prática litúrgica na
medida em que parecem crer que
o "formato" da liturgia é objeto de
decisão comunitária, como numa
pesquisa de opinião pública.
Essa temática é diretamente
descendente da pressão pela dissolução das estruturas hierárquicas em favor de um "democratismo das bases". Para Ratzinger,
parece haver um "instinto antidiscernimento" na condição contemporânea. Não é o fiel o "ponto
de partida" da experiência litúrgica, mas a Revelação, mediada pelos mistérios sacramentais.
O viés democratista das bases
tende a perder de vista este fato,
porque no fundo é fruto do processo dissolutivo do relativismo
anômico (por isso opera em baixo
discernimento) e do secularismo
autoritário, e o resultado é a perda
da espessura mística do culto em
favor de uma semelhança com
shows (no nosso caso) de música
popular "ao alcance de todos".
Prova deste autoritarismo é o mal
entendimento de que escolher
formas "antigas" de liturgia (pré-conciliares, Vaticano 2º) seja signo de "reacionarismo".
O rompimento da idéia de pastoral como sedução por atração
também é fruto de sua reflexão
teológica. Imagens como "oásis
no deserto", "fortaleza no alto",
"grãos de sal da terra", todas remetem para um distanciamento
da idéia de uma teologia "da Igreja triunfante". Não operar dentro
das categorias da razão publicitária -termo meu- pode tornar
alguém quase irracional.
Para Ratzinger a antropologia
agostiniana que vê o homem como um ser que gira ao redor de
uma natureza danificada pelo pecado é muito mais empírica do
que os modos de pseudodignidade antroponômicas. Isso dá um
tom "pessimista" à sua reflexão
antropológica, que diante da regra de "respeito às sensibilidades
sociais", parece uma heresia. O
homem deve julgar a si próprio
menos como agente de sua própria salvação e mais como agente
de sua perda -não por um trauma masoquista, mas antes de tudo por propedêutica metodológica.
Atitudes como essa aparece
também na sua crítica a preguiça
travestida de "amor pela paz" de
muitos bispos: segundo Ratzinger, o medo de conflitos leva muitos bispos e padres à preguiça
mental e prática. Referindo-se ao
seu tempo de bispo na Alemanha,
ele reconhece como é difícil não se
calar e optar pelo
silêncio fácil. Trata-se do veneno silencioso que corrói a própria estrutura da comunidade. Inocula-se a preguiça em
nome da paz.
Todavia, uma
crítica como esta
pode ser facilmente cooptada pela
bancada secular
da igreja (aqueles
que pensam que a
igreja deve buscar
sua teologia nos livros de Marx,
Feuerbach,
Nietszche ou Foucault): essa chamada pelo enfrentamento dos conflitos é na realidade um discurso de poder, diriam
os "socioteólogos".
O interessante é que só o outro é
que faz o discurso do poder: é o lado em que você está que determina se sua causa é justa ou manipuladora. Ratzinger recusa em bloco
a "teoria do poder em toda parte"
e a identifica como uma das formas de dissipação da capacidade
humana de discernir as coisas. Se
não há nada além do que "power
politics", não há nada a fazer.
Seu repetido discurso acerca da
importância da liturgia para a teologia indica sua compreensão, dita em termos filosóficos, de que
transformações ontológicas (ou
existenciais) são operadas no momento litúrgico que abrem para o
ser humano uma experiência de
Deus. Quando o indivíduo vive
uma religião que tende para mera
instituição social, a liturgia se
transforma em algo que repete o
mundo secular "ad infinitum".
A condenação do padre austríaco Gotthold Hasenhöttl é uma
boa oportunidade para compreender suas reflexões no plano
prático. Segundo Ratzinger, o erro de Hasenhöttl (dar comunhão
a não batizados) era na realidade
função de erro teológico: para ele,
Deus não é uma realidade existente em si, mas um evento para
encontros entre seres humanos.
Esse tipo de teologia dissipativa,
está no foco de suas críticas ao relativismo teológico de autores como John Hick, entre outros, e nos
leva às aporias do
diálogo entre diferentes religiões.
Ratzinger dirá
que não há como
não destituir o
cristianismo de
Cristo (cristianismo acristológico)
se tivermos que
aceitar realidades
indistintas e cósmicas, panteístas,
aos moldes da Índia.
As tentativas de
manter a religião
nos limites da razão natural e
achar que Kant
salvou o cristianismo, marcando
as diferenças entre Deus (um ser
fora das categorias a priori de
sensibilidade) e
Jesus (encarnado e, portanto, um
ser limitado às categorias a priori
da sensibilidade, e por isso puro
fenômeno descartável teologicamente porque meramente empírico) é para Ratzinger erros semelhantes da teologia da libertação.
Uma característica do humanismo moderno é essa tendência de
buscar referências extrabíblicas e
fora da tradição cristã para a atividade hermenêutica ou exegética.
Por exemplo, o feminismo deságua numa agenda que impõe à Bíblia conteúdos que nela inexistem
ou simplesmente nega a validade
bíblica em favor da emancipação
secular. Para Ratzinger, alguém
pode até pensar assim, mas nada
há de cristão ou católico nisso, e o
melhor é que "vá embora".
O processo de dissipação do
cristianismo a serviço da instalação de modelos orientais, chega,
por exemplo, à assimilação do budismo como método de auto-erotismo pseudoespiritual, na medida em que o eu é uma fonte de gozo sem obrigações reais no mundo. Ratzinger pensa que muitos
católicos hoje vêem a sua fé em
desvantagem porque ela tem um
discurso de responsabilidade
muito explícito, e a sensibilidade
contemporânea, fruto de sistemas
de pensamento que escondem
sua verdadeira filiação (os ídolos
do mundo caído: amor pela matéria, pelo conhecimento vão e pelo
orgulho), materializada, por
exemplo, num canto pela sexualidade orgasmática e estéril, pouco
fecunda, não agüenta tamanha
pressão moral.
Quando ataca os instrumentos
culturais como grandes sessões de
rock'n'roll a serviço da fé, Ratzinger tem isso em mente: o cristianismo não é uma religião da liberação do ônus da consciência,
mas o contrário, da consciência
como instrumento que ilumina a
percepção de Deus.
Uma outra frente de crítica é aos
diversos tipos de hegelianismos,
da história como lei de redenção
até a transvaloração nietzscheana
como salvação que passa pelo gozo infinito do eu. Ratzinger diz
que espera que tenhamos aprendido como modelos de redenção
baseados em revoluções violentas
(como a do líder Barrabás, no
evangelho, de Hitler, Stálin, Fidel
etc.) só geram tragédias em escala
gigantesca. "Leis da história" não
existem, são uma bobagem do socialismo pseudocientífico, retórica a serviço da violência.
Quando teólogos distantes da
espiritualidade da igreja se confundem e pensam que o Zeitgeist
(espírito da época ou do tempo) é
um critério possível para uma instituição que tem sua raiz no sobrenatural (por isso a história pode até ser matéria de preocupação, mas o "ponto de vista", diria
quase o objeto formal, é sempre
sua participação no corpo místico, participação essa que é muito
mais da ordem da liturgia, dos sacramentos, da vida em comunidade permeada por estes e pela
experiência da Revelação), nascem híbridos como a teologia da
libertação, que apesar de ter em si
germes do cristianismo (a recusa
da pobreza e da injustiça), acabam se transformando em mera
facção socialista.
Estes teólogos caem em erros de
utilizarem referenciais hermenêuticos que, no limite, produzem a exclusão de Deus. Na relação teórica entre teologia da libertação e marxismo, é aquela que é
parasitária. O marxismo não precisa de qualquer teologia (mesmo
a que está mais perto dele do que
de Deus) para fazer seu trabalho
(a não ser como conteúdo retórico). Confunde-se o carisma profético da igreja com uma teoria secular datada. Não há sintonia entre o tempo secular e a vocação
profética, essa extemporaneidade
é figura da eternidade em diálogo
com o tempo.
As interpretações seculares de
Deus, como a teologia da libertação, só podem degenerar em visões materialistas do tipo "a Alemanha está mais perto do Reino
de Deus que o Brasil porque tem
água encanada e distribuição de
renda mais igualitária e escola pública", ou "Deus é a natureza ou o
Amor por tudo" -esta forma
mais típica do cruzamento com
espiritualidades da Nova Era.
As formas de relativismo que
cruzam com um culto da subjetividade hedonista também são
modos de neopaganização. No
fundo, o indiscernimento relativista leva ao individualismo ou ao
multiculturalismo oba-oba. Duas
questões se cruzam aqui.
Uma que é a da exclusão do sofrimento, tudo é relativo menos
meu prazer, e, no plano religioso,
significa um deus que serve ao
meu eu. Outra que é da própria
dinâmica do relativismo que é sua
aporia da tolerância por anomia
conceitual: a idéia de que não há a
possibilidade de que pessoas ou
sistemas de idéias ou religiões estejam erradas é infantil. Não é por
acaso que frases como "cada um é
cada um" são instrumentos de
suspensão de pensamento a serviço da preguiça, utilizados largamente por adolescentes irritados
diante da demanda de discernimento.
De novo, paz e preguiça mesclados a serviço da anomia. O medo
atávico de guerras religiosas nos
condena a todos ao imobilismo
intelectual. O fato de existirem várias religiões não implica que estejam todas certas. No caso específico do catolicismo, é interessante perceber como todas parecem melhor do que ela, ou merecem menos crítica do que ela.
Senso comum é comum nesse assunto como critério suficiente de
conhecimento. Diria até que basta
falar mal da igreja, acrescentar
um pouco de sexo e ter mulheres
poderosas como heroínas, para se
atingir o sucesso.
Em 1999, num discurso sobre a
relação entre lei e ordem em Roma, Ratzinger lembrou seus anos
de nacional-socialismo e comentou que era interessante como
agora (após os anos 50), a idéia de
se estabelecer critérios era vista
como "ato fascista", e que durante
os anos do nazismo era o contrário: os cidadãos eram convocados
a agir a partir de seus sentimentos
"livres e verdadeiros" e não a respeitar as leis estabelecidas.
Vivemos hoje uma clara tendência a uma sensibilidade disseminada em critérios fluidos. Ratzinger vê como um sinal de dissolução o fato da moral hoje ser
pensada a partir da lógica de somatório de opiniões, como um
consenso de sensibilidades. Evidentemente que essa idéia se parece muito com a noção de que se
trata de uma contabilidade de
concupiscências estabelecendo
contratos.
A teologia de Ratzinger não é
um "creio porque é absurdo", aos
moldes de Tertuliano, mas "creio
para compreender", aos moldes
de Agostinho. O aparente pessimismo pode ser apenas rigor. No
fundo, há sentido, mas há que
pensar e contar com a misericórdia de Deus. Os seres humanos
gostam de ser acalentados na sua
fragilidade estrutural. Quando
pessoas nos dizem coisas duras,
sofremos. Por isso hoje tendemos
a optar por maus pedagogos, mas
que mentem para nós, e deuses
que nos obedecem em nossa volúvel espiritualidade à venda.
Luiz Felipe Pondé é professor de filosofia da PUC-SP (Pontifícia Universidade
Católica), da Faculdade de Comunicação
da Faap (Fundação Armando Álvares
Penteado) e professor-pesquisador convidado da Universidade de Marburg
(Alemanha). É autor, entre outros, de
"Conhecimento na Desgraça" (Edusp) e
"Crítica e Profecia, filosofia da religião
em Dostoiévksi" (Ed. 34).
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