São Paulo, domingo, 24 de agosto de 2008

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Fórum propõe cidadania global do migrante

Encontro de especialistas na Espanha defende direitos plenos para as 220 milhões de pessoas que vivem fora de seu país

Experts vêem descompasso entre políticas migratórias e globalização e lamentam que 3% da população sejam cidadãos de segunda classe

CLÓVIS ROSSI
ENVIADO ESPECIAL A SANTANDER

Kim Campbell, ex-premiê do Canadá, recorre ao poeta norte-americano Robert Frost (1874-1963) para falar da situação dos migrantes no mundo: "O que é o lar? É o lugar ao qual, quando a ele vou, eles têm que me deixar entrar".
O mundo decididamente não é um lar para os 220 milhões de pessoas que vivem fora de sua terra, cerca de 3% da população mundial, todo um Brasil e uma Argentina somados.
A essa massa, haveria que se acrescentar 815 milhões de emigrantes potenciais, apontados em estudo recente do Fundo Monetário Internacional, e 200 milhões de migrantes internos, gente que deixou a cidade mas não o país onde nasceu.
E ainda há 11,5 milhões de refugiados.
Os refugiados têm direitos específicos, entre eles o veto à repatriação, o que não acontece com os migrantes voluntários. "O refugiado precisa de proteção, mas há muita gente que não se enquadra na condição de refugiado e também necessita de proteção", constata Jeff Crisp, chefe da Unidade de Avaliação do Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (Acnur). "Há um buraco na legislação internacional."
Do poema de Frost citado por Campbell e do "buraco" mencionado por Crisp nasceu a principal recomendação para o tratamento dos migrantes feita ao final do seminário "Globalização, Migração Internacional e Desenvolvimento", realizado em Santander (Espanha) na segunda e na terça-feira, sob patrocínio do Clube de Madri, instituição que reúne 64 ex-chefes de governo, do brasileiro Fernando Henrique Cardoso ao cabo-verdiano Antonio Mascarenhas Monteiro, passando pelo chileno Ricardo Lagos, seu atual presidente.
A recomendação equivale a criar a cidadania global, na medida em que prega "conceber a cidadania com base na residência e não na nacionalidade".

Direitos plenos
O brasileiro que vive em Madri, portanto, teria todos os direitos do cidadão espanhol, em vez de ser um "cidadão de segunda classe", como Kim Campbell diz ser hoje o imigrante. Ou um "sobrevivente", como prefere Petre Roman, ex-premiê romeno.
Tão de segunda classe que "não existe uma organização global para a governança das migrações, como existe, por exemplo, a Organização Mundial do Comércio para o comércio", reclama Dolores Gorostiaga Sáiz, vice-presidente do governo da Cantábria, a região de que Santander é a capital.
Reforça Jeff Crisp, do Acnur: "O capital, os bens, as informações e as idéias gozam de livre movimento, mas não é o que acontece com as pessoas. Podemos viver em um mundo em que há esse livre movimento de tudo, menos das pessoas?".
Os governos do mundo rico parecem crer que sim, tanto que estão reforçando os controles sobre a imigração, tanto na Europa como nos EUA. "Há muitos acordos sobre proteção de fronteiras e poucos sobre facilitar a emigração regular", lamenta Manuel Pombo Bravo, representante espanhol na OIM (Organização Internacional para as Migrações).
Pombo lembrou que, embora o complexo ONU inclua a OIM, esta não cria doutrina nem tem um orçamento geral, apenas para projetos específicos.
"O tratamento das migrações é a parte mais atrasada do processo de globalização", constata Rafael Rodríguez, coordenador acadêmico do seminário e diretor da cátedra de Cooperação Internacional e Comunidade Iberoamericana da Universidade da Cantábria.
Jaime Atienza, pesquisador do Departamento de Estudos e Campanhas da respeitada ONG Oxfam, também lamenta o que chama de "obsessão com o controle da imigração", ainda mais que, pelas pesquisas que menciona, "um aumento de 3% no número de imigrantes nos países desenvolvidos geraria US$ 300 bilhões adicionais para a economia, mais que os potenciais ganhos com a Rodada Doha de liberalização comercial".
Se há ganhos, se há um discurso politicamente correto a favor da imigração, onde está o problema? "Numa dupla hipocrisia", responde Jeff Crisp, do Acnur. "Os governos dos países emissores dizem que não querem que eles saiam, mas necessitam que o façam, assim como os países receptores não querem que venham, mas precisam da mão-de-obra deles."
Os números dão toda a razão a Crisp. Na ponta dos países emissores de migrantes, há o fato de que 25% da economia de Honduras, por exemplo, provêm de remessas de hondurenhos que vivem no exterior.
Na ponta dos receptores, "há 12 milhões de irregulares trabalhando nos EUA, o que equivale a 9% da população empregada; se fossem todos expulsos, o PIB despencaria", calcula Guillermo de la Dehesa, presidente do Centro para Pesquisa de Política Econômica, com sede em Londres, e autor de "Comprender la Inmigración", lançado durante o seminário.
Esses números indicam que Crisp está certo também ao prever que o fenômeno migratório vai crescer: "A menos que as disparidades [de renda] sejam enfrentadas, as pessoas vão continuar a fugir dos países mais pobres e menos estáveis".


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