São Paulo, sábado, 24 de setembro de 2005

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EUA

Após o maior êxodo voluntário da história do país, capital do Texas suspende serviços e aguarda a tormenta com toque de recolher

Houston, cidade fantasma, espera o Rita

SÉRGIO DÁVILA
ENVIADO ESPECIAL A HOUSTON

A cidade que faz os EUA andarem parou ontem para esperar Rita. Houston, maior concentração de refinarias de petróleo por metro quadrado do país, amanheceu vazia e permaneceu assim o dia inteiro. As estradas, já vazias depois do maior êxodo voluntário em solo americano, que movimentou 1,8 milhão de pessoas no país em questão de horas, pareciam fechadas. A cada dez quilômetros, um carro abandonado ou com pessoas dormindo dentro.
É que não há mais gasolina na cidade da gasolina. Não há mais combustível em boa parte do Estado do qual saiu o combustível que forjou a dinastia dos Bush. Você passa por postos de diversas marcas, e as bombas estão cobertas com um protetor negro, como se de luto pela falta de preparo que a administração vem mostrando desde o desastre do Katrina, o furacão que atingiu os Estados vizinhos e já matou mais de mil pessoas em cinco Estados.
Os carros parados não são sem valor, mas SUVs, os "veículos utilitários esportivos", na sigla em inglês, o preferido do americano médio e o indicado para situações de possível enchente, por ser alto e ter tração nas quatro rodas. É também um dos maiores bebedores das estradas, raramente fazendo mais de 5 km por litro. O que aconteceu é que muitos dos que saíam das cidades da costa do Texas pelas quais o furacão passaria, sobretudo Galveston e Port Arthur, andaram até o tanque secar.
Foi o que fez o brasileiro Fabiano Takahashi. "Entre arriscar ficar na estrada esperando por uma ajuda que nunca veio e preparar minha casa para o pior, decidimos pela segunda opção", contou ele à Folha. Casado com Patrícia, ambos com 35 anos, ambos engenheiros, ele da gigante de computadores HP, ela no momento em casa, Takahashi é um exemplo do estado de espírito que tomou Houston desde que foi anunciado, na segunda, que parte do furacão Rita poderia passar por aqui.
"Na segunda-feira, nós [os moradores de Houston que decidiram ficar] ficamos ressabiados e de olho no noticiário. Na terça, soubemos que estávamos na rota e invadimos os supermercados atrás de suprimentos, acabando com quase tudo: água, pilha, comida enlatada, lanternas. Na quarta, o comércio avisou que não haveria mais venda de água. Na quinta, as empresas deram folga para os funcionários, para que eles fossem embora ou se preparassem, e para que elas próprias se preparassem. Hoje [ontem], nós esperamos."
Nem todos os seus mais de 2 milhões de habitantes deixaram a área metropolitana daqui, é claro, mas a maioria que ficou optou por não sair de casa, o que deu ao local um aspecto de cidade fantasma do Velho Oeste. No centro financeiro e econômico, especialmente na rua Fannin, que cruza de fora a fora a concentração de arranha-céus, a sexta-feira via passar um ou outro carro de polícia, dos bombeiros e ambulâncias, sob os olhares dos suspeitos de sempre: jornalistas do mundo inteiro e pedintes sem-teto.
Enquanto os que ficaram esperam, alguns lucram. Na interestadual 10, a principal a cruzar o sul do Texas, um homem vendia geradores movidos a gasolina por US$ 700 cada um. Tinha 15 ainda. Ficaria vendendo "até acabar ou até o furacão chegar, o que vier primeiro". Aceitava cheques. Nos hotéis, entre reuniões promovidas pelos gerentes sobre procedimentos de emergência, a garrafa pequena de água saía a US$ 5 (em vez dos US$ 1,98 habituais).
(Entre os procedimentos, um chamou a atenção: "No caso de termos de esvaziar o prédio, tranquem seus cachorros no banheiro dos quartos. Eles estarão mais seguros lá do que na rua", dizia o gerente do Magnolia. Ele tem razão: o furacão Katrina deixou milhares de cães abandonados pelos donos, que fugiram às pressas ou morreram. Uma equipe de resgate na Louisiana foi treinada especificamente para lidar com a matilha dos esquecidos.)
Nas mesas dos poucos lugares a oferecer refeições, geralmente bufês em hotéis decadentes do centro -o comércio todo está fechado e com as vitrines lacradas com madeira compensada, para evitar a ação do vento e de possíveis saqueadores-, a conversa era sui generis. "Ele conseguiu salada! Como nós não temos salada?", reclamava ao marido uma provável ex-cheerleader que mantinha os cabelos loiro-platinados. "Viu que a categoria caiu para 3? Os ventos agora só serão de 80 milhas (130 km/h) por hora", dizia um mexicano.
O governo federal decretou estado de emergência no Texas e na vizinha Louisiana. Houston anunciou um toque de recolher da 0h às 6h de hoje. A coleta de lixo foi cancelada. Nenhuma escola ou repartição pública abriu. Os hospitais foram reduzidos a atendimento de urgência, e a população considerada incapaz (presos, idosos e doentes), removida para o norte em ônibus. Na entrada de um desses ônibus, com viajantes de maioria negra, um policial branco fazia revista em busca de armas. Não era o dos presos, mas dos inválidos.
Nos aeroportos, as empresas aéreas avisavam que nenhum vôo decolaria de e para Houston após as 12h locais. A reportagem da Folha pegou o último vôo da Continental Airlines, vindo de Los Angeles. Deixou a Califórnia à 1h da manhã e chacoalhou quase todas as suas quatro horas de duração. Trazia poucas pessoas dentro. Consternado, o capitão fez um sorteio na classe econômica que "promoveu" passageiros até que a primeira classe lotasse.
Na chegada ao Aeroporto Internacional George Bush (o pai), a cena clássica: passageiros olhando o quadro eletrônico de aviso de vôos com uma sucessão de palavras em vermelho: "cancelado, cancelado, cancelado". Nos caixas automáticos, outro aviso, geralmente escrito à mão: "Acabou o dinheiro". Nos dois restaurantes que ainda resistem abertos, filas de dezenas de pessoas.

Química e nuclear
Os que ficaram tinham um motivo extra para se preocupar. A costa texana tem grande concentração de indústrias químicas e nucleares, e ambientalistas alertavam para o perigo de um vazamento tóxico. Segundo declarou o governador do Texas, Rick Perry, essas fábricas e as refinarias de petróleo foram esvaziadas, e quem toma conta são equipes compostas de alguns funcionários de cargos-chave, segurança e consultores de meio-ambiente.
Em entrevista coletiva na tarde de ontem, o prefeito Bill White recomendava à população: "Se você não saiu daqui até agora, não saia mais. E fique onde está, não procure abrigo fora". Apesar de ter dito anteriormente que nenhuma cidade do mundo se preparou tanto para um furacão, o político não previu que as pessoas que ficaram no meio do caminho da rota de fuga fossem tentar entrar em lugares públicos como hospitais em busca de abrigo. Foi o que aconteceu ontem. Como resposta, White forneceu uma lista de abrigos oficiais. São quatro, incluindo uma igreja metodista, todos já lotados.
Já Rick Perry pedia em Austin: "Nos vamos conseguir passar por isso. Fiquem calmos e rezem pelo Texas". Seu antecessor, George W. Bush, anunciou que viria a Houston, depois o destino foi transferido para San Antonio, cidade mais a Oeste, mais próxima da fronteira com o México e mais distante do furacão; por fim a viagem foi cancelada, "para que a visita presidencial não desvie a atenção dos esforços de retirada e resgate das cidades", segundo comunicado oficial.
Quando do Katrina, o presidente americano foi duramente criticado por demorar quatro dias para interromper suas férias (dois dias antes do término oficial) e lidar oficialmente com o desastre.
Segundo cálculos que o jornal "Washington Post" fez então, Bush caminha para ser o presidente americano que mais férias tirou na história recente do país, com 20% de seus dois mandatos passados em folga, ultrapassando o campeão anterior, Ronald Reagan. O ex-ator passou 335 dias de seus dois termos em férias. Bush já tem 319 dias no prontuário -e ainda conta com três anos e meio do segundo mandato para cumprir. E pelo menos mais quatro furacões previstos, só para 2005.


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