São Paulo, domingo, 24 de setembro de 2006

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ARTIGO

Construamos um novo "nós"

TARIQ RAMADAN
PARA O "MONDE"

Há motivo para inquietação. A repetição de atentados em todo o mundo e a guerra contra o terrorismo lançada depois de 11 de setembro de 2001, acrescidas aos problemas sociais e de imigração, terminaram por associar o islã à expressão de uma ameaça às sociedades ocidentais. O medo se instalou, acompanhado pelas reações emocionais que o caracterizam, legítimas, em certos casos, e em outras ocasiões manipuladas para fins políticos.
Os muçulmanos se vêem diante de uma escolha completamente explícita: ou adotam a atitude defensiva dos que se consideram "vítimas" ou encaram as dificuldades e passam a ser condutores de sua própria história. Nada mudará verdadeiramente se eles não decidirem tomar o controle, exercitando a crítica e autocrítica-construtiva.
As populações ocidentais compreendem, diante da presença cada vez mais perceptível de muçulmanos em suas sociedades, que as coisas mudaram.
Isso causa angústia e questões legítimas que ocasionalmente se exprimem sob a forma de confusão. Diante dessas questões, os muçulmanos precisam se assumir e demonstrar sua capacidade de viver e se comunicar serenamente em meio às sociedades ocidentais.
A "revolução na confiança" de que necessitamos passa, antes de tudo, por autoconfiança e confiança nas próprias convicções. O que é preciso é recuperar um legado e desenvolver uma atitude intelectual positiva e crítica. É preciso recordar que os ensinamentos do islamismo conclamam à espiritualidade, à reforma pessoal, e que cabe aos muçulmanos como dever de fé respeitar as leis dos países em que vivem.
Diante dos temores legítimos, os ocidentais muçulmanos não podem se satisfazer com uma atitude de minimizar o problema ou assumir a posição de vítimas. Devem elaborar um discurso crítico que denuncie as leituras radicais, literais e/ou culturais dos textos religiosos. É importante que eles se acautelem diante da confusão reinante nos debates sobre a sociedade: os problemas sociais e de imigração não são "problemas religiosos" e nada têm a ver com o islamismo.

Retórica
O discurso que até o passado recente era característico dos partidos de extrema direita tende lastimavelmente a se banalizar. Devido à escassez de idéias para promover o pluralismo cultural ou lutar contra os guetos sociais, numerosos políticos vêm desenvolvendo uma retórica perigosa baseada na proteção à identidade e na defesa dos "valores ocidentais".
Implicitamente, isso tudo resultará na distinção entre duas entidades: "Nós, o Ocidente", e "eles, os muçulmanos". Mesmo quando os cidadãos em questão sejam a um só tempo muçulmanos e ocidentais.
As propostas racistas se generalizam, e o passado é reinterpretado para negar ao islã qualquer participação na formação da identidade do Ocidente, que de agora em diante deve ser considerado como puramente "greco-romano" ou "judaico-cristão". Há exames de fronteira em vigor que testam arbitrariamente a "flexibilidade moral" dos imigrantes. O discurso daqueles que instrumentalizam o medo tem por objetivo produzir exatamente o contrário daquilo que dizem combater: ao acusar permanentemente os muçulmanos de não se integrarem às sociedades em que vivem e de se manterem isolados em função de sua opção religiosa, esses políticos e intelectuais na verdade desejam promover o isolamento dos devotos do islamismo.
Diante desse tipo de manipulação, os cidadãos de fé muçulmana devem fazer exatamente o contrário do que seria natural: em lugar de se esquivar, devem se fazer entender, abandonar os guetos religiosos, sociais e culturais em que vivem e sair ao encontro de seus concidadãos.

Reconciliação
O momento é de reconciliação. Mas, para que isso aconteça, devemos submeter nossas sociedades ao teste da crítica construtiva, sob o qual discurso e atos são comparados -verificar quais são os valores proclamados e quais são os valores praticados (no terreno social, nos direitos humanos, em termos de igualdade de tratamento entre homens e mulheres, entre pessoas de diferentes origens, etc.). Nossas sociedades têm necessidade de que surja um novo "nós". Um "nós" que reúna mulheres e homens (de todas as religiões ou de religião alguma), que se dedique concretamente a combater as contradições sociais. Esse "nós" representa a dinâmica dos cidadãos que desejam lutar juntos pela construção do futuro.
É antes de tudo em nível local que será preciso criar o futuro pluralista das sociedades ocidentais. É urgentemente necessário criar movimentos nacionais de promoção a iniciativas locais, sob os quais homens e mulheres de diferentes sensibilidades criem espaços de envolvimento comum: espaços de confiança onde nascerá o novo "nós". Devemos refletir juntos sobre os programas de ensino, por exemplo -como o de história, que precisa se tornar mais inclusivo. Sob pena de provocar uma disputa entre memórias feridas, é preciso que haja um ensino mais objetivo de "nossa" história, integrando a memória daqueles que participam da coletividade atual.
Os governos locais podem fazer muito para lutar contra as suspeitas que hoje imperam. Os cidadãos não devem hesitar em bater às suas portas e lembrar a seus titulares que em uma democracia é o eleito que está a serviço do eleitor, e não o contrário.
Uma revolução na confiança e o nascimento de novo "nós" promovido por movimentos nacionais de promoção a iniciativas locais: esse é o caminho para o envolvimento responsável de todos os cidadãos.


TARIQ RAMADAN é especialista em assuntos islâmicos e presidente da European Muslim Network

Tradução de PAULO MIGLIACCI


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