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ARTIGO
Construamos um novo "nós"
TARIQ RAMADAN
PARA O "MONDE"
Há motivo para inquietação.
A repetição de atentados em todo o mundo e a guerra contra o
terrorismo lançada depois de 11
de setembro de 2001, acrescidas aos problemas sociais e de
imigração, terminaram por associar o islã à expressão de uma
ameaça às sociedades ocidentais. O medo se instalou, acompanhado pelas reações emocionais que o caracterizam, legítimas, em certos casos, e em outras ocasiões manipuladas para
fins políticos.
Os muçulmanos se vêem
diante de uma escolha completamente explícita: ou adotam a
atitude defensiva dos que se
consideram "vítimas" ou encaram as dificuldades e passam a
ser condutores de sua própria
história. Nada mudará verdadeiramente se eles não decidirem tomar o controle, exercitando a crítica e autocrítica-construtiva.
As populações ocidentais
compreendem, diante da presença cada vez mais perceptível
de muçulmanos em suas sociedades, que as coisas mudaram.
Isso causa angústia e questões
legítimas que ocasionalmente
se exprimem sob a forma de
confusão. Diante dessas questões, os muçulmanos precisam
se assumir e demonstrar sua
capacidade de viver e se comunicar serenamente em meio às
sociedades ocidentais.
A "revolução na confiança"
de que necessitamos passa, antes de tudo, por autoconfiança
e confiança nas próprias convicções. O que é preciso é recuperar um legado e desenvolver
uma atitude intelectual positiva e crítica. É preciso recordar
que os ensinamentos do islamismo conclamam à espiritualidade, à reforma pessoal, e que
cabe aos muçulmanos como
dever de fé respeitar as leis dos
países em que vivem.
Diante dos temores legítimos, os ocidentais muçulmanos não podem se satisfazer
com uma atitude de minimizar
o problema ou assumir a posição de vítimas. Devem elaborar
um discurso crítico que denuncie as leituras radicais, literais
e/ou culturais dos textos religiosos. É importante que eles
se acautelem diante da confusão reinante nos debates sobre
a sociedade: os problemas sociais e de imigração não são
"problemas religiosos" e nada
têm a ver com o islamismo.
Retórica
O discurso que até o passado
recente era característico dos
partidos de extrema direita
tende lastimavelmente a se banalizar. Devido à escassez de
idéias para promover o pluralismo cultural ou lutar contra
os guetos sociais, numerosos
políticos vêm desenvolvendo
uma retórica perigosa baseada
na proteção à identidade e na
defesa dos "valores ocidentais".
Implicitamente, isso tudo resultará na distinção entre duas
entidades: "Nós, o Ocidente", e
"eles, os muçulmanos". Mesmo
quando os cidadãos em questão
sejam a um só tempo muçulmanos e ocidentais.
As propostas racistas se generalizam, e o passado é reinterpretado para negar ao islã
qualquer participação na formação da identidade do Ocidente, que de agora em diante
deve ser considerado como puramente "greco-romano" ou
"judaico-cristão". Há exames
de fronteira em vigor que testam arbitrariamente a "flexibilidade moral" dos imigrantes. O
discurso daqueles que instrumentalizam o medo tem por
objetivo produzir exatamente o
contrário daquilo que dizem
combater: ao acusar permanentemente os muçulmanos de
não se integrarem às sociedades em que vivem e de se manterem isolados em função de
sua opção religiosa, esses políticos e intelectuais na verdade
desejam promover o isolamento dos devotos do islamismo.
Diante desse tipo de manipulação, os cidadãos de fé muçulmana devem fazer exatamente
o contrário do que seria natural: em lugar de se esquivar, devem se fazer entender, abandonar os guetos religiosos, sociais
e culturais em que vivem e sair
ao encontro de seus concidadãos.
Reconciliação
O momento é de reconciliação. Mas, para que isso aconteça, devemos submeter nossas
sociedades ao teste da crítica
construtiva, sob o qual discurso
e atos são comparados -verificar quais são os valores proclamados e quais são os valores
praticados (no terreno social,
nos direitos humanos, em termos de igualdade de tratamento entre homens e mulheres,
entre pessoas de diferentes origens, etc.). Nossas sociedades
têm necessidade de que surja
um novo "nós". Um "nós" que
reúna mulheres e homens (de
todas as religiões ou de religião
alguma), que se dedique concretamente a combater as contradições sociais. Esse "nós" representa a dinâmica dos cidadãos que desejam lutar juntos
pela construção do futuro.
É antes de tudo em nível local
que será preciso criar o futuro
pluralista das sociedades ocidentais. É urgentemente necessário criar movimentos nacionais de promoção a iniciativas locais, sob os quais homens
e mulheres de diferentes sensibilidades criem espaços de envolvimento comum: espaços de
confiança onde nascerá o novo
"nós". Devemos refletir juntos
sobre os programas de ensino,
por exemplo -como o de história, que precisa se tornar mais
inclusivo. Sob pena de provocar
uma disputa entre memórias
feridas, é preciso que haja um
ensino mais objetivo de "nossa"
história, integrando a memória
daqueles que participam da coletividade atual.
Os governos locais podem fazer muito para lutar contra as
suspeitas que hoje imperam.
Os cidadãos não devem hesitar
em bater às suas portas e lembrar a seus titulares que em
uma democracia é o eleito que
está a serviço do eleitor, e não o
contrário.
Uma revolução na confiança
e o nascimento de novo "nós"
promovido por movimentos
nacionais de promoção a iniciativas locais: esse é o caminho
para o envolvimento responsável de todos os cidadãos.
TARIQ RAMADAN é especialista
em assuntos islâmicos e presidente
da European Muslim Network
Tradução de PAULO MIGLIACCI
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