São Paulo, domingo, 24 de setembro de 2006

Texto Anterior | Índice

Onda xenófoba volta a assombrar a Rússia um século depois

Assassinatos têm como alvo caucasianos, centro-asiáticos e ciganos; neonazistas incitam ataques e, para sociólogo, país virou o mais xenófobo na Europa

MARIE JÉGO
DO "LE MONDE"

Estão de volta na Rússia os pogroms, ataques contra membros de uma etnia dada, acompanhados de violência e às vezes assassinatos, que foram comuns no país entre 1880 e 1921. Nessa época, os pogroms tinham como alvos os judeus. Hoje, estão na mira caucasianos, imigrantes da Ásia central, asiáticos e ciganos. Até a primavera deste ano, os assassinatos de pessoas de aspecto "não eslavo" -33 nos nove primeiros meses de 2006- representavam a expressão cotidiana da xenofobia na Rússia. Mas a situação vem descrevendo uma virada mais inquietante. Em maio, na cidade de Kharagun (região de Tchita), os choques étnicos opuseram russos e azerbaijanos, com saldo de um morto. Um mês mais tarde, no povoado de Targuis (região de Irkutsk), um pogrom contra chineses terminou com a expulsão de 75 deles. O ódio se difunde em todo o território da Federação Russa, onde convivem 50 nacionalidades e 17 milhões de imigrantes. "A intolerância étnica, o medo dos imigrantes e o ódio aumentaram tanto desde o início da segunda guerra da Tchetchênia, em 1999, que a Rússia se tornou o país mais xenófobo da Europa", diz o sociólogo Lev Gudko. Entre 31 de agosto e 4 de setembro um verdadeiro festival de ódio contra os caucasianos explodiu em Kondopoga, uma pequena cidade industrial próxima da fronteira com a Finlândia. Durante cinco dias, uma multidão descontrolada atacou as propriedades dos "tchiornye" (os "morenos"), investindo contra quitandas, oficinas mecânicas e carros, atirando pedras e coquetéis Molotov e exigindo sua "deportação". Tudo começou em Kondopoga com uma briga entre russos e caucasianos no café-restaurante Tchaika, cujo proprietário é azerbaijano. Na noite de 29 de agosto, um grupo de jovens russos brigou com o garçom de origem caucasiana e seu patrão. Partiu-se para o enfrentamento físico. Os dois caucasianos chamaram "conterrâneos" para vir socorrê-los. Alertada, a polícia evitou intervir. Na briga, que degenerou em pancadaria, dois jovens russos foram mortos com armas brancas. Dois dias mais tarde, 2.000 pessoas se reuniram no centro de Kondopoga. "Morenos mataram gente nossa!" gritava a multidão. O clima foi atiçado por uma organização ultranacionalista, o Movimento Contra a Imigração Ilegal (DPNI). Vindos de Moscou e São Petersburgo, os militantes do grupúsculo xenófobo pró-eslavo organizaram a manifestação, com apoio de neonazistas. Sua proposta consiste em "limpar a Rússia" dos "tchiornye", dar prioridade aos russos étnicos e expulsar os ilegais "em 24 horas". Em pânico, 200 caucasianos abandonaram o local. A imprensa, os políticos e os ultranacionalistas em pouco tempo passaram a fazer a mesma análise dos acontecimentos. Se a situação saiu do controle em Kondopoga, não foi devido à intolerância étnica. Tratam-se de "problemas sociais", dizem. Os caucasianos escarnecem da população russa, "ostentam riqueza" -sem falar de seus "esquemas mafiosos". Em cinco dias de loucura em Kondopoga, nenhuma autoridade, nenhum político, nenhum intelectual ou artista considerou apropriado condenar o pogrom. Uma dúvida permanece: será que o pogrom em Kondopoga teria assumido dimensões tão grandes sem a ingerência dos ultranacionalistas e dos neonazistas? Segundo o cientista político Marc Ournov, "organizações como o DPNI não poderiam existir sem contar com o apoio de uma parte da elite política russa. No interior desta, as opiniões divergem, mas alguns de seus membros pensam que esse tipo de organização é útil para o poder". As organizações ultranacionalistas e neonazistas -União Eslava, Unidade Nacional Russa, Partido Nacional-Socialista- vêm ganhando força nos últimos seis anos. Elas gozam na Rússia de uma liberdade que pode ser motivo de inveja para muitas ONGs, submetidas a pressões burocráticas intensas desde que foi aprovada uma lei sobre seus estatutos.

Fascismo na moda
A se acreditar na imprensa, hoje, na Rússia, "o fascismo está na moda". Em uma edição recente, a versão russa da "Newsweek" revelou a existência de uma "cultura fascista subterrânea", que encontra expressão em, entre outros, Tesak (o Navalha), um jovem diretor de clipes violentos. Não é estranho que as idéias do nacional-socialismo encontrem eco no país que pagou o preço mais pesado -27 milhões de mortos- pela luta contra o nazismo? "Muitos não vêem essas idéias como sendo nazistas, e, para muitos outros, Hitler não fez nada de mal exceto ter atacado a URSS", explica Alexandre Verkhovski, da ONG Sova, especializada na análise da xenofobia crescente.


Tradução de CLARA ALLAIN


Texto Anterior: Palestinos: Governo de coalizão volta à estaca zero
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.