São Paulo, domingo, 24 de outubro de 2004

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ARTIGO

Sikhs da Índia ainda esperam por justiça

4.jan.2004/France Presse
Sikh indiano com a kirpan (espada cerimonial) em seu turbante entra em tanque sagrado diante do Templo Dourado, em Amritsar


BARBARA CROSSETTE

Manmohan Singh, que se tornou primeiro-ministro da Índia inesperadamente em maio, não é só um perito em finanças educado em Oxford. Também é o primeiro sikh a dirigir um governo indiano, e seus colegas sikhs, uma próspera minoria religiosa, têm 20 anos de insatisfação com o Partido do Congresso, que ele agora dirige, a resolver. Será que podem contar com ele?
Em 31 de outubro de 1984, a premiê Indira Gandhi foi morta a tiros por seus guarda-costas sikhs, um ato de vingança provocado por sua ordem ao Exército indiano de atacar o mais sagrado dos templos sikhs, o Templo Dourado de Amritsar, em junho daquele ano. A decisão de Indira Gandhi tinha por objetivo desalojar um militante sikh que estava barricado no templo; antes, ela o tinha encorajado, como um instrumento para destruir a unidade política do Punjab, o lar tradicional dos sikhs e coração da "revolução verde" indiana. Foi um erro fatal.
Nos dias seguintes à sua morte, multidões encorajadas pelo Partido do Congresso, que ela liderava, invadiram os bairros sikhs, matando homens e meninos com selvagem brutalidade, e ateando fogo aos mortos e aos ainda vivos. Sikhs foram arrastados por veículos pelas ruas e mortos nas estradas; muitos foram mortos a golpes de facão em trens.
Cerca de 3.000 sikhs (o número continua em disputa) foram assassinados em uma sucessão de atrocidades que merece o nome de pogrom, a maioria dos quais em Delhi. Em muitos bairros, a polícia simplesmente desapareceu. Só quando o Exército interferiu a matança e a destruição de propriedades foram contidas.
"Ontem, nós choramos pela Índia", escreveu o jornal "Indian Express", em editorial de 2 de novembro. "Hoje, choramos pela Índia."
O mês de novembro marcará o 20º aniversário desses dias de terror e morte. Diversos relatórios de grupos de defesa dos direitos humanos sobre as matanças e mais de meia dúzia de comissões oficiais de investigação do governo surgiram e se foram, na maioria dos casos sem resultado.
Nenhum político indiano foi acusado de cumplicidade ou de fomentar os ataques, em julgamento formal. Nenhuma das autoridades responsáveis pela espantosa negligência da polícia renunciou ao posto. Pelo contrário: o ministro então encarregado dos assuntos internos, P. V. Narasimha Rao, prosperou na carreira e se tornou premiê sete anos depois.
Em 1992, foi Narasimha Rao, então premiê, que uma vez mais se absteve de intervir quando uma multidão de hindus invadiu e demoliu uma mesquita do século 16 na cidade de Ayodhya (norte). Esse ataque, por sua vez, serviu como prelúdio ao massacre de cerca de dois mil muçulmanos, em 2002, no Estado de Gujarat -ironicamente, o lugar de nascimento de Mahatma Gandhi.
Em que outra democracia madura, perguntam os ativistas de direitos humanos e editorialistas de jornais indianos, ataques tão generalizados e com tão grande número de vítimas contra uma minoria passariam impunes, e por duas décadas? Por que os comandantes da polícia e as figuras públicas indianas jamais foram responsabilizados por seus erros?
O número de sikhs mortos na Índia durante aqueles poucos dias de 1984 é quase equivalente ao de todas as mortes e desaparecimentos no Chile durante os 17 anos de ditadura militar do general Augusto Pinochet, entre 1973 e 1990.
Segundo a comissão de reconciliação e justiça chilena, estabelecida depois da queda de Pinochet para averiguar, na medida do possível, o destino dos mortos e desaparecidos, houve 2.095 execuções sem processo judicial no período, e 1.102 pessoas desapareceram e foram dadas por mortas.
Não só o Chile mas também Argentina, Peru, México, África do Sul e Etiópia, entre outros países, vêm tentando tratar das atrocidades cometidas nas últimas décadas. A Índia, ao se recusar a confrontar sua sangrenta história recente, oferece um contraste gritante diante dessas nações.
No caso dos sikhs, as mortes não se encerraram com a matança em massa promovida em 1984. Por uma década depois disso, enquanto o governo central executava sua campanha de repressão impiedosa aos distúrbios no Punjab, os sikhs militantes, que se haviam voltado ao separatismo e ao terrorismo tanto contra os hindus como contra sikhs moderados, foram caçados e exterminadas às centenas, acompanhados por incontáveis vítimas inocentes.
Os corpos foram freqüentemente eliminados por meio de cremações apressadas e ilegais, ou lançados aos rios e canais; outros ainda foram sepultados sem que suas famílias fossem notificadas. Em 1996, a Corte Suprema da Índia sustentou conclusão do Serviço Central de Investigação de que 2.097 corpos haviam sido incinerados sem notificação ou documentação adequada, usualmente por ordem da polícia, em três crematórios da área de Amritsar, para mencionar apenas um local. Há outros crematórios sob suspeita em outros pontos do Estado.
Jagdish Sharan Verma, presidente da Suprema Corte indiana entre 1997 e 1998, é um dos principais ativistas do Judiciário em direitos humanos. Pouco após se aposentar como juiz, foi indicado para a presidência da Comissão Nacional de Direitos Humanos, posto que deixou em 2003.
Embora não estivesse em Delhi durante a matança nos bairros sikh, mais tarde se envolveu profundamente na investigação e na tentativa de solução dos casos de cremações ilegais no Punjab. Também investigou em pessoa os assassinatos de muçulmanos em Gujarat, em 2002.
Verma tem um senso muito claro dos pontos em que o sistema indiano fracassa seriamente, a despeito das instituições democráticas do país, e daquilo que precisaria ser feito para conter os excessos. "A força policial é politizada", disse Verma. "A polícia dos Estados muitas vezes é acusada de ser, e é vista como, um instrumento dócil dos políticos que estão no poder."
Sua recente experiência pessoal no Gujarat sublinha essas percepções populares. Os bairros muçulmanos ficam desprotegidos e abertos aos ataques de inúmeras gangues homicidas.
"Meu relatório sobre Gujarat apontava que havia dois políticos de primeiro escalão, ministros, presentes na sala de comando da polícia e decidindo em que regiões a polícia deveria ou não agir", disse. Em 1984, os sikhs foram deixados em situação igualmente vulnerável em Delhi.
Kuldip Nayar, importante ativista de direitos humanos, escritor e ex-alto comissário indiano em Londres, disse que a matança extrajudicial dos sikhs continuou depois de 1984 em nome do combate ao terrorismo. "No Punjab, quando o terrorismo estava sendo reprimido, muita gente foi simplesmente eliminada", disse. "Como ativista de direitos humanos, acredito que isso seja terrível. Mas sempre há quem diga que o Punjab ficou mais seguro."
O juiz Verma, em sua casa no subúrbio, longe da cena política de Delhi, pensa muito sobre o terrorismo e o terrorismo de Estado. Desde os ataques de 11 de setembro de 2001 contra os Estados Unidos, disse, está preocupado com a disposição das democracias de ignorar as formalidades judiciais e ampliar os poderes dos governos, com o suposto objetivo de enfrentar o terrorismo.
Verma lutou, sem sucesso, contra a imposição de uma nova e severa lei indiana de prevenção do terrorismo, depois dos ataques. Mais poder e menos fiscalização para os policiais não é nem de longe o que a Índia precisa.
"É preciso lutar contra o terrorismo", disse. "Trata-se da maior violação de direitos humanos que existe. Mas a luta precisa ser travada nos limites da Constituição e da lei. Quando o terrorismo é combatido por meio de terrorismo de Estado, a lei e a ordem perdem o rumo. As normas básicas da democracia precisam ser respeitadas", afirmou.
"É preciso que haja diferença entre um terrorista e uma agência policial cujo objetivo é defender e implementar o domínio da lei. É exatamente em torno disso que gira a democracia."

Barbara Crossette é jornalista americana. Dirigiu a sucursal do "New York Times" em Nova Delhi (Índia) de 1988 a 1991. Este texto é uma versão menor, feita pela autora para a Folha, de um artigo publicado na edição corrente (de verão) do "World Policy Journal".


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