São Paulo, segunda-feira, 24 de outubro de 2011

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ENTREVISTA DA 2ª JORGE LANATA

Néstor Kirchner é invenção de Cristina

PARA JORNALISTA, PRESIDENTE VAI TENTAR REFORMAR CONSTITUIÇÃO PARA UM TERCEIRO MANDATO

Mariana Eliano/ Folhapress
Escritor e jornalista Jorge Lanata em sua casa, no bairro portenho da Recoleta

LUCAS FERRAZ
SYLVIA COLOMBO

DE BUENOS AIRES

Um dos jornalistas mais combativos da Argentina, Jorge Lanata, 51, diz estar convencido de que Cristina Kirchner buscará a reforma da Constituição para perpetuar-se no poder, embora ressalte que as reeleições sempre tenham fracassado no país.
Cofundador do jornal "Página/12", hoje aliado do governo, Lanata fez carreira no rádio, conduziu um dos programas de política de maior audiência na TV, escreveu livros de história e produziu documentários _ atualmente trabalha em um sobre os homens que mudaram o mundo, tendo entre os entrevistados o ex-presidente Lula.
A seguir, trechos da entrevista dele à Folha:

 

Folha - O que vai acontecer na Argentina com a reeleição de Cristina?
Jorge Lanata -
É muito provável que comece a discussão sobre a re-reeleição. O que não se faz no começo do governo não se faz mais. Depois das eleições, o relógio começa a andar para trás. Ela sabe que a partir de agora o que tem é tempo de desconto, não a favor.
A pergunta que se faz hoje, se ela vai ou não querer mudar a Constituição para tentar o terceiro mandato, me parece infantil. Não há razão para achar que não, pois eles já fizeram isso em Santa Cruz [província do Sul onde os Kirchner começaram na política].

Para isso, Cristina não precisará do apoio daqueles que eventualmente podem almejar sucedê-la?
O segundo escalão é muito fraco, por isso ela vai querer mais um mandato. Senão, o kirchnerismo desaparece. Foi por esse motivo que ela concorreu agora, e por isso buscará mais um período. Cristina começou a estimular uma nova geração com o "La Cámpora" [grupo de militantes jovens comandados pelo filho, Máximo], mas estão muito longe de oferecerem um nome.

Por que o sucesso de Cristina?
Por várias razões. Primeiro porque as pessoas estão melhor hoje do que estavam há seis, sete anos atrás. Não estão melhor do que nos anos 90, mas o cenário já não é o mesmo do que o do pós-crise de 2001.
Depois, as primárias tiveram uma influência importante. É como uma profecia que está por ser cumprida. Quando você pensa que uma coisa vai crescer, ela cresce. Se todos acreditam que ela vai ganhar, ela ganha.

Qual a sua opinião sobre Cristina?
Ela crê que é mais inteligente do que é, e é o pior do que pode passar a alguém. Ela parece uma mulher muito só. É muito difícil ter informação sobre Cristina, ela sempre se blindou muito. Era muito difícil chegar até ela, não tem amigas. Kirchner também era assim. Eles nunca tinham viajado para o exterior, e não eram pobres, tinham dinheiro. São pessoas muito estranhas.

Quais são os pontos positivos do governo?
É bom o governo fazer com que as pessoas desconfiem dos jornais. Principalmente em um país que sempre acreditou em tudo, é bom duvidar um pouco. O problema é construir um monopólio estatal. Que o Estado desempenhe um papel mais forte na economia me parece bem. Ou que defenda a indústria nacional. A política de direitos humanos é boa, mas há aí uma armadilha. Algumas propagandas eleitorais diziam que o governo tem a ver com a recuperação dos netos [sequestrados na ditadura]. Não tem nada a ver, quem recupera é a Justiça. Eles dizem coisas que nunca fizeram.

Como acha que vai ser o segundo governo de Cristina?
As reeleições na Argentina nunca funcionaram, houve quatro, Julio Argentino Roca (que governou entre 1880-86 e 1898-04), Hipólito Yrigoyen (1916-1922 e 1928-30), Juan Domingo Perón (1946-1955 e 1973-1974) e Menem (1989-1999). Perón e Menem governaram por dois mandatos diretos, o segundo sempre foi pior que o primeiro. Porque houve uma impunidade muito grande, eles se animaram a fazer coisas que não faziam antes por medo.

Essa votação de mais de 50% significa mais que o governo teve sucesso ou que a oposição fracassou?
O mais importante não é o fato de ganhar por 50%, mas que o segundo colocado tenha menos do que 20%. Isso é novo. Sempre houve uma força com mais de 25%. A oposição está atomizada.

E quais as razões?
Menem destruiu a ideia de partidos, foi quem começou com a ideia de candidatos famosos que não vinham da política. Hoje este governo fala para a esquerda e governa para a direita. O governo é muito parecido com o primeiro peronismo. Perón brigava com os jornais como esse governo briga com o Clarín. Queria controlar o abastecimento de papel. Perón inventou o sistema entre gorilas (antiperonistas) e não-gorilas (peronistas), uma divisão que não existia na sociedade argentina. Os kirchneristas retomaram o discurso excludente, ou você está com eles ou é um traidor. Isso favorece para que a oposição se desmembre. O kirchnerismo é um governo peronista típico, com uma fascinação típica pelo poder, que sabem exercê-lo, coisa que os radicais não sabem. Não os colocaria na direita ou esquerda, são peronistas típicos, algo muito especifico. Eles têm uma mentalidade muito fechada. As pessoas que decidem no governo são poucas, três ou quatro pessoas.

Faltam atores novos? Há dez anos, se dizia "Que se vayan todos" (que todos vão embora). Hoje ainda estão todos aí.
Sim, ninguém se foi. Mas isso porque se tratou de um movimento mais cultural do que político. Como são hoje os indignados na Europa.

Por que cultural?
Maio de 1968 foi um movimento cultural, não político. Complicou a vida de De Gaulle, mas não mudou o poder. Tianamen foi cultural mas não político. Não mudou o governo, mas há uma China antes e depois de Tianamen. Os indignados são um fenômeno cultural, não político. Eles não querem fazer um partido político, não têm líderes nem programa. Não querem se transformar no mesmo que criticam. O que esses protestos têm de bom é que se metem no imaginário de todos. Mas isso demora, não acontece em um ano. Aqui na Argentina ainda se vivem os efeitos de 2001, com a ruptura da credibilidade das pessoas com a relação política.

Você disse que estava cansado da ditadura. Ainda está?
Eu falei que estava cansado de ver usarem a ditadura para tapar outras coisas. O governo a usou politicamente e prostituiu os organismos de direitos humanos. Não foi algo que começou neste governo, mas sim no de Menem. Os Kirchner agravaram isso, deram indenizações a guerrilheiros que morreram combatendo contra o exército constitucional, e não contra a ditadura. Também disse isso porque não se presta atenção ao fato de que se violam os direitos humanos hoje.

A morte de Néstor Kirchner salvou o kirchnerismo?
Néstor é um invento de Cristina. Não me lembro de nenhum discurso de Néstor ou Cristina, que ideia transmitiram? Não há, o que existe é uma construção midiática muito forte. Eles trataram muito bem o pós morte, o luto, o velório, o aparato de propaganda, tudo. Desde a ditadura não havia um aparato de propaganda tão grande.

E o discurso dos kirchneristas sobre a imprensa?
É delirante o que querem fazer com o ofício. Se me contam uma coisa, o que quero saber é se é verdade, e depois quem foi que a contou. Não é possível que isso seja mais importante, se é assim o fato desaparece. Eles dizem que há um monopólio da imprensa. É verdade. Mas foi o governo quem construiu esse monopólio.

A Argentina caminha para um autoritarismo de países como a Venezuela?
São sociedades distintas, a situação social da Venezuela é mais marcada. Há muito mais violência à liberdade de imprensa lá do que pode haver aqui. Mas o conceito é o mesmo. Não creio que vamos chegar a isso, mas há um traço geral que vai para esse lado. O governo vai fazer de tudo para acabar com Clarín. Onde isso vai acabar? Não faço ideia. Nesse sentido o governo está mais perto da Venezuela do que o governo Dilma. E não me parece que o governo Chávez seja de esquerda, é autoritário.


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