São Paulo, segunda-feira, 25 de janeiro de 2010

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HAITI EM RUÍNAS

"Estamos recomeçando abaixo de zero"

Para representante da ONU no Haiti, Edmond Mulet, levará "muitos, muitos e muitos anos" até que organismo deixe país caribenho

Diplomata guatemalteco avalia que situação haitiana é pior que a dos afetados pelo tsunami em 2004 devido à ausência do Estado

Alan Marques/Folha Imagem
Criança haitiana recebe suprimento distribuído por soldados brasileiros e americanos em Porto Príncipe; para representante da ONU, reconstrução levará anos

FÁBIO ZANINI
ENVIADO ESPECIAL A PORTO PRÍNCIPE

A ajuda ao Haiti entra agora numa segunda fase, que exige planejamento muito maior do que se viu até aqui, alerta o representante da ONU no país, Edmond Mulet. É grande o risco de desperdício e desvio de recursos.
"Estamos mudando de uma fase de resposta urgente para uma de assistência humanitária, que tem de ser mais estruturada", afirma o guatemalteco Mulet, em entrevista à Folha. Ele diz que é preciso evitar erros do passado cometidos pela comunidade internacional e teme que um novo desastre em outro lugar relegue o Haiti de novo ao esquecimento.
Mulet, subsecretário da ONU para operações de paz, foi chamado às pressas para chefiar a Minustah (Missão das Nações Unidas para a Estabilização do Haiti) após a morte do tunisiano Hédi Annabi e de seu vice, o brasileiro Luiz Carlos da Costa, no tremor.
Ele diz ainda que o desastre foi pior que o tsunami que atingiu a Ásia em 2004, e prevê que a missão, chefiada pelo Brasil, ficará no país por "muitos, muitos e muitos anos" ainda.

 

FOLHA - Por quanto tempo a Minustah deve ficar no Haiti?
EDMOND MULET - Em 2012, provavelmente, sairíamos. Mas com esse cataclismo, temos de revisar tudo. A presença da ONU aqui será de muitos, muitos e muitos anos ainda. Nós não estamos recomeçando do zero. Estamos abaixo de zero.

FOLHA - O ministro brasileiro da Defesa, Nelson Jobim, previu mais cinco anos.
MULET - Acho que ele estava sendo otimista.

FOLHA - A Minustah precisa de mais tropas?
MULET - O Conselho de Segurança já autorizou mais 3.500 soldados. É suficiente. Claro que temos riscos e desafios. Na penitenciária nacional, dos 8.000 presos, 5.500 escaparam. São os problemáticos, os líderes de gangues. A única coisa que sabem fazer na vida é se r criminosos. Eles já estão se reorganizando, tentando reaver controle de alguns bairros.

FOLHA - O sr. está confortável com a presença dos EUA?
MULET - A relação é muito cordial e construtiva. O acordo que assinei com eles diz que serão responsáveis por assistência humanitária e nós ficaremos com nosso papel tradicional de proporcionar segurança.

FOLHA - Por que não usá-los na segurança do país?
MULET - Não acho que uma força temporária como a dos americanos tenha condições de lidar com esse tipo de coisa. O que eles sabem sobre quem é o líder da gangue? Eles não têm uma relação com a polícia do Haiti para trabalhar de forma coordenada.

FOLHA - Como o sr. classifica a resposta internacional?
MULET - No começo, pessoas pegavam um Cessna em Atlanta [EUA] com médicos e pousavam aqui, sem nos perguntar onde ir. Outras vinham da República Dominicana de carro trazendo suco, arroz, pão. Tínhamos 57 equipes internacionais de resgate trabalhando individualmente. Isso salvou milhares de vidas. Mas estamos mudando de uma fase de resposta urgente para uma de assistência humanitária. E essa fase tem de ser mais estruturada e coordenada. Temos de planejar de maneira melhor.

FOLHA - A resposta internacional num primeiro momento é sempre generosa. Mas depois, na hora da reconstrução, os recursos secam...
MULET - É verdade. Algo acontece em outro lugar, um terremoto, um tsunami... O importante no Haiti é que o sentimento de solidariedade fique. Há um compromisso da comunidade internacional de que algo diferente precisa ser feito. As pessoas percebem que é muito mais barato política e financeiramente ter um grande esforço de reconstrução agora, não o círculo vicioso que tivemos durante anos.

FOLHA - Em sua carreira, o sr. já tinha visto algo assim?
MULET - Nunca. Lidei com situações no Afeganistão, Congo, Sudão, Líbano... Mas nada como aqui. Aqui, o Estado já era fraco antes. Por exemplo, em Aceh, na Indonésia, durante o tsunami, a devastação foi maciça, mas você tinha um Estado muito forte, muito estruturado. Nos terremotos no Paquistão, a mesma coisa. Mas aqui...

FOLHA - Foi pior do que o tsunami?
MULET - Sim, sim. Não havia um Estado aqui.


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