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HAITI EM RUÍNAS
"Estamos recomeçando abaixo de zero"
Para representante da ONU no Haiti, Edmond Mulet, levará "muitos, muitos e muitos anos" até que organismo deixe país caribenho
Diplomata guatemalteco avalia que situação haitiana é pior que a dos afetados pelo tsunami em 2004 devido à ausência do Estado
Alan Marques/Folha Imagem
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Criança haitiana recebe suprimento distribuído por soldados brasileiros e americanos em Porto Príncipe; para representante da ONU, reconstrução levará anos
FÁBIO ZANINI
ENVIADO ESPECIAL A PORTO PRÍNCIPE
A ajuda ao Haiti entra agora
numa segunda fase, que exige
planejamento muito maior do
que se viu até aqui, alerta o representante da ONU no país,
Edmond Mulet. É grande o risco de desperdício e desvio de
recursos.
"Estamos mudando de uma
fase de resposta urgente para
uma de assistência humanitária, que tem de ser mais estruturada", afirma o guatemalteco
Mulet, em entrevista à Folha.
Ele diz que é preciso evitar
erros do passado cometidos pela comunidade internacional e
teme que um novo desastre em
outro lugar relegue o Haiti de
novo ao esquecimento.
Mulet, subsecretário da
ONU para operações de paz, foi
chamado às pressas para chefiar a Minustah (Missão das
Nações Unidas para a Estabilização do Haiti) após a morte do
tunisiano Hédi Annabi e de seu
vice, o brasileiro Luiz Carlos da
Costa, no tremor.
Ele diz ainda que o desastre
foi pior que o tsunami que atingiu a Ásia em 2004, e prevê que
a missão, chefiada pelo Brasil,
ficará no país por "muitos,
muitos e muitos anos" ainda.
FOLHA - Por quanto tempo a Minustah deve ficar no Haiti?
EDMOND MULET - Em 2012, provavelmente, sairíamos. Mas
com esse cataclismo, temos de
revisar tudo. A presença da
ONU aqui será de muitos, muitos e muitos anos ainda. Nós
não estamos recomeçando do
zero. Estamos abaixo de zero.
FOLHA - O ministro brasileiro da
Defesa, Nelson Jobim, previu mais
cinco anos.
MULET - Acho que ele estava
sendo otimista.
FOLHA - A Minustah precisa de
mais tropas?
MULET - O Conselho de Segurança já autorizou mais 3.500
soldados. É suficiente. Claro
que temos riscos e desafios. Na
penitenciária nacional, dos
8.000 presos, 5.500 escaparam.
São os problemáticos, os líderes de gangues. A única coisa
que sabem fazer na vida é se r
criminosos. Eles já estão se
reorganizando, tentando reaver controle de alguns bairros.
FOLHA - O sr. está confortável com
a presença dos EUA?
MULET - A relação é muito cordial e construtiva. O acordo que
assinei com eles diz que serão
responsáveis por assistência
humanitária e nós ficaremos
com nosso papel tradicional de
proporcionar segurança.
FOLHA - Por que não usá-los na segurança do país?
MULET - Não acho que uma força temporária como a dos americanos tenha condições de lidar com esse tipo de coisa. O
que eles sabem sobre quem é o
líder da gangue? Eles não têm
uma relação com a polícia do
Haiti para trabalhar de forma
coordenada.
FOLHA - Como o sr. classifica a resposta internacional?
MULET - No começo, pessoas
pegavam um Cessna em Atlanta [EUA] com médicos e pousavam aqui, sem nos perguntar
onde ir. Outras vinham da República Dominicana de carro
trazendo suco, arroz, pão. Tínhamos 57 equipes internacionais de resgate trabalhando individualmente. Isso salvou milhares de vidas. Mas estamos
mudando de uma fase de resposta urgente para uma de assistência humanitária. E essa
fase tem de ser mais estruturada e coordenada. Temos de planejar de maneira melhor.
FOLHA - A resposta internacional
num primeiro momento é sempre
generosa. Mas depois, na hora da reconstrução, os recursos secam...
MULET - É verdade. Algo acontece em outro lugar, um terremoto, um tsunami... O importante no Haiti é que o sentimento de solidariedade fique.
Há um compromisso da comunidade internacional de que algo diferente precisa ser feito.
As pessoas percebem que é
muito mais barato política e financeiramente ter um grande
esforço de reconstrução agora,
não o círculo vicioso que tivemos durante anos.
FOLHA - Em sua carreira, o sr. já tinha visto algo assim?
MULET - Nunca. Lidei com situações no Afeganistão, Congo,
Sudão, Líbano... Mas nada como aqui. Aqui, o Estado já era
fraco antes. Por exemplo, em
Aceh, na Indonésia, durante o
tsunami, a devastação foi maciça, mas você tinha um Estado
muito forte, muito estruturado.
Nos terremotos no Paquistão, a
mesma coisa. Mas aqui...
FOLHA - Foi pior do que o tsunami?
MULET - Sim, sim. Não havia
um Estado aqui.
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