São Paulo, domingo, 25 de fevereiro de 2007

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"Quero romper com elitismo", diz Ségolène

Candidata socialista ri dos que gracejam de suas supostas gafes, ataca conservadores e defende democracia participava

Ela também critica rivais dentro do PS e diz que o ex-premiê Lionel Jospin ficou irado com candidatura de "garota das províncias"

Michel Euler - 21.fev.2007/Associated Press
Ségolène Royal; "quando outros erram, foi só um lapso", diz ela


BERNARD-HENRI LÉVY

É claro que ela sabia, já antes de nos encontrarmos, que não sou -na verdade, estou longe de ser- partidário fervoroso de sua candidatura à Presidência da França. Mas isso não pareceu incomodar Ségolène Royal.
E se, naqueles primeiros momentos, naquele salão de jantar de um hotel, eu percebi um indício de desconfiança, o que de fato me chamou a atenção foi seu espantoso frescor, sua graça despreocupada.
Começamos falando de suas célebres gafes, que se tornaram o grande assunto de Paris e que variam desde seus comentários sobre o Québec (para o qual ela afirmou desejar "a soberania e liberdade") até sua incerteza sobre exatamente quantos submarinos nucleares possui a Marinha francesa. Ela ri alto, como uma garota.
"Bem, pelo que eu sei, não fui eu quem falou em arrasar Teerã -isso foi o presidente da República, Jacques Chirac." Ela prossegue: "Não é divertido? Quando outra pessoa comete um erro ao falar, dizemos que foi um lapso. Mas quando sou eu, é um equívoco gigantesco, um erro."
E então, em tom mais sério, com um brilho frio nos olhos e um ligeiro enrugar dos círculos leves debaixo deles: "De qualquer maneira, estão me perseguindo -a mim, a meus colegas, meus filhos, eu mesma e minhas supostas gafes. Nada os faz parar; sou uma presa fácil."
Observo que não estamos falando de meras gafes. Quando ela estava em Pequim, por exemplo, falou alguma coisa sobre a maravilhosa rapidez da Justiça chinesa. "Isso foi inteiramente tirado de contexto. Eu estava falando da Justiça comercial, não criminal."
Ótimo, digo. Mas o que foi problemático foi o fato de ela já estar recuando na questão dos direitos humanos, enquanto Nicolas Sarkozy - o rival conservador da candidatura socialista de Royal ao Palácio do Eliseu- está assumindo posições fortes em relação a Darfur, à Tchetchênia, às ditaduras.
"Oh, Sarkozy e as ditaduras!" Ela solta outra gargalhada, como uma menina. "A direita e as ditaduras -isso é algo que eu preciso ver. Mas, sobre minha viagem à China, você precisa compreender que eu realmente reiterei minhas preocupações com o não respeito deles pelos direitos humanos."
Ahá, digo eu. E por que a sra. os chama de "direitos humanos", e não de os Direitos do Homem-, como faz o resto da França?

Direitos humanos
Nós nos lançamos num diálogo estranho, no qual eu explico que, para a esquerda antitotalitária, os Direitos do Homem não são uma simples frase, mas um conceito -um conceito carregado de memórias de resistência. E ela, argumentativa, com uma intransigência de repente visível em seu rosto, afirma que é exatamente o contrário -que, quando se fala em "Direitos do Homem", ela não consegue passar por cima do sentido literal das palavras, o direito do homem em oposição ao da mulher.
"Um dia", ela continua, "eu estava conversando com uma mulher de um vilarejo no Mali. Para ela, era exatamente tão simples assim: se você diz "Direitos do Homem", ela entende que são os direitos da população masculina, que domina nessa região há séculos. Então eu escolhi o ponto de vista dela, que, por sinal, é o mesmo de qualquer criança que se encontra na rua."
Então, como está a situação com os rivais dela? Não fica claro se é ela quem não quer o apoio do Partido Socialista ou se é o partido que optou por se esconder temporariamente da atenção pública.
"Eu ofereci a Dominique Strauss-Kahn" -o ex-ministro das Finanças que ela derrotou na disputa pela candidatura presidencial socialista- "uma missão", diz ela. "Tratando de questões fiscais."
O sommelier nos serve mais vinho. Observo que ela come e bebe com prazer real, como fazia [François] Mitterrand até adoecer, e que ela tem um pouco do bom apetite de [Jacques] Chirac. Será isso um sinal?
Um homem de uma mesa ao lado se aproxima para nos dizer que a admira. Ela fica em pé, estranhamente comovida, enrubescendo até ficar mais rosada que seu tailleur, seu pescoço longo e belo traindo seu prazer.

Elitismo
Quando volta a se sentar, ela diz: "Eu entendo [Lionel] Jospin [o ex-premiê, que finalmente se incorporou à campanha na última quinta-feira].
Que uma mulher como eu, uma "becassine" (garota das províncias), tenha sido escolhida candidata do partido, tendo sucesso em coisas das quais ele nunca nem sequer se aproximou -compreendo que isso possa deixá-lo irado."
Que espécie de coisas? "[Jean-Pierre] Chevènement", diz ela, referindo-se a outro peso pesado da esquerda. "Jospin ainda não entende como eu o consegui, quando acha que é o fato de que ele não o fez -de que Chevènement ficou contra ele- que o levou a perder [as presidenciais de 2002]."
Ela continua: "Você tem alguma explicação para o fato de Jospin ter perdido para Chirac e até mesmo Le Pen?".
Então, quando respondo que isso pode ter estado relacionado à forma de elitismo político que foi castigada pelos eleitores, ela diz: "É isso mesmo, sim.
E o que os incomoda é minha disposição de romper com esse elitismo. Aquilo que chamamos de democracia participativa, eu nunca afirmei que era uma panacéia. Mas ouvir o que [os franceses] têm nas suas cabeças, já que por tantos anos suas verdades lhes foram impostas -foi necessário fazê-lo, e estou orgulhosa disso".
Ela tem certeza de vencer, me diz. Como Hillary Clinton, a quem admira, ela sente certeza de que vai conquistar o apoio do campo conservador, congelado em suas certezas, incapaz de enfrentar os desafios. "Os subúrbios -diante desses cortiços em chamas, como é possível que a única política seja a repressão, na qual os manifestantes não passam de bárbaros diante dos portões da cidade?
Será que nós, como os gregos antigos, não estamos chamando de bárbaros àqueles que têm menos acesso? Essa atitude é loucura, é o suicídio."
Já passou da meia-noite. O restaurante está vazio. Uma última pergunta, sobre suas escolhas em matéria de livros: um livro de Dominique Meda (ela se surpreende ao saber que não a conheço) sobre mulheres, e "Contemplations", de Victor Hugo, que a acompanha há algum tempo.
Despeço-me, ainda um pouco perplexo, mas com a impressão de que é possível que as pessoas -inclusive eu mesmo- tenham sido injustas com essa mulher, e que ela não se parece realmente com a estátua ligeiramente desajeitada em que ela própria se moldou.


O filósofo e escritor BERNARD-HENRI LÉVY é autor de "American Vertigo". Este artigo foi publicado originalmente no "Wall Street Journal"


Tradução de CLARA ALLAIN


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