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ENTREVISTA
TONY JUDT
Para historiador, União Européia é a melhor instância para
entender o equilíbrio entre Estado, sociedade e indivíduo
Europa não tem que perseguir os modelos dos EUA e da China
OS EUROPEUS não têm que imitar os EUA e
concorrer com americanos e chineses pela supremacia política e econômica no
planeta. O caminho precisa ser outro, segundo um dos mais respeitados estudiosos da história
européia recente, o inglês Tony Judt, autor do consagrado livro "Postwar". Para ele, a UE (União Européia) é "a última e melhor instância" para entender o
equilíbrio entre Estado, sociedade e indivíduo. É nisso
que ela deve ancorar seu "soft power" -a capacidade
de influenciar ideologicamente o resto do mundo.
ROBERTO DIAS
EDITOR-ASSISTENTE DE BRASIL
FOLHA - A experiência européia
serviu de referência para tratados
assinados a seguir. Que inovação a
UE pode mostrar agora?
TONY JUDT - Coerência nas políticas militar e externa. Sem isso, a união econômica inevitavelmente se reduzirá a questões de comércio e regulação.
FOLHA - Em "Postwar", o sr. diz que
a combinação de otimismo e leite
gratuito explicam o "baby boom"
pós-guerra, e que isso e a imigração
ajudaram no crescimento econômico. Como a Europa pode voltar a
crescer se esses fatores não estão
mais presentes?
JUDT - A Europa não tem como
crescer nas taxas do pós-guerra. Aqueles foram índices de
uma rápida recuperação, compensatórios para uma crise de
30 anos, ao lado de benefícios
da urbanização que ocorrem só
uma vez. É por isso que agora
vemos taxas de crescimento assim apenas nos antigos países
comunistas e na Ásia.
No entanto, a imigração ainda poderia ser um benefício
-se permitida politicamente.
Mas o alto crescimento populacional não acontecerá de novo.
E, se acontecesse, iria causar
problemas de desemprego. A
questão agora é alterar o Estado de bem-estar social para
acomodar uma configuração
demográfica diferente.
FOLHA - Quanto tempo levará para
a UE deixar seus fazendeiros competirem em igualdade no mundo?
JUDT - Muito tempo. O mesmo
vale para os EUA. Essa é uma
distorção política -os fazendeiros têm poucos votos nas sociedades desenvolvidas, mas
um poderoso argumento emocional sobre identidade e recursos naturais. Desde o final
do século 18 a proteção agrícola, de um jeito ou de outro, está
presente nas políticas de sociedades poderosas, mesmo as que
praticam o livre comércio, com
breves exceções para o Reino
Unido em meados do século 19.
Isso não vai mudar tão cedo.
FOLHA - Ao mesmo tempo em que
"exportam" mão-de-obra para a
Velha Europa, os novos membros da
UE atraem empresas desses países.
A disputa sobre investimento e impostos deve se tornar um problema?
JUDT - Por um período, isso deve piorar as divisões entre leste
e oeste, novo e velho. Uma vez
passados os benefícios de curto
prazo de estar na UE e ser
atraente aos investidores -por
exemplo, quando a Eslováquia
ficar muito cara em relação à
Moldova ou à Turquia-, a Europa do leste vai começar a
compartilhar as perspectivas
da Europa do oeste.
Mas nesse intervalo os ressentimentos políticos podem
aparecer. Muitas pessoas em
Bruxelas agora odeiam Polônia
e companhia como "free riders" [quem se beneficia de algo sem ter pago por isso].
FOLHA - Por que o euro está caindo
na aprovação popular, como detectou o Eurobarômetro?
JUDT - O euro funciona para os
banqueiros e contra a inflação,
mas tem o efeito há muito previsto de limitar a liberdade de
manobra dos políticos em cada
país -por exemplo, para aquecer a economia antes de eleições, tomar empréstimos, desvalorizar a moeda. A mensagem de que o euro é uma limitação a políticas de apelo popular
é transmitida especialmente
nas eleições domésticas, como
acontece agora na França.
FOLHA - O alargamento da UE vai
parar por enquanto?
JUDT - Continuará um pouco
nos Bálcãs -Croácia e Macedônia, talvez Bósnia e Sérvia. Mas
está paralisado em outros lugares, como a Turquia e a Ucrânia. Vai parar aí, ao menos por
uma década. É inevitável, mas
ruim para os deixados de fora.
FOLHA - O premiê francês, Dominique de Villepin, disse que a maior
conquista da UE é a paz, "da qual esquecemos porque é dada como garantida". O sr. concorda?
JUDT - Sim. Mas também a estabilidade política interna, que,
claro, tem relação com isso.
FOLHA - A Guerra do Iraque mostrou divisão na UE. Ela terá algum
dia uma política externa unificada?
JUDT - Temo que não. A culpa
por isso é sobretudo da Grã-Bretanha, e em menor grau dos
novos membros, como Polônia
e República Tcheca. Essa fraqueza na política externa unificada sempre foi provável após
1989, mas ficou muito pior por
conta das políticas de [Tony]
Blair [primeiro-ministro inglês] e pela nova geração de políticos antieuropeus nos antigos Estados comunistas.
FOLHA - Que ações de Blair o sr. culpa por essa fraqueza? Qual a diferença, nesse aspecto, entre o que ele
fez e os anos de Thatcher e Reagan?
JUDT - O Iraque, o uso da influência britânica para separar
a Espanha de Aznar [primeiro-ministro até 2004] e os países
do Leste Europeu da Alemanha
e da França. Tudo típico de
uma estratégia nacional. Mas é
catastrófica para a UE a exploração cínica do compromisso
com o referendo para adiar decisões sobre o euro e a Constituição. A diferença para Thatcher: todos esperavam uma "liderança européia" de Blair, o
primeiro político europeu nascido após 1945 com condição de
fazer isso. E ele falhou. Uma
grande oportunidade perdida.
FOLHA - Francis Fukuyama disse
que "a falha da Europa em integrar
melhor seus muçulmanos é uma
bomba-relógio que já contribuiu para o terrorismo". O sr. concorda?
JUDT - Fukuyama está certo,
mas exagera. As fontes principais do terrorismo islâmico (há
outros tipos de terrorismo, que
ele esquece) estão nas sociedades islâmicas, sobretudo aquelas afetadas por políticas americanas ou ditaduras seculares.
Mas a Europa de fato falhou em
reconhecer seu problema muçulmano, que não é tão grande
em termos numéricos, mas
concentrado em algumas poucas cidades e fadado a crescer.
FOLHA - Ao analisar as eleições para o Parlamento Europeu em 2004, o
sr. disse que os europeus estavam
"profundamente indiferentes aos
assuntos da UE". Esse "déficit democrático" pode virar hostilidade?
JUDT - É uma falha de liderança política, algo que certamente
poderia ser alterado. Mas vendo os atuais líderes europeus,
não enxergo nenhum com coragem ou compreensão para
investir na educação sobre os
méritos da UE. E isso vai piorar, à medida que cada geração
tomar os benefícios da UE como garantidos. Crescerão menos interessados em fazer jus a
eles ou defendê-los. Esse paradoxo pode ser desastroso.
FOLHA - Como a Europa pode lidar
com a paralisia de sua Constituição?
JUDT - Provavelmente, parando de chamá-la de "Constituição" e reempacotando as propostas sobre voto e tomada de
decisão como operações puramente técnicas para suavizar a
condução de uma união maior.
A UE tem que parar de se
comportar como se estivesse
permanentemente a caminho
de se tornar uma coisa cada vez
maior e começar a operar como
algo da normalidade. Não como
um projeto e sim da maneira
como a Europa é. Isso a tornaria menos ameaçadora para os
eleitores e menos facilmente
explorada por seus adversários.
FOLHA - A aliança franco-alemã é
apontada como de vital importância
nos primeiros anos da UE. Esses países agora se opõem em questões como política energética. São pontos
menores ou é o fim da aliança?
JUDT - A aliança está enfraquecida pela chegada de novos
membros, pelos debates recentes sobre energia nuclear e gás
russo e sobretudo por causa da
falha da França em encontrar
uma maneira de ser uma liderança da Europa após as grandes mudanças de 1989-90.
As conseqüências dessa falha, ao lado do grande cinismo
da Grã-Bretanha, são que simplesmente não há nenhuma liderança européia. O resultado é
ruim para a Europa e para o
mundo, pois a força da UE não
pode ser convertida em liderança internacional.
FOLHA - A UE nasceu num habitat
protegido pelos EUA, mas essa relação mudou bastante desde então.
Como o sr. a vê daqui a 50 anos?
JUDT - Mais próxima à do século 19, se tivermos sorte, com
alianças variáveis (Rússia, UE,
EUA, China) e aliados variáveis
(Leste da Ásia, Oriente Médio,
América Latina), mas uma situação internacional estável. Se
não tivermos sorte, ficaria mais
como o período entreguerras,
uma Europa amedrontada tentando nervosamente se aproximar da Rússia, os EUA se retraindo psicologicamente ainda que expandidos militarmente, e áreas instáveis (Oriente
Médio, Ásia Central, África) incentivando a intromissão das
grandes potências e o conflito.
FOLHA - O sr. descreve como a UE
produziu "não apenas burocracia
em escala sem precedentes, mas
também corrupção" e como a responsabilidade foi "tirada dos políticos e posta nos ombros de uma classe invisível de eurocratas não-eleitos". Como lidar com isso?
JUDT - Não sei; é endêmico. Os
eurocratas em postos graduados da Comissão Européia com
quem converso não entendem
a percepção pública da corrupção. Outros não vêem os benefícios de uma elite administrativa européia genuinamente
transnacional. A UE estará
sempre ameaçada pela tentação dos políticos nacionais de
culpá-la por suas próprias falhas. E claro que ela é corrupta,
como qualquer burocracia
grande e politicamente irresponsável. Esse é o calcanhar-de-aquiles do projeto europeu.
FOLHA - O sr. diz que a "UE pode ser
uma resposta para a história, mas
nunca uma substituta". A Europa é
vista como algo de importância histórica, mas superada por EUA e China. Tem como reverter essa visão?
JUDT - Sim. Mas seria necessária uma mudança no paradigma pós-1945 de "crescimento",
"produtividade" e "eficiência"
como critérios para uma boa
sociedade e para um país bem-conduzido. Enquanto continuarmos incapazes de apontar
outras maneiras de medir virtude social ou benefícios coletivos, os EUA e cada vez mais a
China vão aparecer como modelos desejáveis.
A UE é uma instância residual -a última e a melhor instância- para um entendimento mais rápido sobre o equilíbrio entre Estado e sociedade,
sociedade e indivíduo, bem-estar material e segurança social.
Se os europeus perderem o senso de que esses são critérios alternativos e valiosos com os
quais devem julgar e ser julgados (por exemplo, caso procurem desesperadamente "se reformar" para competir com
EUA e China), vão perder essa
batalha e seu "soft power".
FOLHA - Mas existe a idéia de que a
Europa precisa se reformar para sobreviver. O sr. realmente acha que
nenhuma reforma é necessária?
JUDT - Não digo que não deve
haver mudança nenhuma, como em questões de idade de
aposentadoria, impostos, incentivos a novos trabalhadores.
O que me incomoda é a premissa -característica dos recém-formados em escolas de administração que escrevem na
"Economist"- de que quanto
mais a legislação trabalhista da
Europa, seu sistema de aposentadoria e sua estrutura fiscal se
aproximarem do padrão americano, melhor será a Europa.
FOLHA - O sr. escreveu que, apesar
de tudo, a "UE é uma coisa boa".
Continuará a ser?
JUDT - Sim. Mas vai continuar a
ser percebida como uma coisa
boa? Não tenho certeza. E não
faz sentido ser uma coisa boa se
as pessoas não gostam dela. É
como a imagem das Nações
Unidas nos EUA. A ONU é uma
coisa muito boa. Mas como os
americanos foram ensinados a
vê-la como corrupta e sem utilidade, ela ficou enfraquecida.
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