São Paulo, domingo, 25 de março de 2007

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ENTREVISTA
TONY JUDT


Para historiador, União Européia é a melhor instância para entender o equilíbrio entre Estado, sociedade e indivíduo

Europa não tem que perseguir os modelos dos EUA e da China

OS EUROPEUS não têm que imitar os EUA e concorrer com americanos e chineses pela supremacia política e econômica no planeta. O caminho precisa ser outro, segundo um dos mais respeitados estudiosos da história européia recente, o inglês Tony Judt, autor do consagrado livro "Postwar". Para ele, a UE (União Européia) é "a última e melhor instância" para entender o equilíbrio entre Estado, sociedade e indivíduo. É nisso que ela deve ancorar seu "soft power" -a capacidade de influenciar ideologicamente o resto do mundo.

ROBERTO DIAS
EDITOR-ASSISTENTE DE BRASIL

FOLHA - A experiência européia serviu de referência para tratados assinados a seguir. Que inovação a UE pode mostrar agora?
TONY JUDT
- Coerência nas políticas militar e externa. Sem isso, a união econômica inevitavelmente se reduzirá a questões de comércio e regulação.

FOLHA - Em "Postwar", o sr. diz que a combinação de otimismo e leite gratuito explicam o "baby boom" pós-guerra, e que isso e a imigração ajudaram no crescimento econômico. Como a Europa pode voltar a crescer se esses fatores não estão mais presentes?
JUDT
- A Europa não tem como crescer nas taxas do pós-guerra. Aqueles foram índices de uma rápida recuperação, compensatórios para uma crise de 30 anos, ao lado de benefícios da urbanização que ocorrem só uma vez. É por isso que agora vemos taxas de crescimento assim apenas nos antigos países comunistas e na Ásia. No entanto, a imigração ainda poderia ser um benefício -se permitida politicamente. Mas o alto crescimento populacional não acontecerá de novo. E, se acontecesse, iria causar problemas de desemprego. A questão agora é alterar o Estado de bem-estar social para acomodar uma configuração demográfica diferente.

FOLHA - Quanto tempo levará para a UE deixar seus fazendeiros competirem em igualdade no mundo?
JUDT
- Muito tempo. O mesmo vale para os EUA. Essa é uma distorção política -os fazendeiros têm poucos votos nas sociedades desenvolvidas, mas um poderoso argumento emocional sobre identidade e recursos naturais. Desde o final do século 18 a proteção agrícola, de um jeito ou de outro, está presente nas políticas de sociedades poderosas, mesmo as que praticam o livre comércio, com breves exceções para o Reino Unido em meados do século 19. Isso não vai mudar tão cedo.

FOLHA - Ao mesmo tempo em que "exportam" mão-de-obra para a Velha Europa, os novos membros da UE atraem empresas desses países. A disputa sobre investimento e impostos deve se tornar um problema?
JUDT
- Por um período, isso deve piorar as divisões entre leste e oeste, novo e velho. Uma vez passados os benefícios de curto prazo de estar na UE e ser atraente aos investidores -por exemplo, quando a Eslováquia ficar muito cara em relação à Moldova ou à Turquia-, a Europa do leste vai começar a compartilhar as perspectivas da Europa do oeste. Mas nesse intervalo os ressentimentos políticos podem aparecer. Muitas pessoas em Bruxelas agora odeiam Polônia e companhia como "free riders" [quem se beneficia de algo sem ter pago por isso].

FOLHA - Por que o euro está caindo na aprovação popular, como detectou o Eurobarômetro?
JUDT
- O euro funciona para os banqueiros e contra a inflação, mas tem o efeito há muito previsto de limitar a liberdade de manobra dos políticos em cada país -por exemplo, para aquecer a economia antes de eleições, tomar empréstimos, desvalorizar a moeda. A mensagem de que o euro é uma limitação a políticas de apelo popular é transmitida especialmente nas eleições domésticas, como acontece agora na França.

FOLHA - O alargamento da UE vai parar por enquanto?
JUDT
- Continuará um pouco nos Bálcãs -Croácia e Macedônia, talvez Bósnia e Sérvia. Mas está paralisado em outros lugares, como a Turquia e a Ucrânia. Vai parar aí, ao menos por uma década. É inevitável, mas ruim para os deixados de fora.

FOLHA - O premiê francês, Dominique de Villepin, disse que a maior conquista da UE é a paz, "da qual esquecemos porque é dada como garantida". O sr. concorda?
JUDT
- Sim. Mas também a estabilidade política interna, que, claro, tem relação com isso.

FOLHA - A Guerra do Iraque mostrou divisão na UE. Ela terá algum dia uma política externa unificada?
JUDT
- Temo que não. A culpa por isso é sobretudo da Grã-Bretanha, e em menor grau dos novos membros, como Polônia e República Tcheca. Essa fraqueza na política externa unificada sempre foi provável após 1989, mas ficou muito pior por conta das políticas de [Tony] Blair [primeiro-ministro inglês] e pela nova geração de políticos antieuropeus nos antigos Estados comunistas.

FOLHA - Que ações de Blair o sr. culpa por essa fraqueza? Qual a diferença, nesse aspecto, entre o que ele fez e os anos de Thatcher e Reagan?
JUDT
- O Iraque, o uso da influência britânica para separar a Espanha de Aznar [primeiro-ministro até 2004] e os países do Leste Europeu da Alemanha e da França. Tudo típico de uma estratégia nacional. Mas é catastrófica para a UE a exploração cínica do compromisso com o referendo para adiar decisões sobre o euro e a Constituição. A diferença para Thatcher: todos esperavam uma "liderança européia" de Blair, o primeiro político europeu nascido após 1945 com condição de fazer isso. E ele falhou. Uma grande oportunidade perdida.

FOLHA - Francis Fukuyama disse que "a falha da Europa em integrar melhor seus muçulmanos é uma bomba-relógio que já contribuiu para o terrorismo". O sr. concorda?
JUDT
- Fukuyama está certo, mas exagera. As fontes principais do terrorismo islâmico (há outros tipos de terrorismo, que ele esquece) estão nas sociedades islâmicas, sobretudo aquelas afetadas por políticas americanas ou ditaduras seculares. Mas a Europa de fato falhou em reconhecer seu problema muçulmano, que não é tão grande em termos numéricos, mas concentrado em algumas poucas cidades e fadado a crescer.

FOLHA - Ao analisar as eleições para o Parlamento Europeu em 2004, o sr. disse que os europeus estavam "profundamente indiferentes aos assuntos da UE". Esse "déficit democrático" pode virar hostilidade?
JUDT
- É uma falha de liderança política, algo que certamente poderia ser alterado. Mas vendo os atuais líderes europeus, não enxergo nenhum com coragem ou compreensão para investir na educação sobre os méritos da UE. E isso vai piorar, à medida que cada geração tomar os benefícios da UE como garantidos. Crescerão menos interessados em fazer jus a eles ou defendê-los. Esse paradoxo pode ser desastroso.

FOLHA - Como a Europa pode lidar com a paralisia de sua Constituição?
JUDT
- Provavelmente, parando de chamá-la de "Constituição" e reempacotando as propostas sobre voto e tomada de decisão como operações puramente técnicas para suavizar a condução de uma união maior. A UE tem que parar de se comportar como se estivesse permanentemente a caminho de se tornar uma coisa cada vez maior e começar a operar como algo da normalidade. Não como um projeto e sim da maneira como a Europa é. Isso a tornaria menos ameaçadora para os eleitores e menos facilmente explorada por seus adversários.

FOLHA - A aliança franco-alemã é apontada como de vital importância nos primeiros anos da UE. Esses países agora se opõem em questões como política energética. São pontos menores ou é o fim da aliança?
JUDT
- A aliança está enfraquecida pela chegada de novos membros, pelos debates recentes sobre energia nuclear e gás russo e sobretudo por causa da falha da França em encontrar uma maneira de ser uma liderança da Europa após as grandes mudanças de 1989-90. As conseqüências dessa falha, ao lado do grande cinismo da Grã-Bretanha, são que simplesmente não há nenhuma liderança européia. O resultado é ruim para a Europa e para o mundo, pois a força da UE não pode ser convertida em liderança internacional.

FOLHA - A UE nasceu num habitat protegido pelos EUA, mas essa relação mudou bastante desde então. Como o sr. a vê daqui a 50 anos?
JUDT
- Mais próxima à do século 19, se tivermos sorte, com alianças variáveis (Rússia, UE, EUA, China) e aliados variáveis (Leste da Ásia, Oriente Médio, América Latina), mas uma situação internacional estável. Se não tivermos sorte, ficaria mais como o período entreguerras, uma Europa amedrontada tentando nervosamente se aproximar da Rússia, os EUA se retraindo psicologicamente ainda que expandidos militarmente, e áreas instáveis (Oriente Médio, Ásia Central, África) incentivando a intromissão das grandes potências e o conflito.

FOLHA - O sr. descreve como a UE produziu "não apenas burocracia em escala sem precedentes, mas também corrupção" e como a responsabilidade foi "tirada dos políticos e posta nos ombros de uma classe invisível de eurocratas não-eleitos". Como lidar com isso?
JUDT
- Não sei; é endêmico. Os eurocratas em postos graduados da Comissão Européia com quem converso não entendem a percepção pública da corrupção. Outros não vêem os benefícios de uma elite administrativa européia genuinamente transnacional. A UE estará sempre ameaçada pela tentação dos políticos nacionais de culpá-la por suas próprias falhas. E claro que ela é corrupta, como qualquer burocracia grande e politicamente irresponsável. Esse é o calcanhar-de-aquiles do projeto europeu.

FOLHA - O sr. diz que a "UE pode ser uma resposta para a história, mas nunca uma substituta". A Europa é vista como algo de importância histórica, mas superada por EUA e China. Tem como reverter essa visão?
JUDT
- Sim. Mas seria necessária uma mudança no paradigma pós-1945 de "crescimento", "produtividade" e "eficiência" como critérios para uma boa sociedade e para um país bem-conduzido. Enquanto continuarmos incapazes de apontar outras maneiras de medir virtude social ou benefícios coletivos, os EUA e cada vez mais a China vão aparecer como modelos desejáveis. A UE é uma instância residual -a última e a melhor instância- para um entendimento mais rápido sobre o equilíbrio entre Estado e sociedade, sociedade e indivíduo, bem-estar material e segurança social. Se os europeus perderem o senso de que esses são critérios alternativos e valiosos com os quais devem julgar e ser julgados (por exemplo, caso procurem desesperadamente "se reformar" para competir com EUA e China), vão perder essa batalha e seu "soft power".

FOLHA - Mas existe a idéia de que a Europa precisa se reformar para sobreviver. O sr. realmente acha que nenhuma reforma é necessária?
JUDT
- Não digo que não deve haver mudança nenhuma, como em questões de idade de aposentadoria, impostos, incentivos a novos trabalhadores. O que me incomoda é a premissa -característica dos recém-formados em escolas de administração que escrevem na "Economist"- de que quanto mais a legislação trabalhista da Europa, seu sistema de aposentadoria e sua estrutura fiscal se aproximarem do padrão americano, melhor será a Europa.

FOLHA - O sr. escreveu que, apesar de tudo, a "UE é uma coisa boa". Continuará a ser?
JUDT
- Sim. Mas vai continuar a ser percebida como uma coisa boa? Não tenho certeza. E não faz sentido ser uma coisa boa se as pessoas não gostam dela. É como a imagem das Nações Unidas nos EUA. A ONU é uma coisa muito boa. Mas como os americanos foram ensinados a vê-la como corrupta e sem utilidade, ela ficou enfraquecida.


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