São Paulo, domingo, 25 de maio de 2008

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"A era das palavras pode ser só um parênteses"

Para Al Gore, união entre internet e TV trará a adiada democratização da mídia

Ex-candidato a presidente diz ser improvável sua volta à política, mas se vê como "alcoólatra em recuperação" durante prévias democratas

BEPPE SEVERGNINI
EM LONDRES

Ele ganhou peso, mas ainda é o bom e velho Al Gore. Esse sessentão sereno sobreviveu à maior decepção profissional que um homem pode sofrer. Sob as dúvidas que cercaram a votação na Flórida, em 2000, foi obrigado a entregar a chave da Casa Branca a George W. Bush, após virtualmente conquistar a Presidência dos EUA.
Gore abre a porta da suíte no Brown's, hotel de Londres freqüentado por americanos influentes. Cabelo grisalho, olhos estreitos, terno escuro, gravata azul. Pasta sobre a cadeira, laptop na mesa. O ex-vice-presidente prepara um café para seu convidado e sorri com polidez.
O Prêmio Nobel da Paz de 2007 hoje é um guru ambientalista, documentarista ("Uma Verdade Inconveniente") e profeta secular. No fim dos anos 70, quando era um jovem congressista do Tennessee, ele popularizou o termo "superinfovia", prevendo as aplicações civis da internet, até então uma rede de supercomputadores militares. Como candidato à Vice-Presidência na chapa de Bill Clinton, na campanha de 1992, ele proclamava que era na web que o futuro dos EUA seria traçado. Ele estava certo.
Por isso, agora que Gore lançou a Current TV, vale ouvir o que ele tem a dizer. O conceito é simples: descarregar conteúdos novos, originais e bem feitos da web, selecioná-los, organizá-los e levá-los à TV.

 

PERGUNTA - O sr. falou da "democratização da mídia". É algo além de um avanço interessante?
AL GORE -
O vídeo, sob a forma da televisão, é de longe a mídia mais poderosa de nossa cultura, e a internet é a mídia mais acessível. Quando ambos se juntam, coloca-se mais poder nas mãos de cidadãos que têm acesso à criação e distribuição de TV via internet. Acho que isso tem um potencial enorme.

PERGUNTA - Quando o sr. começou a falar da superinfovia, era jovem. O sr. tem certeza de que vai testemunhar a próxima grande novidade?
GORE -
Você tem razão quando diz que, nesta revolução acelerada da mídia, os jovens freqüentemente estão na vanguarda, de forma que eu jamais posso esperar estar. Tenho três netos, e eles usam o console de videogames Wii. São hiperversados nas novas tecnologias.

PERGUNTA - O sr. já tentou usar um Wii? Eu não consigo.
GORE -
Eu também não. Mas acho que as interações dessas grandes forças -o vídeo e a internet- em nossa sociedade são visíveis, não importa qual seja nossa idade. E, se você tem experiência em trabalhar com elas, às vezes [mais] idade pode ser uma vantagem, por proporcionar perspectiva. Essa relação entre TV e democracia é algo sobre o qual venho refletindo desde que era estudante em Harvard. Se fosse uma idéia que me tivesse vindo recentemente, aos 60 anos, já poderia ser visto com desconfiança.

PERGUNTA - Alguns dizem que a televisão está perdendo importância.
GORE -
Em duas gerações nós, nos EUA, passamos de zero tempo assistindo TV para uma média 4,5 horas por dia. Que outra atividade ocupa tantas horas por dia, exceto dormir?

PERGUNTA - O que o sr. não gosta na televisão?
GORE -
Ela é feita sobretudo por um grupinho pequeno de pessoas. Ela não tem, hoje, o efeito democratizador que exerceu a revolução da imprensa. É por isso que acredito na Current TV. Ela permite às pessoas se comunicarem pelo meio mais poderoso, por meio de uma rede que é a mais aberta. Acho que ela poderá infundir vida nova ao processo democrático. Uma parte grande demais da televisão americana é movida pelo mínimo denominador comum: comandar uma audiência de massa, sem prestar atenção suficiente à natureza e à qualidade dos programas.

PERGUNTA - O sr. disse que as emissoras de TV têm uma obsessão mórbida por um popstar que dirige seu veículo embriagado e freqüenta clubes da moda, num momento em que a questão em pauta é a das mudanças climáticas e que populações inteiras ainda estão sendo torturadas. Mas não é fato que o público quer saber tudo sobre os popstars bêbados e pouco sobre a tortura?
GORE -
Não há dúvida de que há na cultura ocidental uma obsessão por notícias sobre celebridades. Um exemplos grotesco disso nos EUA foi a cobertura da autópsia de Anna Nicole Smith [ex-coelhinha da Playboy, em 2007]. Acho que é um sistema que se auto-alimenta. O ingrediente que está fazendo falta é abrir as portas e janelas. Deixar que entrem indivíduos e criem algo mais interessante.

PERGUNTA - O que a Current TV vai exibir?
GORE -
Não sei. Vai vir deles.

PERGUNTA - O sr. volta à política?
GORE -
Provavelmente não. Não excluí essa possibilidade por inteiro, mas não a prevejo.

PERGUNTA - O sr. acha que essa incerteza prolongada em torno de Hillary Clinton e Barack Obama pode prejudicar os democratas [na eleição presidencial] em novembro?
GORE -
É possível que sim. Não sei. Mas tendemos a subestimar a capacidade do Partido Democrata de curar as divisões abertas durante as primárias.

PERGUNTA - Qual vem sendo seu espírito ao acompanha a disputa?
GORE -
Sinto-me como um alcoólatra em recuperação que mergulhou numa bebedeira e se vê cercado de garrafas vazias.

PERGUNTA - Falemos da Olimpíada. Como convencer os chineses a não desperdiçarem a chance de se tornarem um país mais aberto?
GORE -
O dalai-lama é a favor de Pequim sediar os Jogos. Eu também. Quem se sente ultrajado pelas injustiças no Tibete deve prestar atenção ao que diz o dalai-lama. Mas também é bom que quem discorda da política chinesa se faça ouvir.

PERGUNTA - O sr. irá a Pequim?
GORE -
Não planejava ir. Não tenho um papel a exercer ali. Mas não estou cancelando minha viagem a título de protesto, eu não pretendia ir de qualquer maneira. Mas acho que é um grande erro a China fazer o que está fazendo no Tibete.

PERGUNTA - Recentemente o sr. disse que 75% dos americanos crêem que Saddam Hussein estivesse por trás do 11 de Setembro e que isso justificaria invadir o Iraque.
GORE -
As mudanças na ecologia da informação são responsáveis por isso. De onde vem a informação? Como ela é processada? Como é distribuída? Quem participa desse processo? Até que ponto o processo é aberto? Quando a tipografia foi introduzida, ela lançou uma revolução no acesso à informação, até então controlado pelas elites. Com a transmissão de rádio e TV, isso ainda não aconteceu. Nos EUA, 80% dos gastos das campanhas são com anúncios de 30 segundos. Será que isso é coincidência? Um ex-premiê esteve numa reunião com Vladimir Putin. Ele me contou que ouviu o seguinte: "Quem se importa com o que sai nos jornais? É a televisão que importa." Acontece que a sede de poder cresce e que hoje o Kremlin controla também jornais, enquanto a TV não passa de hagiografia de Putin.

PERGUNTA - E a moral é?
GORE -
As imagens atraem o cérebro humano desde que nossa espécie surgiu. É possível que algum dia a era das palavras seja vista como um parênteses. Se a TV estivesse ligada agora, enquanto conversamos, mesmo com o som desligado, nós nos distrairíamos com as imagens. Uma parte grande de nosso cérebro nos diz: "Isso pode ser uma onça!". Apesar de não existirem onças no hotel.


BEPPE SEVERGNINI é colunista do jornal italiano "Corriere della Sera" e autor de vários livros; esta entrevista foi distribuída pelo "New York Times"
Tradução de CLARA ALLAIN


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