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"A era das palavras pode ser só um parênteses"
Para Al Gore, união entre internet e TV trará a adiada democratização da mídia
Ex-candidato a presidente diz ser improvável sua volta à política, mas se vê como "alcoólatra em recuperação" durante prévias democratas
BEPPE SEVERGNINI
EM LONDRES
Ele ganhou peso, mas ainda é
o bom e velho Al Gore. Esse sessentão sereno sobreviveu à
maior decepção profissional
que um homem pode sofrer.
Sob as dúvidas que cercaram a
votação na Flórida, em 2000,
foi obrigado a entregar a chave
da Casa Branca a George W.
Bush, após virtualmente conquistar a Presidência dos EUA.
Gore abre a porta da suíte no
Brown's, hotel de Londres freqüentado por americanos influentes. Cabelo grisalho, olhos
estreitos, terno escuro, gravata
azul. Pasta sobre a cadeira, laptop na mesa. O ex-vice-presidente prepara um café para seu
convidado e sorri com polidez.
O Prêmio Nobel da Paz de
2007 hoje é um guru ambientalista, documentarista ("Uma
Verdade Inconveniente") e
profeta secular. No fim dos
anos 70, quando era um jovem
congressista do Tennessee, ele
popularizou o termo "superinfovia", prevendo as aplicações
civis da internet, até então uma
rede de supercomputadores
militares. Como candidato à
Vice-Presidência na chapa de
Bill Clinton, na campanha de
1992, ele proclamava que era na
web que o futuro dos EUA seria
traçado. Ele estava certo.
Por isso, agora que Gore lançou a Current TV, vale ouvir o
que ele tem a dizer. O conceito
é simples: descarregar conteúdos novos, originais e bem feitos da web, selecioná-los, organizá-los e levá-los à TV.
PERGUNTA - O sr. falou da "democratização da mídia". É algo além de
um avanço interessante?
AL GORE - O vídeo, sob a forma
da televisão, é de longe a mídia
mais poderosa de nossa cultura, e a internet é a mídia mais
acessível. Quando ambos se
juntam, coloca-se mais poder
nas mãos de cidadãos que têm
acesso à criação e distribuição
de TV via internet. Acho que isso tem um potencial enorme.
PERGUNTA - Quando o sr. começou
a falar da superinfovia, era jovem. O
sr. tem certeza de que vai testemunhar a próxima grande novidade?
GORE - Você tem razão quando
diz que, nesta revolução acelerada da mídia, os jovens freqüentemente estão na vanguarda, de forma que eu jamais
posso esperar estar. Tenho três
netos, e eles usam o console de
videogames Wii. São hiperversados nas novas tecnologias.
PERGUNTA - O sr. já tentou usar um
Wii? Eu não consigo.
GORE - Eu também não. Mas
acho que as interações dessas
grandes forças -o vídeo e a internet- em nossa sociedade
são visíveis, não importa qual
seja nossa idade. E, se você tem
experiência em trabalhar com
elas, às vezes [mais] idade pode
ser uma vantagem, por proporcionar perspectiva. Essa relação entre TV e democracia é algo sobre o qual venho refletindo desde que era estudante em
Harvard. Se fosse uma idéia
que me tivesse vindo recentemente, aos 60 anos, já poderia
ser visto com desconfiança.
PERGUNTA - Alguns dizem que a televisão está perdendo importância.
GORE - Em duas gerações nós,
nos EUA, passamos de zero
tempo assistindo TV para uma
média 4,5 horas por dia. Que
outra atividade ocupa tantas
horas por dia, exceto dormir?
PERGUNTA - O que o sr. não gosta
na televisão?
GORE - Ela é feita sobretudo
por um grupinho pequeno de
pessoas. Ela não tem, hoje, o
efeito democratizador que
exerceu a revolução da imprensa. É por isso que acredito na
Current TV. Ela permite às
pessoas se comunicarem pelo
meio mais poderoso, por meio
de uma rede que é a mais aberta. Acho que ela poderá infundir vida nova ao processo democrático. Uma parte grande
demais da televisão americana
é movida pelo mínimo denominador comum: comandar uma
audiência de massa, sem prestar atenção suficiente à natureza e à qualidade dos programas.
PERGUNTA - O sr. disse que as emissoras de TV têm uma obsessão mórbida por um popstar que dirige seu
veículo embriagado e freqüenta clubes da moda, num momento em
que a questão em pauta é a das mudanças climáticas e que populações
inteiras ainda estão sendo torturadas. Mas não é fato que o público
quer saber tudo sobre os popstars
bêbados e pouco sobre a tortura?
GORE - Não há dúvida de que
há na cultura ocidental uma obsessão por notícias sobre celebridades. Um exemplos grotesco disso nos EUA foi a cobertura da autópsia de Anna Nicole
Smith [ex-coelhinha da Playboy, em 2007]. Acho que é um
sistema que se auto-alimenta.
O ingrediente que está fazendo
falta é abrir as portas e janelas.
Deixar que entrem indivíduos e
criem algo mais interessante.
PERGUNTA - O que a Current TV vai
exibir?
GORE - Não sei. Vai vir deles.
PERGUNTA - O sr. volta à política?
GORE - Provavelmente não.
Não excluí essa possibilidade
por inteiro, mas não a prevejo.
PERGUNTA - O sr. acha que essa incerteza prolongada em torno de Hillary Clinton e Barack Obama pode
prejudicar os democratas [na eleição presidencial] em novembro?
GORE - É possível que sim. Não
sei. Mas tendemos a subestimar a capacidade do Partido
Democrata de curar as divisões
abertas durante as primárias.
PERGUNTA - Qual vem sendo seu
espírito ao acompanha a disputa?
GORE - Sinto-me como um alcoólatra em recuperação que
mergulhou numa bebedeira e
se vê cercado de garrafas vazias.
PERGUNTA - Falemos da Olimpíada. Como convencer os chineses a
não desperdiçarem a chance de se
tornarem um país mais aberto?
GORE - O dalai-lama é a favor
de Pequim sediar os Jogos. Eu
também. Quem se sente ultrajado pelas injustiças no Tibete
deve prestar atenção ao que diz
o dalai-lama. Mas também é
bom que quem discorda da política chinesa se faça ouvir.
PERGUNTA - O sr. irá a Pequim?
GORE - Não planejava ir. Não
tenho um papel a exercer ali.
Mas não estou cancelando minha viagem a título de protesto,
eu não pretendia ir de qualquer
maneira. Mas acho que é um
grande erro a China fazer o que
está fazendo no Tibete.
PERGUNTA - Recentemente o sr.
disse que 75% dos americanos
crêem que Saddam Hussein estivesse por trás do 11 de Setembro e que
isso justificaria invadir o Iraque.
GORE - As mudanças na ecologia da informação são responsáveis por isso. De onde vem a
informação? Como ela é processada? Como é distribuída?
Quem participa desse processo? Até que ponto o processo é
aberto? Quando a tipografia foi
introduzida, ela lançou uma revolução no acesso à informação, até então controlado pelas
elites. Com a transmissão de
rádio e TV, isso ainda não aconteceu. Nos EUA, 80% dos gastos das campanhas são com
anúncios de 30 segundos. Será
que isso é coincidência? Um ex-premiê esteve numa reunião
com Vladimir Putin. Ele me
contou que ouviu o seguinte:
"Quem se importa com o que
sai nos jornais? É a televisão
que importa." Acontece que a
sede de poder cresce e que hoje
o Kremlin controla também
jornais, enquanto a TV não passa de hagiografia de Putin.
PERGUNTA - E a moral é?
GORE - As imagens atraem o
cérebro humano desde que
nossa espécie surgiu. É possível
que algum dia a era das palavras seja vista como um parênteses. Se a TV estivesse ligada
agora, enquanto conversamos,
mesmo com o som desligado,
nós nos distrairíamos com as
imagens. Uma parte grande de
nosso cérebro nos diz: "Isso pode ser uma onça!". Apesar de
não existirem onças no hotel.
BEPPE SEVERGNINI é colunista do jornal italiano "Corriere della Sera" e autor de vários livros;
esta entrevista foi distribuída pelo "New York
Times"
Tradução de CLARA ALLAIN
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