|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
ENTREVISTA/ROBERT FISK
"Não queremos uma relação séria com o Oriente Médio"
É o que diz o correspondente de guerra Robert Fisk, há quatro décadas na
região
Para o correspondente de guerra britânico Robert Fisk, que vem ao Brasil em julho lançar dois livros e participar de feira literária, o Ocidente quer proteger seus interesses
SÉRGIO DÁVILA
DE WASHINGTON
O Oriente Médio quer liberdade, mas é a liberdade de se
ver livre dos ocidentais, pois o
povo começa a perceber que estes não querem ter uma relação
séria com a região, só proteger
seus interesses. A opinião radical é de um ocidental, o correspondente de guerra britânico
Robert Fisk, do diário "The Independent", que vive ali há
quatro décadas.
Fisk, 60, vem ao Brasil no
mês que vem participar da Festa Literária Internacional de
Parati (Flip), onde lança os livros "Pobre Nação", sobre o Líbano, onde vive, e a biografia "A
Grande Guerra pela Civilização". É a sua segunda vez no
país -esteve em maio de 2006,
em evento comemorativo dos
85 anos da Folha.
Aviso ao leitor: esse repórter
conheceu Fisk durante a Guerra do Iraque, no Palestine Hotel, em Bagdá, em março de
2003. Desde então, já conversou algumas vezes com ele e é o
autor do texto da orelha de
suas memórias.
"Fico feliz por George W.
Bush estar saindo logo mais.
Tenho medo de que ele invada
o Irã em 2008. Acordo todas as
manhãs e penso: aonde esse
homem nos levará hoje?", disse
ele, por telefone, à Folha, na
tarde de sexta-feira. Leia a entrevista a seguir.
FOLHA - A política oficial do governo Bush para o Oriente Médio é espalhar a democracia na região. Os
palestinos escolheram democraticamente o Hamas, o que levou ao
atual conflito. O sr. acredita que haja
um modelo único de democracia?
ROBERT FISK - [Irônico] Mas eles
votaram nas pessoas erradas,
esses palestinos! Veja, o Hamas
não foi eleito porque eles queriam um grupo extremista no
poder, mas porque queriam
acabar com a corrupção do Fatah. Não é o modelo de democracia o problema, e sim o que
há por trás dele. O mesmo ocorreu aqui no Líbano, que era
considerado por Bush como o
exemplo de que a democracia
funciona na região.
O Hizbollah atravessou a
fronteira de Israel e capturou
soldados no ano passado. Em
vez de tratarmos isso como um
incidente, sério mas não no nível de uma nova Guerra Mundial, os israelenses começaram
a bombardear pesadamente esse país, fazendo dos membros
do Hizbollah heróis e permitindo que eles finalmente destruíssem um governo democraticamente eleito. E agora nós estamos vivendo as conseqüências de um país sem lei.
Ou seja, nós nos importamos
tanto com a democracia do Líbano, até que o país começou a
ser destruído por Israel, aí não
ligamos mais. Agora, voltamos
a nos importar. Uma libanesa
xiita amiga minha me disse:
"Eu nunca mais confiarei num
estrangeiro". Eu respondi: "Se
vocês libaneses confiassem em
vocês mesmos, em seus vizinhos, o tanto que confiaram em
Teerã, Washington, Damasco,
Tel-Aviv, vocês estariam mais
seguros".
FOLHA - O sr. vive aí há algumas
décadas já. Qual o problema com o
Oriente Médio? Há um problema só
e um Oriente Médio só, como parece
imaginar a maioria dos ocidentais?
FISK - As pessoas vão dizer que
"é algo tão complicado que você
não vai conseguir entender".
Não é verdade. O Oriente Médio é claro, a história é clara,
eles estão tentando sair de 100
anos de colonialismo, imperialismo, seja lá como você quer
chamar. Ao mesmo tempo, não
é tão simples quanto os governos ocidentais tentam fazer parecer. É um caso de justiça básica. Nós queremos levar a democracia a eles, mas chegamos
com nossos veículos blindados,
nossos ataques aéreos, como
sempre fizemos, desde 1917,
quando primeiro tentamos "libertar" Bagdá.
As pessoas gostariam de viver em democracias, mas querem um tipo diferente de liberdade, ser livres de nós, e não temos a intenção de dar isso a
eles. Não queremos ter uma relação séria com o Oriente Médio, não queremos dar o controle a eles. Colocamos nossos
ditadores no poder, nós os pagamos, nós os armamos, mas
nós os controlamos.
FOLHA - Mas o sr. exime o radicalismo islâmico?
FISK - O islamismo tem problemas, é uma religião literal ou de
interpretação literal, se você
preferir. Não se pode questionar o Alcorão, enquanto podemos debater o sentido da Bíblia
quanto quisermos. Uma das razões para essa visão radical,
creio, é que por centenas de
anos o Oriente Médio esteve
sob pressão do Ocidente. E você não debate Deus quando o
inimigo está na porta. O Renascimento não aconteceu do
mesmo jeito aqui. Mas, quando
o mundo muçulmano tentou se
modernizar, sob o Império
Otomano, o que nós fizemos?
Nós os destruímos.
Várias vezes nós jogamos esses jogos conosco mesmo e com
o povo do Oriente Médio. Eu
sei que liberdade de imprensa,
educação do povo não estão nos
padrões que deveriam estar
nessa parte do mundo -talvez
você possa dizer isso de alguns
lugares da América Latina,
também. Mas o fato é que as
pessoas querem construir suas
próprias sociedades. Mas nós
queremos estar juntos, guiá-los, ensinar o que fazer, garantir que nosso petróleo esteja
protegido. Nós não nos importamos com eles e eu acho que as
pessoas aqui percebem isso.
FOLHA - É a "Guerra pela Civilização", da qual trata seu livro?
FISK - Tirei o título de uma medalha que ganhei do meu pai,
que lutou na Primeira Guerra
Mundial, cujo lema era esse. É
uma linguagem de estúdios de
TV. "Terror", "civilização",
"eles", "nós", "bem", "mal". Não
sei de que maneira somos afetados pela linguagem quando
lidamos com as complexidades
de um mundo extremamente
perigoso e violento, mas somos.
Durante a Segunda Guerra, [o
premiê britânico Winston]
Churchill e [o presidente americano Franklin Delano] Roosevelt falaram muito mais eloqüentemente do que os Bushes e os Blairs. E era uma guerra de
verdade, 60 milhões de pessoas
mortas entre 1939 e 1945. Sessenta milhões! Então acho que
eles tinham um senso de realidade mais aguçado do que o que
temos hoje.
Churchill disse uma vez que a
verdade é tão preciosa que deve
ser protegida por uma armadura de mentiras. Mas acho que
havia então uma integridade na
política, mesmo na guerra, que
não existe agora, e que o uso de
palavras como "civilização" e
"terror islâmico" são moedas
questionáveis. Assim como as
palavras dos ditadores árabes,
"mãe de todas as batalhas" e
outras. O que eu posso dizer?
Nós gostamos dessa linguagem,
nós lutamos por essa linguagem.
FOLHA - O sr. afirma que se recusa
a seguir a narrativa da história. Por
que essa rebeldia?
FISK - Foi a maneira que escolhi para ser jornalista. Nós muitas vezes nos tornamos meros
repetidores, como em "O primeiro-ministro disse...", "O Departamento de Estado acredita
que...". Basta assistir a uma coletiva em Washington com o
presidente. "Sr. presidente! Sr.
presidente!" "Sim, John". "Sim,
Bob". Uma relação amigável,
quase narcisística, entre jornalistas e o poder. Não deveríamos deixar nossos jornalistas
ou nossos presidentes ou nossos primeiros-ministros nos dizerem o que é história e o que
não é.
Veja o que estamos aceitando
agora, que o Irã é perigoso porque tem armas nucleares. O
verdadeiro perigo está no Paquistão, que já tem armas nucleares de verdade. Mas está
"do nosso lado", certo? E essas
pessoas nos alimentam com as
reportagens. Hoje, "Crise no
Golfo". Amanhã, "Guerra ao
Terror". Veja quão rapidamente adotamos as palavras, recolhemos essas palavras-lixo, repetimos e as tornamos verdadeiras. Fazemos o mesmo com
todos esses líderes, pessoas que
em muitos casos não têm nenhum conhecimento sobre o
que falam.
FOLHA - Uma das críticas mais freqüentes e bem fundamentadas feitas ao sr. é a de que seu trabalho é
muito pró-Oriente em geral e que o
sr. é muito rápido em culpar o Ocidente por todos os males. Como responde a isso?
FISK - Veja o que escrevi sobre
os Saddams e Arafats da vida.
Sou bastante crítico a eles. Assim como à maioria dos regimes árabes. Como jornalista,
você tem de estar do lado da
justiça, do equilíbrio, da decência, tem de se posicionar. O
Oriente Médio não é um jogo,
onde você dá tempo equivalente para cada time. Não é um julgamento público, é uma imensa
tragédia humana. Se estivéssemos cobrindo o tráfico de escravos no Brasil no século 17,
nós daríamos o mesmo espaço
ao escravo e ao traficante?
Em agosto de 2001, quando
um jovem palestino se explodiu
matando crianças israelenses,
eu dei o mesmo espaço para os
jihadistas islâmicos? Claro que
não. A idéia de que nós temos
de conduzir a cobertura de política estrangeira como se fosse
um jogo matemático é absurda.
Temos de ter uma identidade
moral como jornalistas. Quando vejo pessoas inocentes sendo bombardeadas, escrevo com
simpatia pelos primeiros. Como deveria, por ser um ser humano. Tenho de ter o direito.
Isso não quer dizer que você seja pró-arabe, ou pró-Israel ou
pró-qualquer outra coisa.
FOLHA - Um dos casos citados como argumento para as críticas é
aquela situação durante a Guerra do
Afeganistão, em 2001, quando o sr.
quase foi linchado por um grupo de
afegãos e escreveu que entendia o
que tinham feito e, no lugar deles,
teria feito o mesmo. Ainda pensa assim?
FISK - A situação é simples:
meu carro quebrou no meio de
um grupo de refugiados cujas
famílias acabavam de ter sido
massacradas por um ataque de
bombas de B-52s norte-americanos. E eu escrevi, de maneira
franca, que se estivesse lá também daria uma surra no Robert
Fisk. Isso tem sido repetido
sem a referência ao bombardeio dos B-52s, como faz o
"Wall Street Journal". Em outras palavras, eu passo a querer
que os muçulmanos linchem os
ocidentais...
Texto Anterior: Chuvas matam 200 em Karachi: Motociclista paquistanês passa diante de restos de outdoor destruído por inundação Próximo Texto: Frase Índice
|