São Paulo, domingo, 25 de julho de 2004

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ELEIÇÃO NOS EUA

Para o analista James Lindsay, o democrata só conseguirá alterar a forma, pois o Congresso manterá o conteúdo

Mudar agenda externa é desafio para Kerry

MÁRCIO SENNE DE MORAES
DA REDAÇÃO

A vitória do democrata John Kerry sobre George W. Bush na eleição presidencial de novembro acarretará uma clara mudança no modo como a política externa americana é aplicada, já que ele é bem mais multilateralista que seu oponente, porém não provocará uma alteração essencial, pois a maioria no Congresso deverá permanecer com os republicanos.
A análise é de James Lindsay, ex-diretor para questões globais e assuntos multilaterais do Conselho de Segurança Nacional dos EUA (1996-97, sob o comando do democrata Bill Clinton) e vice-presidente do Council on Foreign Relations, um dos mais reputados centros de pesquisas dos EUA.
Para ele, Kerry deverá privilegiar as relações transatlânticas e a questão iraquiana, visto que os problemas no Iraque perdurarão, o que é um mau presságio para a América Latina. "Creio que a América Latina venha a tornar-se mais importante [em Washington] se Kerry for eleito, mas não tão importante quanto deveria ser", apontou Lindsay.
Ele afirmou ainda que a política externa já desempenhou a parte mais importante de seu papel na eleição presidencial deste ano. "Tudo o que ocorreu no Iraque levou o governo Bush a seu mais baixo índice de aprovação popular e propiciou uma real oportunidade aos democratas."
Leia a seguir trechos de sua entrevista, por telefone, à Folha.
 

Folha - Várias pesquisas mostram que o eleitorado americano está mais interessado em política externa agora do que em outras eleições presidenciais. Em termos concretos, que importância ela terá na eleição deste ano?
James Lindsay -
Creio que a política externa já tenha desempenhado a parte mais importante de seu papel na eleição presidencial deste ano. Tudo o que ocorreu no Iraque levou o governo Bush a seu mais baixo índice de aprovação popular e propiciou uma real oportunidade aos democratas.
Há seis meses, a maioria dos republicanos considerava indubitável a reeleição de Bush. Contudo o que ocorreu e ainda vem ocorrendo no Iraque enfraqueceu seriamente a posição do presidente.

Folha - Nesse sentido, porém, o fato de Kerry ter escolhido o senador John Edwards, que tem pouca experiência em política internacional, para ser o vice de sua chapa não pode minar suas chances?
Lindsay -
Isso ainda não é certo, mas tudo indica que não por duas razões. Primeiro, não interessa aos americanos saber se Edwards sabe muito sobre política internacional. O que conta é saber se ele conhece o tema suficientemente bem para desempenhar seu papel de vice. Provavelmente, ele venha a conseguir atingir esse patamar.
Segundo, nos EUA, o que realmente interessa ao eleitorado numa eleição é quem comanda a chapa, não o vice. No caso atual, o candidato a presidente será decisivo, não seu companheiro de chapa. A regra geral no que tange à escolha do vice lembra uma premissa médica. Ou seja, o mais importante é não causar males.
Escolhendo Edwards, Kerry não fez mal à sua chapa. E, se o candidato a vice puder render-lhe alguns votos suplementares, sobretudo nos Estados ainda indefinidos, a chapa poderá mostrar-se forte ao final da campanha.

Folha - Em seu último livro, escrito em parceria com seu colega Ivo Daalder, do Instituto Brookings, há o argumento de que o 11 de Setembro permitiu que Bush lançasse uma revolução no que tange ao estilo da política externa dos EUA. O sr. crê que a revolução esteja fadada a ter fim em razão de suas repercussões práticas e internacionais?
Lindsay -
No final das contas, a revolução de Bush tem como premissa uma constatação errônea, segundo a qual a América pode fazer o que bem entende na cena internacional sozinha, sem o auxílio de seus aliados. Há vários problemas intelectuais relacionados a essa premissa, mas o mais grave é de ordem prática. Afinal, embora sejam muito poderosos, os EUA não são onipotentes.
O que observamos no Iraque mostrou que o envolvimento maciço em conflitos mina a infra-estrutura militar de qualquer país, mesmo a dos EUA. Ademais, isso distorce o debate sobre política externa. E devemos ter em mente que o súbito interesse dos americanos por política internacional não é genuíno e pode enganar até os analistas experientes.
Na verdade, os americanos estão preocupados com a Guerra do Iraque, com a reconstrução do país e com o combate ao terrorismo internacional. Todavia questões ligadas ao desenvolvimento econômico da América Latina, às mudanças no equilíbrio de poder na Ásia ou ao alastramento da Aids pela África não são discutidas atualmente e provavelmente não venham a entrar na pauta.
Há muitas discussões sobre a Guerra do Iraque, e os políticos insistem em tomar posição sobre esse tema, mas isso é tudo. O eleitorado até se preocupa com isso, mas trata-se de uma preocupação com algo que ocorreu no passado. Não há debate sobre o futuro no que concerne à política externa.

Folha - Mesmo com a eventual reeleição de Bush, os problemas ocorridos no Iraque deverão pôr fim à influência dos neoconservadores, como Paul Wolfowitz, vice-secretário da Defesa dos EUA?
Lindsay -
O poder dos neoconservadores ou imperialistas democráticos, como Daalder e eu os classificamos em nosso livro, tem sido exagerado pelos analistas. A força mais influente na atual administração provém dos conservadores radicais, que crêem na necessidade de destruir os "bandidos malvados".
Certamente, se Bush for reeleito, eles manterão sua influência por duas razões. Primeiro, Bush continuará sendo presidente. Segundo, [Dick] Cheney manterá seu posto de vice-presidente. Vários postos do gabinete poderão ser alvo de mudanças, até [Donald] Rumsfeld [secretário da Defesa] pode perder seu cargo, porém Bush e Cheney continuarão onde estão hoje.
O modo como ambos pensam não tende a mudar. No caso de uma eventual vitória republicana, Bush poderá reagir de duas maneiras. Primeiro, ele poderá imaginar que quase perdeu a disputa por conta da aplicação de políticas no mínimo controversas e concluir que precisa mudar. Segundo, ele poderá inferir que sua vitória demonstra que o eleitorado americano aprova suas políticas. Esta opção me parece bem mais provável no caso de Bush.
Atualmente, por outro lado, há bem menos alvos possíveis para aplicar o tipo de unilateralismo que o presidente tende a privilegiar porque, em seu primeiro mandato, a América ficou tão sobrecarregada militarmente que não pode hoje ampliar seu escopo de atuação militar. Eis o problema com o fato de os militares dos EUA estarem hoje no Iraque e no Afeganistão. Afinal, acabamos tendo de arcar com 90% dos custos financeiro e humano.
Se Bush for reeleito, o maior obstáculo à sua intenção de demonstrar ostensivamente o poder militar americano será de ordem prática, não ideológica. E ele jamais reconhecerá publicamente que cometeu graves erros em seu primeiro mandato.

Folha - Ou seja, em termos teóricos, há uma espécie de "overstretching" (extensão excessiva), como classificou Paul Kennedy em seu livro "Ascensão e Queda das Grandes Potências"?
Lindsay -
Exato. A capacidade militar americana tem um limite, e o governo Bush fez que esse limite ficasse bem próximo de ser atingido. É verdade que, em parte, as limitações são não só físicas, mas também políticas. O apoio popular é importante e não pode ser negligenciado nessa análise.
Devemos lembrar que os eleitores estão preocupados com a morte de soldados no Iraque e passam a pensar que o governo talvez não tenha uma estratégia suficientemente bem elaborada para superar os obstáculos.
Ademais, o conceito de guerra preventiva está morto. Os EUA não lançarão outra guerra preventiva a curto ou médio prazos por três razões. Primeiro, por conta do fracasso da aventura iraquiana. Os militares estão tão sobrecarregados que não seria prudente dar início a outro conflito.
Segundo, toda a história de realizar uma guerra preventiva contra o regime de Saddam Hussein tinha como premissa a idéia de que sabíamos que o ex-ditador iraquiano dispunha de tipos de arma que poderiam representar uma ameaça para os EUA. Quando as tropas chegaram ao Iraque, contudo, descobrimos que as armas de destruição em massa não existiam mais. Seria, portanto, muito mais difícil "vender" ao público americano a necessidade de fazer outra guerra preventiva.
Terceiro, não há mais muitos alvos passíveis de invasão militar. Quando falou da existência de um "eixo do mal", Bush citou três países: o Iraque, o Irã e a Coréia do Norte. Por que os EUA invadiram o Iraque? Porque a invasão do país era muito mais fácil que a do Irã ou a da Coréia do Norte.
O Irã tem uma população que é três vezes maior que a do Iraque, e seu governo goza de mais legitimidade interna que o de Saddam e tem mais amigos no exterior. A Coréia do Norte possui entre seis e oito armas nucleares e poderia destruir Seul [capital da Coréia do Sul] ou Tóquio [capital do Japão] rapidamente. Assim, não seria prudente atualmente lançar outra guerra preventiva. Poderá haver ataques preventivos a um campo de treinamento de terroristas no Iêmen, por exemplo, mas não existirá outra guerra do gênero.

Folha - Como isso afeta a comunidade internacional?
Lindsay -
É claro que isso é positivo internacionalmente. A situação no Iraque é ruim para todos, visto que ninguém quer que o país permaneça mergulhado num caos político-institucional, que ele volte a ter um regime autoritário ou que ele se torne a casa de terroristas internacionais.
Além disso, devemos ter em mente que o grande perigo é a proliferação das armas de destruição em massa. Infelizmente, a administração americana atual não deu a devida atenção ao assunto. Parte do problema é que, com a proliferação desenfreada, países que pensavam que não precisavam dotar-se desses armamentos poderão mudar de idéia por imaginar que a proliferação ameace sua segurança nacional. Conter a proliferação é um dos grandes desafios internacionais do século 21.

Folha - Em termos práticos, Kerry poderá realmente mudar o perfil da política externa americana?
Lindsay -
Haverá uma clara mudança de estilo, pois ele é mais conciliador e multilateralista que Bush. Em termos práticos, contudo, não creio que ele venha a poder alterar essencialmente a política externa dos EUA. Sua vitória na eleição presidencial não significará que os democratas recuperarão a maioria na Câmara ou no Senado, o que quer dizer que ele não terá muita margem de ação.
Um Congresso republicano fará tudo para minar as iniciativas de Kerry no que tange à política externa, sobretudo acerca do Iraque. Em outras áreas, pode-se dizer o mesmo. Nada indica que ele possa mudar políticas e agradar ao Congresso ao mesmo tempo. Por exemplo, não será fácil para ele obter a aprovação do Legislativo a um acordo que seja palatável para o Brasil sobre a Área de Livre Comércio das Américas [Alca].
Teremos de esperar para ver o talento do político Kerry num posto do Executivo. É mais difícil trabalhar no Executivo do que no Legislativo [Kerry é senador]. Não é fácil constituir coalizões em Washington. Sem elas, é difícil mudar a essência das políticas.

Folha - Após o 11 de Setembro, a América Latina, exceto o México, praticamente desapareceu da pauta política americana. É possível que a região volte a ser privilegiada com Kerry, conforme ele já afirmou ser necessário?
Lindsay -
Espero que sim, mas não posso prometer que isso vá ocorrer. Há algum tempo, o Iraque se tornou o tema internacional que fez que os outros desaparecessem da pauta política em Washington. E o problema iraquiano não terá fim simplesmente por conta de uma mudança de governo nos EUA. Assim, Kerry será obrigado a cuidar do tema.
Em virtude de sua formação, ademais, Kerry deverá privilegiar as relações transatlânticas. E, infelizmente, um presidente não tem tempo para tratar de todas as questões possíveis. Até agora, o virtual candidato democrata ainda não demonstrou que pretende pôr a América do Sul no centro de sua política externa, o que não é um bom presságio para a região.
Creio que a América Latina venha a tornar-se mais importante se Kerry for eleito, mas não tão importante quanto deveria ser.


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