São Paulo, quarta-feira, 25 de setembro de 2002

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ARTIGO

Guerra contra o Iraque é evitável

Faleh Kheiber/Reuters
Iraquiano diante de imagem de Saddam Hussein, em Bagdá


CELSO AMORIM
ESPECIAL PARA A FOLHA

Em dezembro de 1998 os EUA e o Reino Unido empreenderam um ataque aéreo ao Iraque, na sequência de uma série de crises relacionadas com as inspeções a que aquele país estava sujeito em decorrência das condições impostas para o cessar-fogo ao final da Guerra do Golfo. Tais condições faziam parte das resoluções que passaram, após o conflito, a governar o relacionamento da ONU com Bagdá, especialmente a resolução 687.
Vários membros do Conselho de Segurança nutriam dúvidas com relação a aspectos jurídicos e à oportunidade política do ataque, ainda que todos ou quase todos fossem críticos do comportamento pouco transparente do governo iraquiano. Em mais de uma ocasião, o Iraque procurara dissimular a existência de programas de armamentos, sobretudo na área química ou biológica, ou adotara procedimentos unilaterais para a destruição de mísseis, em contravenção ao que estabeleciam as resoluções.
Tudo isso, evidentemente, afetava a credibilidade de Bagdá, o que fez com que, mais de uma vez, o Conselho desse luz verde (mais implícita do que explícita) a alguma forma limitada de ação armada. Mas, sobretudo a partir da mudança de direção na comissão encarregada de monitorar o desarmamento do Iraque (a Unscom, na sigla em inglês), com a substituição de Rolf Ekeus por Richard Butler, alguns países-membros do Conselho começaram a questionar os métodos empregados pelos inspetores e a natureza excessivamente intrusiva de certas ações.
Elementos da Unscom eram acusados de comportamento desnecessariamente confrontante ou mesmo de perseguirem objetivos estranhos ao mandato conferido pelo Conselho de Segurança. Vários incidentes marcaram a atividade da Unscom, o mais recente deles tendo envolvido o acesso aos palácios presidenciais, cuja solução temporária, como se viu depois, exigiu a ida do secretário-geral Kofi Annan a Bagdá, em fevereiro do mesmo ano.
Da viagem de Annan a Bagdá resultou um memorando de entendimento sobre os procedimentos para as inspeções em áreas especialmente sensíveis. A incorporação desse acordo à normativa do Conselho demandou intensas negociações, que desembocaram na resolução 1154, para cuja redação, diga-se de passagem, o Brasil contribuiu substancialmente. O ponto mais polêmico, já naquela época, consistia em saber se seria ou não necessária uma nova decisão do Conselho para o uso da força, no caso de o Iraque violar os compromissos que havia assumido.
EUA e Reino Unido achavam que uma manifestação específica do Conselho era dispensável, já que disporiam de uma autorização residual, proveniente das resoluções anteriores, inclusive a 687. França, Rússia, China e vários países não-alinhados, entre os quais o Brasil (embora não fosse tecnicamente membro do movimento não-alinhado, o Brasil participava das reuniões desse grupo para efeitos de coordenação no Conselho), discordavam desse ponto de vista, com base não só nos princípios da Carta sobre o uso da força, mas também em dispositivos da própria resolução 687.
A discussão, entretanto, era mais política do que jurídica, e a solução encontrada, com base em fórmula proposta pelo Brasil, consistiu em, sem referir-se explicitamente à necessidade de autorização prévia, reproduzir, com pequenas adaptações, a linguagem do parágrafo final da resolução do cessar-fogo, que estabelecia que o Conselho -e não seus membros individualmente- deveria velar pelo cumprimento das obrigações e adotar as medidas que fossem necessárias para a realização dos seus objetivos.
Resolvida, ainda que temporariamente, a questão do acesso aos palácios presidenciais, outro problema que surgia com grande frequência nos debates no ano de 1998 dizia respeito à existência ou não de uma lista finita de tarefas a serem completadas pelo Iraque como condição para o levantamento das sanções. Bagdá sempre se queixava, com apoio de alguns membros do Conselho, de que, na ausência de uma relação exaustiva de problemas, sempre se poderiam criar exigências adicionais, o que tornaria as metas de desarmamento irrealizáveis por definição. Como consequência, as pesadas sanções a que o país estava submetido e que tiveram efeito devastador sobre a população iraquiana (como veio a ficar claro no "panel" sobre questões humanitárias, a que aludirei mais tarde) nunca seriam suspensas.


Os delegados souberam pela CNN que a ação militar havia sido desencadeada


A Unscom e alguns dos países de linha mais "dura" não aceitavam totalmente o conceito de uma "lista finita" de tarefas, alegando que isso facilitaria ao Iraque continuar dissimulando programas de armamentos, mas acabaram acedendo à idéia de um roteiro ou "road map" que distinguisse as áreas prioritárias de outras em que a margem de dúvida quanto à existência de armas de destruição em massa era menos importante. A existência de uma relação, mesmo que algo imprecisa, de tarefas prioritárias permitiria ao Conselho proceder a uma avaliação mais acurada do grau de cumprimento das obrigações por parte do Iraque e, em tese, responder, de forma positiva ou negativa, conforme o caso.
Depois de algumas peripécias, inclusive declarações de não-cooperação de Bagdá, reforçada por uma nova resolução do Conselho, a Unscom retomou as atividades no Iraque em novembro de 1999. Entretanto, quando os inspetores esbarraram com dificuldades e/ou obstrução em três (entre cerca de 300) ações de busca, Richard Butler enviou relatório ao Conselho de Segurança apontando novamente a "falta de cooperação" do Iraque. Sabia-se que essa expressão, à luz de debates anteriores, seria o provável gatilho para o uso da força. Antes que a discussão do documento que necessariamente tinha de passar pelo secretário-geral tivesse ao menos sido iniciada, os delegados tomaram conhecimento pela CNN, graças ao aparelho de televisão instalado na sala de espera, que a ação militar anglo-americana (Operação Raposa do Deserto) havia sido desencadeada.
No mês seguinte, o Brasil assumiu a presidência rotativa do Conselho de Segurança. A principal tarefa, em meio à sempre complexa e ativa agenda do órgão (que na época incluía temas como Angola, Serra Leoa e Kosovo, todos requerendo algum tipo de decisão), era restabelecer o diálogo entre os membros do Conselho sobre a questão iraquiana. Isso parecia extremamente problemático, haja vista a constante troca de acusações que passara a caracterizar qualquer tentativa de debate sobre o assunto.
Após intensas consultas individuais ou em grupo com os membros do Conselho (que chegaram a envolver reuniões dos membros permanentes presididas pelo Brasil!), foi possível encontrar um procedimento que permitiu desbloquear o tratamento do tema. Com base numa proposta originalmente feita pelo Canadá e depois desenvolvida com a contribuição de outros países, no último dia da presidência brasileira, estabeleceram-se três grupos de trabalho ou comissões ("panels") para tratar de diferentes aspectos da questão iraquiana, relacionados, respectivamente, com desarmamento, situação humana e prisioneiros de guerra e propriedade kuaitianos. O primeiro era obviamente o mais problemático, embora o drama humano vivido pela população iraquiana, em larga medida em decorrência das sanções -objeto do segundo grupo-, tenha se revelado mais sensível, do ponto de vista político, do que a princípio parecia.
A composição dos três grupos e as discussões que neles se deram formam uma história em si mesma, tais e tantas as pressões e contrapressões que se exerceram sobretudo em relação ao "panel" do desarmamento. Um dos problemas que enfrentei foi o de como lidar com a figura do presidente da Unscom, Richard Butler, objeto de desconfiança, se não de hostilidade, de três dos cinco membros permanentes. Ao final, foi possível, como disse uma vez a Kofi Annan, valendo-me do jargão "onusiano", colocá-lo "entre colchetes", isto é, isolá-lo do processo dos "panels".


Ausência de estratégia levou França, Rússia e China a se absterem da resolução


Penso que isso terá contribuído de alguma forma para a sua renúncia (mais precisamente, não-renovação do cargo) pouco depois da conclusão dos trabalhos. O problema central do grupo sobre desarmamento não era tanto o de reavaliar o grau de cumprimento pelo Iraque de suas obrigações, objeto de inúmeros relatórios disponíveis, mas o de garantir inspeções eficazes e ao mesmo tempo encontrar uma saída para o dilema decorrente da forma como as resoluções haviam sido redigidas, a qual poderia, segundo certas interpretações, levar a um processo infinito de exigências, sem um horizonte para a suspensão ou o término das sanções. Teoricamente, estas só seriam levantadas quando as tarefas de desarmamento tivessem sido completadas, momento a partir do qual o Iraque continuaria, entretanto, a ser objeto de um "monitoramento contínuo".
Naquela altura, segundo os relatórios da Agência Atômica de Viena, responsável pelas inspeções na área nuclear, não haveria indícios de que o Iraque estivesse perseguindo a reconstrução do seu programa nuclear. Em outras áreas, especialmente a de armas químicas e, sobretudo, biológicas, o quadro era mais obscuro. Como se tratava para o Iraque de dar uma "prova negativa" de que não estava desenvolvendo e/ou reconstituindo programas nessas áreas, era muito difícil determinar o momento em que se deveria passar da fase de desarmamento para a de monitoramento contínuo, o que tinha consequências diretas para o regime de sanções.
O que o grupo sobre o desarmamento, sob minha orientação, procurou fazer, além de várias recomendações não sem importância sobre composição, recrutamento, métodos da comissão encarregada das inspeções etc., foi desatar esse nó, "integrando" as tarefas eventualmente remanescentes de desarmamento em um monitoramento contínuo "reforçado". Isso permitiria, se houvesse vontade política dos membros do Conselho, dar um tratamento novo ao regime de sanções, retirando-o da situação de "tudo ou nada" implícita na resolução 687 (na prática, nada), criando incentivos "positivos" para um comportamento cooperativo do governo de Bagdá, na expectativa, inclusive, de contribuir para uma gradual melhora da grave situação humana da população iraquiana. Tal situação, como concluiu o "panel" respectivo, não podia ser atendida apenas com a política "caritativa" (na verdade, uma caridade em termos, pois os recursos provinham do próprio Iraque) embutida na resolução "petróleo por alimentos".
Os relatórios das três comissões, embora contivessem recomendações de natureza muito prática e apontassem caminhos novos, não chegavam a propor uma reformulação de política, tarefa que, como assinalei ao Conselho, cabia, no fundo, a ele próprio (e somente a ele). Várias das recomendações dos "panels", cujos relatórios a resolução 1284 recebeu positivamente ("welcome"), sobretudo na área de desarmamento, viriam a ser acolhidas pelo Conselho. A Unscom foi substituída por uma nova comissão, a Unmovic, cujas diferenças com a sua antecessora não ficaram apenas no nome. O caráter colegiado do órgão foi reforçado, o que em tese tornaria mais difícil sua manipulação. Vários de seus métodos de trabalho foram modificados, com mais ênfase na independência dos inspetores e mais cuidado no manuseio de informações, entre outras mudanças. Mais importante, o conceito de "monitoramento contínuo reforçado" foi incorporado à resolução. A idéia original, tal como desenvolvida na minha apresentação dos resultados dos "panels", era dar margem a um regime de sanções mais flexível, o que, entretanto, não ocorreu ou ocorreu de forma muito limitada.
Razão ou pretexto, a ausência de uma estratégia clara para a gradual eliminação das sanções terminou por levar as três potências mais relutantes (França, Rússia e China) a se absterem da resolução, ensejando ao Iraque a oportunidade de manter-se em uma atitude de obstinada não-cooperação.
O resto, como se diz, é história. Quatro anos se passaram sem inspeções; uma nova administração assumiu o governo nos Estados Unidos; o 11 de setembro embaralhou todas as cartas, reavivando antigos impulsos e despertando novas motivações.
Na medida em que a questão não parece ser apenas o desarmamento do Iraque, mas envolve aspectos mais amplos, como a luta contra o terrorismo internacional (cuja definição é, por natureza, vaga) e, possivelmente, a redefinição do quadro estratégico do Oriente Médio -ao qual a questão do petróleo não é naturalmente estranha-, as conclusões dos três grupos criados pelo Conselho em 1999 para desbloquear o tratamento do tema, que foram objeto de unânimes e enfáticos elogios, no próprio momento em que se aprovava a resolução 1284, são hoje, talvez, de pouca valia. Mas fica no ar a pergunta: se tivesse havido um pouco mais de flexibilidade de alguns membros do Conselho, sobretudo no que toca a um gradual alívio das sanções, sempre em resposta a gestos claros e positivos de cooperação por parte de Bagdá, teria sido possível levar de volta os inspetores ao Iraque?
É impossível dar uma resposta categórica a essa indagação. Além disso, é certamente inútil, a não ser talvez como exercício intelectual, tentar reescrever a história. Mas, sob o comando de um homem racional como Hans Blix, que veio a ser nomeado para a Unmovic e que já fora bem-sucedido com o próprio Iraque, na esfera nuclear, não é de todo improvável que se obtivessem resultados que, mesmo sem serem perfeitos, teriam permitido razoável grau de segurança quanto à incapacidade de aquele país vir a lançar um ataque com armas de destruição maciça contra qualquer de seus vizinhos e, muito menos, contra outras nações. Ao mesmo tempo, a população iraquiana teria deixado de sofrer algumas das gravíssimas consequências do mais duro regime de sanções jamais imposto pelas Nações Unidas. Estaríamos não de todo livres, por certo, mas ao menos mais distantes de uma guerra cujas consequências para a região, para o sistema multilateral e para a economia mundial, para mencionar só três aspectos, ainda não foram totalmente avaliadas.

Celso Luiz Nunes Amorim é embaixador do Brasil em Londres. Coordenou relatórios sobre o Iraque para a ONU entre 1998 e 1999 e era embaixador do Brasil na ONU quando o país integrou o Conselho de Segurança, coordenando o diálogo entre os integrantes do CS a respeito do Iraque, em 1999.


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