São Paulo, domingo, 25 de setembro de 2011

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O mártir

Folha visita cidade na Tunísia em que imolação do vendedor de frutas Mohamed Bouazizi deu início à Primavera Árabe

Zohra Bensemra - 19.jan.2011/Reuters
Família de Mohamed Bouazizi diante de seu túmulo

MARCELO NINIO
ENVIADO ESPECIAL A SIDI BOUZID (TUNÍSIA)

A cidade de Sidi Bouzid não merece menção nos guias turísticos da Tunísia, mas já tem lugar garantido nos livros de história como o berço da Primavera Árabe.
Para os moradores, a revolução ainda é uma promessa. Há mais liberdade, todos admitem, mas persiste a opressiva desigualdade social que foi um dos principais combustíveis do levante.
Até o começo do ano, eram raros os estrangeiros que apareciam nesta sonolenta cidade rural de 40 mil habitantes, no centro do país e longe das praias que atraem milhões de europeus todos os anos.
A reviravolta que colocou Sidi Bouzid no mapa e incendiou o Oriente Médio começou por volta de 11h30 de 17 de dezembro de 2010. Parecia um dia como outro qualquer, dizem moradores que viram a cena. Não era.
Depois de ser humilhado por uma fiscal da prefeitura e ficar sem a balança que usava para vender frutas e verduras, o ambulante Mohamed Boauzizi, 26, ateou fogo ao próprio corpo.
O gesto deflagrou uma onda de protestos que levou à fuga do ditador Zine Ben Ali, depois de 23 anos no poder.
O impensável acontecera: uma revolta popular derrubava um ditador árabe.
Mais surpreendente ainda, uma cidade desconhecida, de um país estrategicamente insignificante, deu origem ao terremoto que já destronou déspotas em outros dois países, Egito e Líbia, e continua a chacoalhar a região.
Bouazizi ficou duas semanas internado e chegou a ser visitado por Ben Ali. "Ele morreu sem saber que seu ato de desespero inspirou revoluções no país e em toda a região", diz Bougy, motorista de Sidi Bouzid que conheceu Bouazizi ainda criança.
Nove meses depois, os sentimentos dos moradores da cidade em relação à revolução são difusos. Bouazizi virou herói mundial e seu nome batiza avenidas e praças Tunísia afora, inclusive aquela em que ele se imolou.
"Ter o sobrenome mais famoso da Tunísia não me ajuda em nada", diz o agricultor Hedi Bouazizi, 28, primo de Mohamed. Sentado num café a poucos metros da praça, ele explica: "Continuo pobre e sem dinheiro para casar".
Guardadas as diferenças culturais, Sidi Bouzid lembra uma cidade do interior do Brasil, com gente batendo papo em cadeiras na calçada. O clima é familiar, todos se conhecem pelo nome. É fácil ouvir histórias sobre o herói.
"Ele era um bom sujeito, perdeu o pai cedo e teve que largar a escola depois do primário para ajudar a sustentar a mãe", conta o professor de francês e árabe Said Ghanmi, contrariando a versão corrente de que Mohamed tinha diploma universitário.

GANHA-PÃO
Amigos contam que Mohamed e outros ambulantes viviam "jogo de gato e rato" com os fiscais, pois não tinham licença para trabalhar.
Sua rotina era acordar todo dia às 5h e ir até o mercado central da cidade, onde pegava frutas e verduras por consignação para vender no centro. Nunca fazia mais do que 10 dinares por dia (R$ 12).
Ao ficar sem a balança que garantia seu ganha-pão, Mohamed foi protestar na prefeitura. Saiu escorraçado, depois de levar um tapa na cara da fiscal.
Wissem Dhaoui, 29, amigo de infância, diz que não se surpreendeu com os protestos que o gesto de Mohamed provocou. "A insatisfação era enorme. Só faltava uma faísca para explodir tudo", conta ele, que não considera o amigo um mártir, já que o suicídio é proibido pelo islã.
Embora ainda convivam com a desigualdade e a pobreza, os moradores de Sidi Bouzid admitem que o clima mudou desde a revolução.
"Na época de Ben Ali só abríamos a boca no dentista", brinca o estudante Khatem Elbeji, 23. "Hoje as pessoas falam o que quiserem."
Assim como no resto da Tunísia, a figura mais odiada continua a ser a ex-primeira-dama Leila Trabelsi, tida como a líder da cleptocracia familiar que tomou o país.
Mas também sobram farpas para uma mulher mais próxima, a mãe de Mohamed Bouzazi. Muitos não perdoam o fato de ela ter se mudado para Túnis com a ajuda do governo. "Ela ganhou uma fortuna com a desgraça do filho", diz Wissem.


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