São Paulo, sexta-feira, 25 de outubro de 2002

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AMÉRICA LATINA

Para o vice-presidente venezuelano, classe média é "ingênua" e suscetível a "mentiras" criadas sobre ambos

Elite demoniza Chávez e Lula, diz chavista

MARCIO AITH
ENVIADO ESPECIAL A CARACAS

As elites estão tentando "demonizar" o candidato do PT à Presidência, Luiz Inácio Lula da Silva, da mesma forma com que procuram minar a Presidência de Hugo Chávez na Venezuela. Essa é a opinião do vice-presidente venezuelano, José Vicente Rangel, referindo-se ao temor de que Lula instale um governo radical e expulse o capital do país.
Rangel diz, no entanto, que Lula e Chávez são pessoas diferentes e que a Venezuela ficará satisfeita com qualquer resultado na eleição brasileira, neste domingo.
"A eleição de Lula teria esse componente romântico e sentimental, mas, na prática, não vai mudar muita coisa. Nossa relação com [Fernando Henrique" Cardoso já foi maravilhosa."
Aos 73 anos, Rangel é hoje o mais influente assessor de Chávez. Como ministro das Relações Exteriores nos dois primeiros anos do atual governo, foi responsável pela execução da estratégia que tirou a Venezuela da órbita dos EUA, irritando a Casa Branca. Agora, diz que as relações entre Washington e Caracas "estão melhores do que nunca", depois que Chávez comprometeu-se a combater o terrorismo e prometeu fornecer petróleo de forma ilimitada à economia americana.
Rangel disse ainda que Chávez não vai renunciar nem reprimir com violência as oposições e os militares que se rebelam contra o governo em Caracas.
Em janeiro de 2001, Rangel foi transferido para o Ministério da Defesa, tendo sido o primeiro civil a ocupar esse cargo. Segundo depoimento de Chávez, Rangel propôs ao presidente resistir "à bala" aos golpistas durante o levante de 11 de abril que tirou o presidente do poder por 48 horas. Com o retorno de Chávez ao poder 48 horas depois, Rangel foi nomeado vice e recebeu a incumbência de coordenar o diálogo do governo com as oposições. Até o momento, esse diálogo fracassou.
Advogado de formação e jornalista de profissão, Rangel ingressou na política na década de 40. Em 1948, exilou-se no Chile por oposição ao general golpista Marcos Pérez Jiménez.
Quando a democracia foi restabelecida na Venezuela, em 1958, Rangel voltou ao país e elegeu-se deputado cinco vezes seguidas. Foi candidato fracassado à Presidência por coligações de partidos de esquerda em 1973, 1978 e 1983.
O vice-presidente é autor de um dos livros mais vendidos do país -"Expediente Negro", sobre a morte de um dirigente comunista- e tornou-se um colunista político influente na década de 90.
Rangel falou à Folha em seu gabinete, num prédio a dois quarteirões do palácio presidencial. Num outro canto da cidade, militares rebeldes pregavam a desobediência civil, e o país entrava numa nova fase de confusão política.

Folha - Por que Chávez não antecipa as eleições e acaba logo com a crise política no país?
José Vicente Rangel -
Antecipar as eleições está fora de conversa. Seria como pedir ao presidente Bush que antecipe as eleições porque ele equivocou-se em sua política com relação ao Iraque. Na Venezuela, há um setor que quer tirar Chávez do poder de qualquer maneira. Outro setor quer que Chávez cumpra seu mandato.
Se os setores de oposição buscarem uma proposta respaldada pela Constituição, nós iremos discuti-la. Até agora, fizemos tudo o que eles pediram. A oposição quis uma lei para desarmar a população. A bancada do governo a aprovou. As oposições propuseram novos mecanismos eleitorais. Ontem, os governistas aprovaram uma lei eleitoral.
Chávez propôs que um grupo internacional participe da investigação sobre as mortes ocorridas em abril [durante as manifestações que antecederam a tentativa de golpe". As oposições rejeitaram. Opõem-se ao ex-presidente Jimmy Carter. Sabe por quê? Dizem que Carter é chavista e que Chávez lhe pagou US$ 2 milhões.

Folha - O sr. foi encarregado de negociar com as oposições em abril e falhou nessa missão. Por quê?
Rangel -
O problema não é negociar. Estamos dispostos a fazer isso. O problema é que eles fingem que vão negociar, mas têm uma carta do golpismo escondida sob a manga. Percebam que cada vez que se convoca uma marcha ou uma greve é para precipitar um golpe. Essa última mobilização e a greve geral de segunda-feira culminaram, não por coincidência, com a palhaçada desse grupo de militares golpistas. São os mesmos de 11 de abril, os mesmos rostos, os mesmos uniformes.

Folha - Se esses militares estão se insubordinando, por que não foram presos?
Rangel -
Porque este é o país da impunidade. Retoricamente, respeitam-se muito as leis, mas não na prática. Houve uma decisão do máximo tribunal da República que absolveu esses militares. De acordo com a decisão, eles não deram um golpe de Estado em abril, mas se aproveitaram de um vazio de poder. Segundo o tribunal, Chávez não foi detido por eles, mas protegido. Foi um erro. E, como consequência desse erro, esses militares voltaram, fazendo essa palhaçada. São os mesmos gorilas golpistas de abril.

Folha - Qual é o motivo para não prendê-los agora? O governo não consegue controlar as Forças Armadas, ou os militares se negam a prender seus colegas?
Rangel -
O Exército da Venezuela é o mais democrático da região, por sua composição social e por outros fatores. Essas Forças Armadas não são golpistas. Existe espírito de corpo, mas não nessa forma absoluta e mítica de outros países. Em outros países, poderia ter havido uma solidariedade imediata a esses golpistas. Mas não aqui. Tenho conversado com todos os comandantes e chefes de guarnição. Eles estão profundamente irritados com os golpistas.

Folha - O que o governo pretende fazer em relação a esse protesto?
Rangel -
A única maneira é resolver isso democraticamente. Poderíamos mandar tropas para prendê-los, e há oficiais que fariam isso com prazer. Mas pessoas poderiam morrer.

Folha - Chávez perdeu a batalha pelo coração da classe média?
Rangel -
Há setores da classe média que realmente se colocaram contra Chávez. E isso se deve aos meios de comunicação. As classes médias assimilam mais rapidamente as mensagens da mídia que os setores populares. O curioso é que os setores mais beneficiados pela política de Chávez são as classes médias. Os menos beneficiados são as classes baixas, que fizeram um pacto de sangue com o presidente. A classe média é muito ingênua. Engole todas as mentiras dos setores que dominam a sociedade. No Brasil, reproduz-se a mesma coisa. Lula está ganhando a Presidência e muitos acham que ele vai comunizar o Brasil e expulsar o capital, embora isso seja uma mentira.

Folha - Segundo as pesquisas, Lula não é rejeitado pela classe média no Brasil...
Rangel -
Chávez também não tinha problema com a classe média no início de seu governo. Basta começar a propaganda para a coisa mudar. A classe média é muito suscetível. Por exemplo: vincularam Chávez a Fidel [Castro], como se nossa política externa se limitasse a Cuba.

Folha - Houve o encontro de Chávez com Saddam Hussein...
Rangel -
Toda vez que algum país da América Latina tenta obter sua autonomia, recebe esse tipo de crítica. Chávez acabou de voltar de uma viagem de sucesso da Europa, tem relações estratégicas com o mundo todo. Não houve uma única desapropriação na Venezuela. O câmbio é livre. Essas mentiras tem um propósito: influir na capacidade de reflexão da população. Estamos tentando resgatar fatias da classe média, mas é difícil.

Folha - Não é curioso que candidatos ditos de esquerda estejam avançando na América Latina enquanto os problemas na Venezuela indicam uma tendência inversa?
Rangel -
Não, não é estranho. Esse mesmo processo vai ocorrer no Brasil e no Equador. Tenha certeza disso.

Folha - O que vai ocorrer?
Rangel -
Resistências.

Folha - O que pode mudar na relação entre a Venezuela e o Brasil com a provável eleição de Lula?
Rangel -
Pode melhorar com qualquer candidato. Com Lula, há esse componente romântico, sentimental, mas não vai mudar muita coisa na prática. Nossa relação com Cardoso foi maravilhosa. O governo de Chávez descobriu o Brasil e vice-versa. São economias que se complementam. O Brasil descobriu sua fronteira com a Venezuela e vice-versa. Antes desta administração, a única fronteira que aproveitávamos comercialmente era com a Colômbia.

Folha - Como está a relação de Chávez com o governo dos EUA?
Rangel -
Ótima. Temos mantido uma atitude vigilante com relação ao terrorismo. Garantimos o fornecimento de petróleo aos EUA. O resto é retórica, das duas partes.



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