São Paulo, terça-feira, 25 de outubro de 2005

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DEPOIMENTO

"Silêncio opressivo mostrava que algo não ia bem"

KAREN MARÓN
ESPECIAL PARA A FOLHA, DE BAGDÁ

A primeira explosão sacudiu a cidade até suas bases. Eram 17h25, alguns minutos depois de terminado o jejum diário celebrado pelos muçulmanos durante seu mês sagrado, o Ramadã.
Segundos mais tarde, antes que eu pudesse reagir, a segunda explosão sacudiu as janelas do quarto, e logo depois a terceira, que faz tudo tremer até nosso sangue gelar. As nuvens de fumaça esbranquiçada que se erguem, imponentes, são o sinal da tragédia.
Os telefones ficam congestionados, e a notícia chega em tempo real. Três explosões aconteceram nas imediações dos hotéis Palestine e Sheraton, o complexo hoteleiro onde nós, correspondentes estrangeiros, costumamos nos hospedar e onde também se alojam os empresários que mantêm lucrativos negócios de segurança no Iraque devastado.
O primeiro pensamento racional é trabalhar rapidamente; a primeira emoção é a angústia com os que estão ali. Roger Auque, com a sabedoria de anos como correspondente de guerra e a experiência de ter sido refém do Hizbollah no Líbano durante um ano, acalma-me e prioriza o trabalho.
É que o hotel Palestine é nossa casa. É o lugar que nos albergou nos momentos mais difíceis da cobertura neste país. No entanto, de alguns meses para cá, o hotel, antes fortaleza, se converteu num lugar vulnerável. Foi embora a empresa de segurança que controlava com cuidado a entrada de pessoas e o perímetro de 300 metros ao seu redor. Foi por isso que desta vez, na minha quarta cobertura no Iraque, mudei de "casa". Mas sinto saudades do Palestine. Ali vivemos os momentos mais sublimes, aterradores, exultantes e tristes pelos quais um correspondente de guerra pode passar.
Estive no Palestine há quatro dias. Fui para lá com Fran Sevilla, da Rádio Nacional da Espanha, visitar outro querido amigo e mestre, Alberto Sotillo, da ABC. A revista corporal e dos meus pertences foi mais superficial do que nunca. As ruas dos arredores do hotel não tinham segurança, e só dois soldados das forças multinacionais controlavam a segunda barreira, conversando entre eles.
As ruas internas desertas e um silêncio opressivo foram o sinal de que algo não estava bem -eu o senti no ambiente. Na porta de entrada do hotel estavam posicionados três veículos Humvee com atiradores sobre seus tetos.
A banquinha que vendia refrigerantes, chocolates e cerveja -em segredo-, sempre firme, chovesse ou fizesse sol; a lojinha de artesanato no saguão do hotel, embora vazia de clientes, sempre atraente com os presentes e souvenires; o gerente em seu escritório, como o tenho visto desde que o conheci, e um membro da segurança que me perguntou para onde eu ia -é que, com o corpo coberto pela "abaya" e sob o "hijab", eu estava irreconhecível.
Mas hoje a barraquinha de bebidas está destruída. A lojinha com suas relíquias e seus presentes foi pulverizada, e o gerente tampouco está sentado em seu escritório.
O primeiro carro-bomba se jogou contra uma guarita e explodiu com seu motorista. Uma betoneira chegou manobrando, e o segundo homem-bomba se fez explodir. Ele viera pela praça Firdus, ou Paraíso, que o mundo conheceu ao ver a estátua de Saddam Hussein ser derrubada.
Apartamentos e casas da vizinhança ficaram destruídos, com as vítimas de sempre: os civis atingidos pelas guerras, os conflitos, as ocupações.
As mães que sofrem abortos espontâneos por causa do terror, os bebês que nascem prematuros em razão da angústia, as crianças que começam a sofrer novas doenças por causa das bombas que invadem seus sonhos, convertendo-os em pesadelos.
São ao menos seis mortos civis que nada têm a ver com o objetivo militar tão valorizado pela insurgência nestes 30 meses de ocupação. Os ataques com morteiro contra esses hotéis eram diários, e me recordo de um deles que me recebeu em um 8 de abril, quando se completou um ano da ocupação. Mas a história que se repete a cada dia tem como vítimas os mais inocentes, como os meninos que, todos os dias, eu via jogar futebol às margens do rio Tigre, num campinho improvisado ao lado do Palestine. Um ataque com morteiros matou quatro deles que não deviam ter mais de 12 anos.
Não os vejo mais jogar, nem vejo outros meninos oferecendo mercadorias na calçada, ou a multidão de correspondentes convivendo com tudo isso dia a dia para continuar contando a história. Porque sempre é melhor estar ali do que não, e nisso consiste uma responsabilidade social -e um risco, como ontem, de perder a vida. Vida que a dor, o poder, a ambição e a loucura levam embora.


A argentina Karen Marón é especializada na cobertura de conflitos armados, como na Colômbia e no Oriente Médio

Tradução de Clara Allain


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