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EUA não resolvem crise global, diz Kennedy
Historiador inglês alerta para excesso de expectativa sobre poder do novo presidente americano para revitalizar economia
Defensor da tese do declínio americano, professor de Yale vê Ásia mais resistente a efeitos da crise e elogia papel do Brasil no mundo
SAMY ADGHIRNI
DENYSE GODOY
DA REPORTAGEM LOCAL
A era do "Tio Sam", quando
os EUA ordenavam que se fizesse "isso e aquilo" sem consultar os outros protagonistas,
morreu, diz Paul Kennedy. E
seu epitáfio, segundo o historiador inglês de Yale, deve dedicar algumas linhas à atual crise
financeira global, que limitará,
em muito, o raio de ação do sucessor de George W. Bush.
Para o autor do livro "Ascensão e Queda das Grandes Potências" (Editora Campus) e
um dos principais teóricos do
declínio americano, a crise
acentuará a diminuição da influência dos EUA, pavimentará
o caminho rumo a uma ordem
mundial multipolar e mudará a
face do capitalismo global.
Kennedy, 63, alerta para a expectativa exagerada em relação
ao poder de fogo do próximo
presidente americano contra
os efeitos da crise. Mesmo assim, qualifica o democrata Barack Obama como o mais preparado para enfrentar a estagnação econômica e as guerras no Iraque e no Afeganistão.
Leia trechos da entrevista
concedida por Kennedy à Folha em visita ao Brasil, quinta-feira, para participar da Semana Yale na Brazilian Business
School em São Paulo.
FOLHA - Como o senhor encara a
expectativa gerada pela chegada de
um novo presidente americano para
pilotar a crise financeira?
PAUL KENNEDY - Estou preocupado com as expectativas quanto ao que o "novo cara" poderá
fazer. As pessoas não entendem
as enormes restrições de autonomia diante dos déficits. Além
disso, o "novo cara" pode ser
muito competente, responsável e articulado, mas só será eficaz se trabalhar estreitamente
com outros líderes. Acabou a
era do Tio Sam ordenando que
se faça "isso e aquilo" sem consultar outros protagonistas.
FOLHA - Qual é o maior desafio do
próximo presidente americano: a
crise financeira ou as situações desastrosas -e custosas- no Iraque e
no Afeganistão?
KENNEDY - Reencontrar o equilíbrio fiscal e ressuscitar a fé na
economia americana é o maior
desafio do próximo presidente.
Isso dito, acho que a gravidade
da crise pode ajudar Obama, na
medida em que lhe permitiria
pôr em prática mais facilmente
e com menos controvérsia do
que em outro contexto o seu
plano de retirada gradual das
tropas dos EUA no Iraque.
FOLHA - Qual o candidato mais
preparado para enfrentar esses desafios?
KENNEDY - Há um ano, quando
só se falava em Hillary Clinton,
Joe Lieberman, Rudy Giuliani
etc, minha mulher voltou de
Nebraska, onde havia gravado
um programa de TV com Obama, e me disse: "Olhei como esse cara respondia a perguntas
num vilarejo no meio do nada e
reparei no quanto ele é surpreendente".
Desde então, percebi que
Obama tem muito mais do que
aquela elegância pública e o
maravilhoso dom da palavra.
Ele escuta e pensa com muita
precisão. Mas estou tentando
conter meu otimismo e minhas
expectativas, porque quando
me lembro de que muitos efeitos dessa crise ainda não apareceram, penso que ninguém
conseguirá fazer o que quer que
seja em janeiro.
FOLHA - A que ponto a crise reflete
a diminuição do poder dos EUA?
KENNEDY - Não podemos discutir a crise falando apenas dos
EUA, já que está comprovado
que o estouro das hipotecas se
construiu também na Europa
Ocidental. Além disso, muitos
dos chamados "banqueiros internacionais inteligentes" alimentaram esse sistema viciado
na Islândia, no Reino Unido e
em outros lugares. Todo mundo está sentindo o baque, em
maior ou menor escala.
Mas acho que o crescimento
da Ásia continuará, embora em
ritmo menos acelerado. O crescimento da economia chinesa
poderá cair de 11,5% para 6%,
enquanto a economia americana ficará estagnada. Em termos
relativos, os EUA estão encolhendo. E não me refiro apenas
à confiança, que está num nível
assustador no país, mas ao fato
de as próprias possibilidades de
crescimento terem sido cortadas. Isso não aconteceu na Ásia.
FOLHA - Em que grau a atual crise
vai transformar o capitalismo?
KENNEDY - O que está acontecendo é um daqueles períodos
de mudança e de ajustes nas estruturas. Após a fase de baixo
crescimento da década de 70,
vieram a senhora [Margaret]
Thatcher e Ronald Reagan, que
liberalizaram, se livraram dos
controles financeiros, deram
descontos de impostos para investidores, e o resultado disso
foi o fluxo maciço de capital.
Sob o governo [George]
Bush, foram retiradas ainda
mais regulação e fiscalização.
Teremos um capitalismo modificado, aprimorado. Os investidores vão querer mais regulação, maior controle sobre os
hedge funds [que apostam em
diferentes ativos], sobre a especulação, e uma maior cooperação entre os bancos centrais.
Há quem diga, como o [presidente venezuelano Hugo] Chávez, que o capitalismo está
morto, mas essas medidas visam garantir que o capitalismo
volte a ser saudável, sem os excessos das especulações. Não
será mais como antes.
FOLHA - E como fica a divisão de
poderes nesse novo mundo?
KENNEDY - É verdade que há
uma profunda falta de confiança no governo [George W.]
Bush em todo o mundo, o que
pode ser superado por uma nova gestão que se mostre mais
sensível, mais inteligente, mais
cooperativa e multilateralista.
Mas, no longo prazo, o equilíbrio mundial está realmente
mudando. Não em termos militares, porque os EUA respondem por metade do orçamento
bélico mundial. A transformação fica evidente na composição das reservas internacionais
estratégicas dos países.
Duas décadas atrás, elas
eram compostas quase totalmente em dólares. Da última
vez que verifiquei, no começo
do ano, a parcela de moeda
americana era 63% e provavelmente vai continuar caindo e
teremos mais reservas em rupias da Índia, em yuans chineses, em euros quando a Europa
superar a sua crise bancária.
De um mundo do dólar passamos a um mundo de várias
moedas. Foram raros os momentos históricos que tiveram
uma potência só.
Voltaremos para a normalidade de um mundo multipolar,
com um líder mas outros países
fortes o suficiente para serem
independentes. Mesmo agora,
não há nada que o governo
americano possa fazer para intimidar a China, ou a Rússia, ou
a Índia. Já há três atores independentes.
FOLHA - É possível tirar alguma lição dessa crise?
KENNEDY - O efeito dominó, de
país a país e de banco a banco,
fez os líderes políticos perceberem que eles precisam trabalhar mais juntos. O Banco da
Inglaterra e o Banco da Suíça
entenderam que devem atuar
conjuntamente com o Fed e o
Banco do Japão e o do Canadá,
e assim por diante.
O Banco Mundial e o Fundo
Monetário Internacional são
instituições ótimas, mas até então, por causa da liberalização
do fluxo de capitais, não havia
nada relevante em matéria de
concertação sobre sistemas
bancários. Acho que poderá
surgir uma espécie de cartel de
bancos centrais das 12 maiores
economias, comprometidas em
atuar juntas para evitar que
seus maiores bancos não quebrem. Esse grupo se reuniria
com freqüência, possivelmente
substituindo o G7 e o G8.
FOLHA - O Brasil estaria no cartel?
KENNEDY - Do meu ponto de
vista, sim.
FOLHA - O sr. considera o Brasil
uma potência emergente, mesmo
com poderio militar e cultural tão
modesto?
KENNEDY - Ninguém cobra do
Brasil que se torne uma potência militar. Aliás, seria uma tolice o país botar muito dinheiro
em gastos com material bélico.
O presidente Hugo Chávez
está fazendo isso, mas a crise
vai fazê-lo se arrepender. Um
dos poucos benefícios desta crise é que Chávez e [o premiê e
ex-presidente russo] Vladimir
Putin serão afetados, pois eles
acreditaram muito no barril a
US$ 150.
Se o Brasil quiser se tornar
membro permanente do Conselho de Segurança da ONU,
deverá ter mais forças bem treinadas para abastecer as missões de paz, algo que já faz muito bem no Haiti.
Também convém ao país
manter sua atuação no campo
da diplomacia econômica e de
cooperação. A força do Brasil
está no seu papel como protagonista do comércio Sul-Norte
e Sul-Sul.
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