São Paulo, domingo, 26 de março de 2006

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ARTIGO

Olmert reinventa o legado de Sharon

ALUF BENN
DO HAARETZ

A corrida eleitoral de 2006 levou Israel de volta à época do histórico Mapai (o precursor do Partido Trabalhista de hoje). Como então, também hoje a identidade do vencedor parece ser certa, antes mesmo de a eleição acontecer, e a disputa tem girado sobretudo em torno da distribuição das cadeiras na Knesset (Parlamento) e da composição da futura coalizão. Dois fatos tiveram um efeito determinante sobre a eleição: a decisão tomada pelo primeiro-ministro Ariel Sharon de desmontar o Likud e criar o Kadima sobre suas ruínas, e, depois de Sharon entrar em coma, a imediata união dos líderes do partido em torno da candidatura do primeiro-ministro interino Ehud Olmert.
Nessas condições, a corrida real disputada por Olmert não se dá contra os líderes dos partidos rivais -Amir Peretz, do Partido Trabalhista, e Binyamin Netanyahu, do Likud, cujas candidaturas não chegaram a decolar de fato- , mas contra o candidato que não está presente: Sharon. Olmert precisou convencer todos de que é digno de tomar o lugar do popular "pai da nação" e que será capaz de preservar as conquistas eleitorais do líder incapacitado. Mais do que a troca de farpas muito divulgadas com Netanyahu, foi esse o teste de sua liderança.


A corrida de Olmert não é contra os rivais de outros partidos, mas contra Sharon, o candidato ausente; seu desafio é mostrar aos israelenses que é digno de substituir o "pai da nação"


Olmert goza a "vantagem de quem joga em seu próprio campo". Ele substituiu Sharon no meio da corrida e é candidato na condição de primeiro-ministro interino, mas não possui um histórico político suficientemente longo, o que pode complicar sua situação. Seu ponto fraco foi o fato de ter saído da situação de "menosprezado" nas pesquisas de opinião pública, nas quais, durante anos, esteve atrás de políticos mais populares e mais carismáticos. Olmert compreendia isso, tanto que entrou para a disputa voando em altitude baixa e foi elevando seu perfil público aos poucos. De acordo com assessores de Sharon, "ele simplesmente se deixou escorregar para a posição de candidato".

Símbolos
No prazo de dois meses, o primeiro-ministro comatoso perdeu espaço junto à atenção pública. Olmert conservou dois símbolos de seu status de substituto interino de Ariel Sharon: a cadeira vazia do premiê nas reuniões do gabinete, e sua recusa a entrar no gabinete do primeiro-ministro antes das eleições. As circunstâncias externas também o vêm favorecendo. A ascensão do Hamas ao poder na Autoridade Palestina não afetou o público israelense em muito, porque não foi acompanhada por ataques terroristas. A administração norte-americana vem manifestando apoio discreto a Olmert, ao mesmo tempo em que mantém distância da campanha eleitoral.
O Kadima está muito satisfeito com os resultados e vem elogiando o líder por sua conduta. Segundo um assessor, "a coisa mais importante que aconteceu em toda esta campanha não foi a queda nas pesquisas, no dia após a internação hospitalar de Sharon, de cerca de 40 cadeiras na Knesset para entre 22 e 25. O mais difícil foi conservar essas cadeiras na Knesset por um mês sem Arik (Sharon), até que as coisas se assentassem. E passamos por essa fase difícil com sucesso".
Outro assessor diz que o ponto crucial nas eleições foi a tarde da sexta-feira, 5 de janeiro, o dia após a internação hospitalar de Sharon, ao final da reunião de gabinete conduzida por Ehud Olmert na ausência do primeiro-ministro. Naquele momento, a chanceler Tzipi Livni, estrela em ascensão da política israelense, anunciou seu apoio a Olmert, e seu exemplo foi seguido pela maioria dos líderes do Kadima. Segundo o assessor, "o apoio incondicional manifestado por Tzipi a Ehud foi o acontecimento mais significativo na história do Kadima, transformando Olmert de uma opção que existia apenas por acaso, pelo fato de ele estar presente, em alguém que, inesperadamente, foi legitimado por todos".
Daquele momento em diante, a campanha avançou em diversas etapas. Durante os primeiros dias, Olmert trabalhou para estabilizar o Kadima, para conservar Shimon Peres a seu lado e para reconhecer as promessas que Sharon fizera aos candidatos. A idéia prevalecente naquele momento era que, se ele se mantivesse calmo e "pilotasse por instrumentos", sem cometer erros até 28 de março, sua vitória seria certeira. As primeiras aparições públicas de Olmert, em seu "discurso Herzliya" e algumas entrevistas à televisão, de fato aparentaram ser uma tentativa fracassada de imitar seu predecessor e anunciar as velhas mensagens deste.


Suas visões políticas são semelhantes às de Sharon; Olmert vai levar adiante o muro de separação e a idéia de unilateralidade, mas seu estilo de governar será muito diferente


Então o Hamas venceu a eleição palestina. A arena diplomática, que durante o tempo de Sharon parecera familiar, foi alterada de maneira dramática. Do ponto de vista de Olmert, era uma oportunidade para declarar sua independência e assumir ares de líder nacional, e não de apenas alguém que estava seguindo instruções deixadas por Sharon. A vitória do Hamas também libertou o premiê interino do compromisso com o "mapa do caminho" (acordo de paz referendado por Rússia, EUA e União Européia) e a criação de um Estado palestino nos territórios ocupados. Tornou-se mais fácil falar de um "front internacional", fazer exigências aos palestinos e retomar os ataques a ativistas do terror na Faixa de Gaza. A operação lançada para capturar os homens procurados em Jericó representou o batismo de fogo de Ehud Olmert na guerra contra os palestinos. Ela foi vista pelo público como sucesso, especialmente após as imagens duras da desocupação de colonos em Amona.
No início de março, Olmert apresentou seu plano diplomático em entrevistas a jornais, rompendo completamente com a tradição de Sharon, que sempre preferia divulgar pouco em suas campanhas, e anunciou a "iniciativa de convergência" para a desocupação dos assentamentos judaicos na Cisjordânia situados do outro lado da barreira de separação e para o estabelecimento de uma nova fronteira israelense.
A decisão de apresentar o plano foi precedida por uma discussão entre seus assessores, alguns dos quais faziam reservas em relação à revelação de posições claras e à perda de votos para o Likud. Entretanto, mesmo na época de Sharon no governo, Olmert acreditava que o desligamento (dos palestinos) é bem visto pelo público geral e que não faz sentido esconder-se por trás de fórmulas vagas. Seu principal ponto de apoio na equipe de assessores era Dov Weisglass, o arquiteto do plano de desligamento, que discordava com freqüência dos assessores políticos.
Ehud Olmert não tem sido um cliente fácil para os assessores de campanha de seu partido, que, ao longo dos anos, se acostumaram a trabalhar com seu antecessor. Sharon era muito mais dirigido do que Olmert, e deixava sua imagem pública ser muito mais administrada. Ele confiava em muito poucas pessoas, mas concedia grande liberdade de ação aos poucos em quem confiava, dando ouvidos a seus conselhos. Se eles dissessem a Sharon para manter silêncio, ele o fazia; se lhe mandassem falar ou acenar com a mão, ele obedecia. Os êxitos impressionantes nas eleições de 2001 e 2003 fortaleceram a posição do diretor de campanha Reuven Adler e dos assessores Eyal Arad, Lior Horev e Kalman Gayer.
Olmert é um político muito mais centralizador do que Sharon. Ele também consulta seus assessores e os ouve, mas é sempre o último a analisar qualquer documento emitido em seu nome e não passa muito tempo lendo textos preparados para ele de antemão. Às vezes ele faz declarações que preocupam seus assessores -como a afirmação, pouco após assumir o lugar de Sharon, de que as eleições já estavam decididas e que tudo o que era preciso era lutar pelo número de cadeiras na Knesset. Mesmo que isso seja correto e que seja confirmado pelos resultados das sondagens de opinião pública, para que dizê-lo de antemão?
Os problemas de ajuste na campanha estavam embutidos nela, porque seria difícil imaginar duas pessoas mais diferentes do que Sharon e Olmert em termos de história, temperamento e estilo de trabalho. Quando começaram a trabalhar com Olmert, os assessores de Sharon ficaram espantados ao ver o premiê interino levantar da cadeira, deixar sua mesa e ir até a mesa de sua chefe de gabinete, Shula Zaken, e pedir para ela incluir uma consulta para ele em seu cronograma. Arik jamais teria feito algo assim. Quando se lembrava de alguma coisa que precisava ser feita, chamava sua secretária e pedia para ela ir até ele. Em reuniões longas, Sharon demonstrava paciência enorme. Olmert, pelo contrário, é agitado. Ele é capaz de levantar no meio de uma discussão para dar uma olhada em seu computador e procurar as últimas notícias nos sites de notícias. Sharon nem sequer tinha computador em sua mesa.
Sharon absorvia informações ouvindo. Seus assessores liam os jornais e informações de inteligência para ele; sabiam que não deveriam lhe entregar documentos longos, porque ele não os leria. Olmert lê os jornais rapidamente ele próprio, pela manhã, e a leitura em voz alta de relatórios de inteligência lhe parece coisa estranha. Sharon adiava decisões e sempre procurava conservar sua liberdade de ação até o último minuto. Olmert é muito mais decidido e geralmente procura encerrar reuniões e consultas com uma conclusão clara. Sharon via partidas de futebol inglês na televisão, mas nunca ia a estádios. Ehud Olmert é fanático pelo esporte.

Semelhanças
O denominador comum dos dois políticos -algo que assume importância enorme na política- é a capacidade de ambos de prestar atenção a políticos e autoridades e de recordar em detalhes informações triviais e rumores relativos às pessoas que os cercam, desde líderes mundiais até funcionários partidários, jornalistas, assessores e secretários. Muitas pessoas hoje recordam o dia em que Olmert lhes telefonou e convidou para reuniões e consultas políticas, na época em que estava vagando no deserto político.
As metas políticas dos dois homens são semelhantes, mas não idênticas. Ambos dão preferência a medidas unilaterais, adotadas sob iniciativa israelense e com o apoio dos EUA, em lugar de diálogo e negociações com lideranças palestinas de qualquer vertente. Mas Olmert é muito mais resoluto do que Sharon em sua visão de que Israel terá que retirar-se da maior parte da Cisjordânia para poder conservar a maioria judaica em seu próprio território. Sharon chegou a essa conclusão depois dele, e, até seu último dia como primeiro-ministro, deu a impressão de que achava difícil aceitar esse fato, abstendo-se de fazer declarações sobre outra retirada. Aparentemente, seu mapa de "blocos de assentamentos" era mais extenso do que o de Olmert. Sharon queria Ofra, Beit El e Hebron. Olmert está falando apenas em Ma'aleh Adumim, Ariel e o Bloco Etzion e na separação dos bairros palestinos em Jerusalém.
Essas distinções vão perder a nitidez nos próximos meses: Olmert vai utilizar seu predecessor, cuja autoridade política e em matéria de segurança não era questionada, para justificar seu plano de retirada israelense até os limites marcados pela barreira de separação.
"Nossos estilos são diferentes, mas havia um entendimento de largo alcance entre nós", disse Olmert em entrevista concedida a mim e ao jornalista Yossi Verter. "Não sei se existem muitas, ou mesmo poucas, pessoas que sabem o que Arik pensava sobre as próximas etapas do processo diplomático. Mas eu sei exatamente, porque ele me disse."
De acordo com Olmert, as diferenças entre ele e Sharon se devem principalmente à mudança nas circunstâncias ocorrida na esteira da ascensão do Hamas ao poder. Para ele, também Sharon teria modificado sua política em função do que aconteceu.
Perguntamos a Olmert se a "sombra de Sharon" o incomoda. Ele estava preparado para a pergunta. "Por que sua sombra? Eu diria, em lugar disso, que é sua luz. Por que sua influência sempre é vista desde o lado escuro, e não desde o lado iluminador? Não esqueço por um momento sequer que foi Arik quem tomou a decisão de criar o Kadima. Com meu apoio. Falamos sobre isso durante anos. É uma idéia em cuja criação eu tive papel crucial, mas a responsabilidade pela decisão foi de Arik Sharon. E daí? Devo ignorá-la hoje? Negá-la? Que razão eu teria para isso? Pelo contrário, sinto orgulho pelo fato de poder levar adiante o que ele começou, e levá-lo adiante da maneira correta e responsável, levando em conta as mudanças nas circunstâncias."
A mensagem é clara: Ehud Olmert é um sucessor-candidato que recebeu de Sharon a grande chance de sua vida. Sharon o escolheu para seu vice, determinou o traçado da barreira de separação na Cisjordânia, desocupou os assentamentos na faixa de Gaza e remodelou o mapa político, com a criação do Kadima. Olmert recebeu dele uma casa quase pronta. Suas visões políticas são semelhantes; Olmert vai levar adiante as iniciativas de Sharon com relação à barreira e ao desligamento. Mas seu estilo e seu modo de governar serão completamente diferentes dos de Sharon.
O prazo de graça de Ehud Olmert vai chegar ao fim na terça-feira, às 22h, quando serão fechadas as seções de votação. A campanha eleitoral, que vem sendo caracterizada sobretudo pela indiferença do público, é como um passeio no parque comparada aos desafios que ele pode prever de agora em diante. A ascensão do Hamas, a preocupação internacional com a situação nos territórios, até mesmo o perigo da retomada de ataques terroristas, são apenas alguns dos problemas da lista que o novo premiê vai enfrentar.

Tradução de Clara Allain


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