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TRAGÉDIA
Vinte anos depois, política e interesses tornam difícil saber quantos foram afetados pelo maior desastre nuclear da história
Lobbies obscurecem dimensão de Tchernobil
HERVE KEMPF
DO "LE MONDE"
O lobby do setor de energia nuclear, o declínio da antiga URSS e
as mentiras de certos relatórios
dificultam computar o número
real de vítimas da maior catástrofe nuclear civil já acontecida. Qual
o número de mortos? Vinte anos
depois da catástrofe que arrasou a
usina nuclear de Tchernobil, a
avaliação dos danos humanos
que causou está suscitando uma
polêmica científica acalorada.
Neste mês, diversos estudos importantes mas contraditórios foram publicados: o relatório da Organização Mundial de Saúde
(OMS), o relatório TORCH ("The
Other Report on Tchernobil" -o
outro relatório sobre Tchernobil),
um estudo do Greenpeace e estudos do Centro Internacional de
Pesquisa sobre o Câncer (CIRC).
A eles podem ser acrescentados
outros trabalhos de pesquisadores, favoráveis e desfavoráveis à
energia nuclear.
A cacofonia talvez nos leve a
acreditar que um balanço objetivo seja impossível. Na verdade, é
possível discernir o custo humano da catástrofe, desde que levemos em conta as questões de política atômica que interferem com a
pesquisa científica, e também as
dificuldades metodológicas que
os trabalhos tiveram de enfrentar.
O peso dos lobbies
Desde as primeiras semanas
após o acidente, ocorrido em 26
de abril de 1986, a Agência Internacional de Energia Atômica
(AIEA) se encarregou de conduzir a interpretação do evento.
Criada em 1956, a AIEA tem por
missão promover a energia atômica. Em agosto de 1986, ela organizou uma conferência em Viena
para extrair as primeiras conclusões sobre o acidente. A delegação
soviética apresentou um relatório
no qual a conclusão era que a radiatividade liberada pela catástrofe causaria 44 mil mortes adicionais, por câncer, entre os 75 milhões de habitantes das regiões
atingidas. Essa estimativa foi criticada pelos especialistas ocidentais, de acordo a revista "Science"
de setembro de 1986.
A conferência se encerrou com
uma estimativa prévia de 4.000
mortes adicionais. A seguir, o relatório soviético desapareceu de
circulação oficial. De sua parte, a
OMS optou por manter o silêncio.
"Nós só interferimos a pedido dos
governos", ressalta Gregory Hartl,
porta-voz da organização.
Os países envolvidos não estavam dispostos a lançar luz sobre a
situação. Na URSS, todas as informações sobre a catástrofe continuaram a ser segredo de Estado
por anos. Só em 1989 elas começaram a ser divulgadas. Por dois ou
três anos, os cientistas foram autorizados a debater sobre as conseqüências. Mas o colapso da
URSS soterrou a discussão.
Dificuldades metodológicas
Mas a vontade política de minorar o impacto da catástrofe não é a
única explicação para a dificuldade de analisá-la. O problema científico de distinguir entre a mortalidade relacionada à radiação e
outros causas também representa
séria dificuldade. Os especialistas
em proteção contra a radiação raciocinam sob o princípio de que
quaisquer doses adicionais de radiação são prejudiciais, mesmo
que sua intensidade seja baixa.
Com base nesse critério, a melhor maneira de proceder é examinar as populações expostas à
radiação de Tchernobil e compará-las a outras populações, que
não sofreram tal exposição.
Mas, em virtude da decomposição da URSS, o sistema de saúde
dos países atingidos se degradou:
não existiam mais registros de
mortalidade e de contaminação
confiáveis. O primeiro debate: numerosos cientistas de Rússia,
Ucrânia e Belarus estimam hoje
que, a despeito dessas dificuldades, há diversos registros de saúde
confiáveis e que permitiriam formular hipóteses. O Greenpeace,
por sua vez, conduziu estudos
nesses países e chegou a um total
de 93 mil mortes por câncer. Os
pesquisadores ocidentais continuam a contestar a confiabilidade
dessas análises.
A mesma questão se aplica à
confiabilidade dos registros sobre
a dosagem de radiação recebida
pelos indivíduos expostos. Além
disso, a crise nos ex-integrantes
da URSS causou forte deterioração geral da saúde em geral, que
pode afetar o cálculo da influência
do "efeito Tchernobil".
O Fórum Tchernobil
Em setembro de 2005, um grupo formado por diversas instituições da ONU publicou, sob o nome de Fórum Tchernobil e por intermédio da AIEA, um comunicado intitulado "Tchernobil: a
verdade sobre o acidente", o qual
afirmava que forneceria "uma
resposta definitiva" sobre a crise.
O número total de vítimas adicionais estimado havia sido reduzido a 4.000 pacientes de câncer
de tireóide e 4.000 pacientes de
cânceres fatais, e o impacto de
Tchernobil sobre a saúde mental
das vítimas era "o mais grave problema de saúde criado pelo acidente", segundo o texto.
O relatório indignou diversas
organizações ambientais e muitos
cientistas. Ele foi redigido por
uma agência americana de relações públicas, a Marshall Hoffman, sem interferência de qualquer outra agência da ONU que
não a AIEA sobre o seu conteúdo.
Se compararmos com atenção o
comunicado inicial e o resumo do
Fórum Tchernobil ao relatório
sobre as conseqüências de saúde
divulgado em setembro sob os
auspícios da OMS, será possível
constatar diversas diferenças.
Enquanto o relatório da OMS
oferece nuances e aponta para incertezas, o comunicado do Fórum
Tchernobil é taxativo.
A OMS publicou seu relatório,
ligeiramente revisado, em abril,
dando destaque a uma informação que a AIEA preferiu dissimular: "A OMS estima que possam
ter acontecido até 9.000 mortes de
câncer devido ao acidente, entre
os trabalhadores de limpeza, as
pessoas retiradas e as que residiam nas zonas contaminadas da
Belarus, Ucrânia e Rússia".
O balanço final
Apesar de todos os esforços por
obscurecer o cômputo, agora começa a ser possível calcular o total
de vítimas. Além dos 50 bombeiros e técnicos mortos nas primeiras semanas depois do acidente,
um outro dado é seguro: o acidente causou câncer de tireóide entre
as pessoas expostas.
Ao menos 4.000 e talvez até 15
mil vítimas dessa doença podem
ser incluídas no total, já que nem
todas foram registradas. Um número anormalmente elevado de
casos de câncer de mama também
parece provável, e é possível que
defeitos congênitos tenham sido
causados pela radiação.
Também segundo os especialistas, a catástrofe causou incidência
de câncer superior à normal não
só entre as populações atingidas
na área do desastre mas também
no resto da Europa e no mundo.
De acordo com o relatório
TORCH, 53% da radiatividade foi
recebida por outros países europeus que não os mais fortemente
atingidos. A inclusão das vítimas
causadas pela radiação no restante da Europa levou duas equipes
de pesquisadores dirigidas por
Elisabeth Cardis, do CIRC, a estimar em 16 mil o número de mortes por câncer que se poderá atribuir a Tchernobil, até 2065.
O relatório TORCH, de sua parte, estima que o número de vítimas fatais em todo o mundo possa se situar entre 30 mil e 60 mil. A
essa análise é preciso acrescentar
o fato de que outras patologias
também são induzidas pelo acidente, especialmente cataratas e
moléstias cardiovasculares.
O relatório da OMS sugere que
o número de doenças cardiovasculares induzidas pela radiação
entre os trabalhadores das equipes de limpeza pode representar
total muito mais elevado do que o
de vítimas do câncer. A análise
precisa desse problema sem dúvida mudará o cálculo total sobre as
vítimas de Tchernobil.
No total, além de moléstias não-fatais e da esterilização de um território importante, a catástrofe de
Tchernobil terá provocado mais
dezenas de milhares de mortos.
Para que o cálculo ganhe precisão,
será preciso, como dizem os pesquisadores à maneira clássica,
continuar os estudos. E, de preferência, sem pressão.
Tradução de Paulo Migliacci
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