São Paulo, quarta-feira, 26 de abril de 2006

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TRAGÉDIA

Vinte anos depois, política e interesses tornam difícil saber quantos foram afetados pelo maior desastre nuclear da história

Lobbies obscurecem dimensão de Tchernobil

HERVE KEMPF
DO "LE MONDE"

O lobby do setor de energia nuclear, o declínio da antiga URSS e as mentiras de certos relatórios dificultam computar o número real de vítimas da maior catástrofe nuclear civil já acontecida. Qual o número de mortos? Vinte anos depois da catástrofe que arrasou a usina nuclear de Tchernobil, a avaliação dos danos humanos que causou está suscitando uma polêmica científica acalorada.
Neste mês, diversos estudos importantes mas contraditórios foram publicados: o relatório da Organização Mundial de Saúde (OMS), o relatório TORCH ("The Other Report on Tchernobil" -o outro relatório sobre Tchernobil), um estudo do Greenpeace e estudos do Centro Internacional de Pesquisa sobre o Câncer (CIRC). A eles podem ser acrescentados outros trabalhos de pesquisadores, favoráveis e desfavoráveis à energia nuclear.
A cacofonia talvez nos leve a acreditar que um balanço objetivo seja impossível. Na verdade, é possível discernir o custo humano da catástrofe, desde que levemos em conta as questões de política atômica que interferem com a pesquisa científica, e também as dificuldades metodológicas que os trabalhos tiveram de enfrentar.

O peso dos lobbies
Desde as primeiras semanas após o acidente, ocorrido em 26 de abril de 1986, a Agência Internacional de Energia Atômica (AIEA) se encarregou de conduzir a interpretação do evento.
Criada em 1956, a AIEA tem por missão promover a energia atômica. Em agosto de 1986, ela organizou uma conferência em Viena para extrair as primeiras conclusões sobre o acidente. A delegação soviética apresentou um relatório no qual a conclusão era que a radiatividade liberada pela catástrofe causaria 44 mil mortes adicionais, por câncer, entre os 75 milhões de habitantes das regiões atingidas. Essa estimativa foi criticada pelos especialistas ocidentais, de acordo a revista "Science" de setembro de 1986.
A conferência se encerrou com uma estimativa prévia de 4.000 mortes adicionais. A seguir, o relatório soviético desapareceu de circulação oficial. De sua parte, a OMS optou por manter o silêncio. "Nós só interferimos a pedido dos governos", ressalta Gregory Hartl, porta-voz da organização.
Os países envolvidos não estavam dispostos a lançar luz sobre a situação. Na URSS, todas as informações sobre a catástrofe continuaram a ser segredo de Estado por anos. Só em 1989 elas começaram a ser divulgadas. Por dois ou três anos, os cientistas foram autorizados a debater sobre as conseqüências. Mas o colapso da URSS soterrou a discussão.

Dificuldades metodológicas
Mas a vontade política de minorar o impacto da catástrofe não é a única explicação para a dificuldade de analisá-la. O problema científico de distinguir entre a mortalidade relacionada à radiação e outros causas também representa séria dificuldade. Os especialistas em proteção contra a radiação raciocinam sob o princípio de que quaisquer doses adicionais de radiação são prejudiciais, mesmo que sua intensidade seja baixa.
Com base nesse critério, a melhor maneira de proceder é examinar as populações expostas à radiação de Tchernobil e compará-las a outras populações, que não sofreram tal exposição.
Mas, em virtude da decomposição da URSS, o sistema de saúde dos países atingidos se degradou: não existiam mais registros de mortalidade e de contaminação confiáveis. O primeiro debate: numerosos cientistas de Rússia, Ucrânia e Belarus estimam hoje que, a despeito dessas dificuldades, há diversos registros de saúde confiáveis e que permitiriam formular hipóteses. O Greenpeace, por sua vez, conduziu estudos nesses países e chegou a um total de 93 mil mortes por câncer. Os pesquisadores ocidentais continuam a contestar a confiabilidade dessas análises.
A mesma questão se aplica à confiabilidade dos registros sobre a dosagem de radiação recebida pelos indivíduos expostos. Além disso, a crise nos ex-integrantes da URSS causou forte deterioração geral da saúde em geral, que pode afetar o cálculo da influência do "efeito Tchernobil".

O Fórum Tchernobil
Em setembro de 2005, um grupo formado por diversas instituições da ONU publicou, sob o nome de Fórum Tchernobil e por intermédio da AIEA, um comunicado intitulado "Tchernobil: a verdade sobre o acidente", o qual afirmava que forneceria "uma resposta definitiva" sobre a crise.
O número total de vítimas adicionais estimado havia sido reduzido a 4.000 pacientes de câncer de tireóide e 4.000 pacientes de cânceres fatais, e o impacto de Tchernobil sobre a saúde mental das vítimas era "o mais grave problema de saúde criado pelo acidente", segundo o texto.
O relatório indignou diversas organizações ambientais e muitos cientistas. Ele foi redigido por uma agência americana de relações públicas, a Marshall Hoffman, sem interferência de qualquer outra agência da ONU que não a AIEA sobre o seu conteúdo.
Se compararmos com atenção o comunicado inicial e o resumo do Fórum Tchernobil ao relatório sobre as conseqüências de saúde divulgado em setembro sob os auspícios da OMS, será possível constatar diversas diferenças.
Enquanto o relatório da OMS oferece nuances e aponta para incertezas, o comunicado do Fórum Tchernobil é taxativo.
A OMS publicou seu relatório, ligeiramente revisado, em abril, dando destaque a uma informação que a AIEA preferiu dissimular: "A OMS estima que possam ter acontecido até 9.000 mortes de câncer devido ao acidente, entre os trabalhadores de limpeza, as pessoas retiradas e as que residiam nas zonas contaminadas da Belarus, Ucrânia e Rússia".

O balanço final
Apesar de todos os esforços por obscurecer o cômputo, agora começa a ser possível calcular o total de vítimas. Além dos 50 bombeiros e técnicos mortos nas primeiras semanas depois do acidente, um outro dado é seguro: o acidente causou câncer de tireóide entre as pessoas expostas.
Ao menos 4.000 e talvez até 15 mil vítimas dessa doença podem ser incluídas no total, já que nem todas foram registradas. Um número anormalmente elevado de casos de câncer de mama também parece provável, e é possível que defeitos congênitos tenham sido causados pela radiação.
Também segundo os especialistas, a catástrofe causou incidência de câncer superior à normal não só entre as populações atingidas na área do desastre mas também no resto da Europa e no mundo.
De acordo com o relatório TORCH, 53% da radiatividade foi recebida por outros países europeus que não os mais fortemente atingidos. A inclusão das vítimas causadas pela radiação no restante da Europa levou duas equipes de pesquisadores dirigidas por Elisabeth Cardis, do CIRC, a estimar em 16 mil o número de mortes por câncer que se poderá atribuir a Tchernobil, até 2065.
O relatório TORCH, de sua parte, estima que o número de vítimas fatais em todo o mundo possa se situar entre 30 mil e 60 mil. A essa análise é preciso acrescentar o fato de que outras patologias também são induzidas pelo acidente, especialmente cataratas e moléstias cardiovasculares.
O relatório da OMS sugere que o número de doenças cardiovasculares induzidas pela radiação entre os trabalhadores das equipes de limpeza pode representar total muito mais elevado do que o de vítimas do câncer. A análise precisa desse problema sem dúvida mudará o cálculo total sobre as vítimas de Tchernobil.
No total, além de moléstias não-fatais e da esterilização de um território importante, a catástrofe de Tchernobil terá provocado mais dezenas de milhares de mortos. Para que o cálculo ganhe precisão, será preciso, como dizem os pesquisadores à maneira clássica, continuar os estudos. E, de preferência, sem pressão.


Tradução de Paulo Migliacci

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