São Paulo, domingo, 26 de abril de 2009

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Cidade agrupa saudosistas do apartheid

População branca e africâner de Orania, criada há 18 anos na África do Sul, vive isolada e diz querer preservar sua cultura

Grupo que fundou encrave onde não há negros se diz vítima do que vê como políticas de "discriminação" contra os brancos no país


FÁBIO ZANINI
ENVIADO ESPECIAL A ORANIA (ÁFRICA DO SUL)

Um garoto arregaçando as mangas e de jeito enfezado recebe os visitantes em Orania, a utopia branca no coração da África do Sul. É ele o símbolo na bandeira e nas cédulas desta cidade autônoma a 650 km de Johannesburgo, onde negros não podem viver e onde o apartheid é lembrado com saudosismo.
São 700 habitantes dedicados a proteger a cultura africâner, dos descendentes de colonizadores holandeses do século 18, e que se sentem ameaçados pela democracia racial.
Por 50 anos, essa minoria (6% da população) governou o país com base num regime de segregação racial interrompido apenas com a libertação de Nelson Mandela, em 1990. Mas, em Orania, quem tem um museu não é o líder antiapartheid, e sim o primeiro-ministro linha-dura que o prendeu nos anos 60, Hendrik Verwoerd.
"Queremos chegar a 500 mil habitantes um dia. Se os judeus criaram Israel para preservar sua cultura, nós criamos Orania", diz Franz de Klerk, comerciante na cidade.
A cidade foi fundada em 1991, às margens do rio Orange, na província do Cabo Norte. É o único resultado concreto de um movimento de africâners surgido quando perceberam que o apartheid acabava, o de criar regiões em que pudessem viver apenas entre os seus.
"Não queremos diluir nossa cultura com coisas como casamento inter-racial", diz o vice-prefeito, Manie Opperman.
Orania representa a face mais radical de uma preocupação corrente entre os brancos sul-africanos, a de que sua cultura está sitiada pela ascensão social e econômica dos negros, e de que seus empregos estão sendo retirados por políticas de ação afirmativa do governo.
"Há uma nova discriminação. Brancos não conseguem empregos porque são brancos", afirma Pieter Mulder, líder da Frente da Liberdade, o partido que representa os africâners. Nacionalmente, deve ficar com no máximo 2% dos votos, mas em Orania recebeu 87%.

Autonomia
Juridicamente, Orania utiliza-se de uma brecha prevista na Constituição, que em seu artigo 235 assegurou o direito de comunidades culturais de exercerem autodeterminação em um território específico.
Seus moradores são parte da África do Sul, estão submetidos às mesmas leis, mas têm autonomia. Na ânsia de acalmar os brancos, a Carta abriu essa exceção, que aparentemente se choca com a proibição de discriminação racial.
Em tese, ninguém é proibido de entrar na cidade. Não há cancelas nem portões. Mas se uma pessoa estranha, principalmente negra, começar a perambular pelas ruazinhas, será abordada por moradores. "Nós ficamos de olho a todo momento para saber o que se passa", diz John Strydom, "relações públicas" de Orania.
Para se tornar um morador de Orania, não basta chegar e procurar uma casa para alugar. É preciso uma espécie de concurso: entrevistas com o prefeito e os sete vereadores, eleitos pelo voto direto. Pré-requisito: ser parte da cultura africâner. Mesmo outros brancos têm dificuldade. "Não é uma questão racial: é uma questão cultural", afirma Strydom.
Orania tem ruas calmas, nenhum semáforo e uma população que vive das terras férteis das margens do rio, cultivando milho, trigo e castanhas. Vendidos para outras parte da África do Sul (ou "exportados", como dizem alguns), trazem riqueza.
O padrão de vida é altíssimo: casas confortáveis, poluição e barulho zero, lixo reciclado e uso de energias alternativas, como a do vento. O isolamento geográfico ajuda para que os níveis de criminalidade sejam mínimos. Há duas escolas, uma agência bancária, três igrejas, duas pousadas, dois museus.
O mote é a "autossustentabilidade". Os moradores de Orania só interagem com o mundo exterior se quiserem.
"Numa cidade como Johannesburgo, meus filhos podem ser sequestrados; aqui, deixo minha casa aberta", afirma Jackie Stewart, 38, ex-enfermeira que se mudou para a cidade há três anos. Ela afirma que não se importa de os filhos não conviverem com negros e mestiços, mais de 90% da população.
"Nós não temos os mesmos valores", afirma.
Orania criou o "ora", uma cédula impressa numa gráfica ali perto, que tem o mesmo valor do rand, a moeda sul-africana, também aceita na cidade.
"O ora tem várias vantagens: nos dá um senso de identidade maior, ajuda a manter aqui dentro a riqueza produzida e é mais seguro, porque ninguém de fora vai querer roubar", afirma o morador John Strydom -ex-médico que largou sua vida na província de KwaZulu-Natal há 13 anos para virar fazendeiro ali. O comércio da cidade dá 5% de desconto se a compra for feita na moeda.


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