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Cidade agrupa saudosistas do apartheid
População branca e africâner de Orania, criada há 18 anos na África do Sul, vive isolada e diz querer preservar sua cultura
Grupo que fundou encrave onde não há negros se diz vítima do que vê como políticas de "discriminação" contra os brancos no país
FÁBIO ZANINI
ENVIADO ESPECIAL A ORANIA
(ÁFRICA DO SUL)
Um garoto arregaçando as
mangas e de jeito enfezado recebe os visitantes em Orania, a
utopia branca no coração da
África do Sul. É ele o símbolo na
bandeira e nas cédulas desta cidade autônoma a 650 km de Johannesburgo, onde negros não
podem viver e onde o apartheid
é lembrado com saudosismo.
São 700 habitantes dedicados a proteger a cultura africâner, dos descendentes de colonizadores holandeses do século
18, e que se sentem ameaçados
pela democracia racial.
Por 50 anos, essa minoria
(6% da população) governou o
país com base num regime de
segregação racial interrompido
apenas com a libertação de Nelson Mandela, em 1990. Mas,
em Orania, quem tem um museu não é o líder antiapartheid,
e sim o primeiro-ministro linha-dura que o prendeu nos
anos 60, Hendrik Verwoerd.
"Queremos chegar a 500 mil
habitantes um dia. Se os judeus
criaram Israel para preservar
sua cultura, nós criamos Orania", diz Franz de Klerk, comerciante na cidade.
A cidade foi fundada em 1991,
às margens do rio Orange, na
província do Cabo Norte. É o
único resultado concreto de
um movimento de africâners
surgido quando perceberam
que o apartheid acabava, o de
criar regiões em que pudessem
viver apenas entre os seus.
"Não queremos diluir nossa
cultura com coisas como casamento inter-racial", diz o vice-prefeito, Manie Opperman.
Orania representa a face
mais radical de uma preocupação corrente entre os brancos
sul-africanos, a de que sua cultura está sitiada pela ascensão
social e econômica dos negros,
e de que seus empregos estão
sendo retirados por políticas de
ação afirmativa do governo.
"Há uma nova discriminação. Brancos não conseguem
empregos porque são brancos",
afirma Pieter Mulder, líder da
Frente da Liberdade, o partido
que representa os africâners.
Nacionalmente, deve ficar com
no máximo 2% dos votos, mas
em Orania recebeu 87%.
Autonomia
Juridicamente, Orania utiliza-se de uma brecha prevista
na Constituição, que em seu artigo 235 assegurou o direito de
comunidades culturais de exercerem autodeterminação em
um território específico.
Seus moradores são parte da
África do Sul, estão submetidos
às mesmas leis, mas têm autonomia. Na ânsia de acalmar os
brancos, a Carta abriu essa exceção, que aparentemente se
choca com a proibição de discriminação racial.
Em tese, ninguém é proibido
de entrar na cidade. Não há
cancelas nem portões. Mas se
uma pessoa estranha, principalmente negra, começar a perambular pelas ruazinhas, será
abordada por moradores. "Nós
ficamos de olho a todo momento para saber o que se passa",
diz John Strydom, "relações
públicas" de Orania.
Para se tornar um morador
de Orania, não basta chegar e
procurar uma casa para alugar.
É preciso uma espécie de concurso: entrevistas com o prefeito e os sete vereadores, eleitos
pelo voto direto. Pré-requisito:
ser parte da cultura africâner.
Mesmo outros brancos têm dificuldade. "Não é uma questão
racial: é uma questão cultural",
afirma Strydom.
Orania tem ruas calmas, nenhum semáforo e uma população que vive das terras férteis
das margens do rio, cultivando
milho, trigo e castanhas. Vendidos para outras parte da África
do Sul (ou "exportados", como
dizem alguns), trazem riqueza.
O padrão de vida é altíssimo:
casas confortáveis, poluição e
barulho zero, lixo reciclado e
uso de energias alternativas,
como a do vento. O isolamento
geográfico ajuda para que os níveis de criminalidade sejam
mínimos. Há duas escolas, uma
agência bancária, três igrejas,
duas pousadas, dois museus.
O mote é a "autossustentabilidade". Os moradores de Orania só interagem com o mundo
exterior se quiserem.
"Numa cidade como Johannesburgo, meus filhos podem
ser sequestrados; aqui, deixo
minha casa aberta", afirma Jackie Stewart, 38, ex-enfermeira
que se mudou para a cidade há
três anos. Ela afirma que não se
importa de os filhos não conviverem com negros e mestiços,
mais de 90% da população.
"Nós não temos os mesmos
valores", afirma.
Orania criou o "ora", uma cédula impressa numa gráfica ali
perto, que tem o mesmo valor
do rand, a moeda sul-africana,
também aceita na cidade.
"O ora tem várias vantagens:
nos dá um senso de identidade
maior, ajuda a manter aqui
dentro a riqueza produzida e é
mais seguro, porque ninguém
de fora vai querer roubar", afirma o morador John Strydom
-ex-médico que largou sua vida na província de KwaZulu-Natal há 13 anos para virar fazendeiro ali. O comércio da cidade dá 5% de desconto se a
compra for feita na moeda.
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