São Paulo, quarta-feira, 26 de maio de 2004

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ARTIGO

A aposta épica de Bush

DAVID BROOKS
DO "NEW YORK TIMES"

George W. Bush deixou claro, anteontem à noite, que vitórias militares não serão suficientes, sozinhas, para instaurar a segurança no Iraque. Não paramos de ter vitórias, mas, de alguma forma, a violência continua.
O trabalho americano de construção nacional tampouco vai garantir a segurança no Iraque. Estamos despejando dinheiro no país, na tentativa de construir uma nação decente e depois devolvê-la à população iraquiana, embrulhada de presente. Mas descobrimos que isso tampouco funciona. Quanto mais tempo continuamos em controle do país, mais a confusão cresce.
A única maneira real de garantir a segurança do Iraque, afirmou Bush, é por meio de uma democracia autônoma. Apenas o autogoverno representativo vai negar aos terroristas o pretexto de que precisam para matar. É apenas por meio de atos mundanos de cidadania democrática que os iraquianos vão conseguir erguer uma sociedade civil.
A transição política que Bush descreve implica uma infinidade de atos concretos. Os 400 partidos políticos existentes hoje no Iraque terão de se fundir em apenas alguns poucos. Debates serão realizados. Políticos vão disputar o poder, petições serão assinadas, protestos serão registrados. E, conforme Bush deixou implícito, esse constitui o único caminho que pode conduzir à normalidade.
É uma aposta enorme imaginar que a solução para o caos esteja na liberdade. Mas é justo que, durante a mais grave crise de sua Presidência, Bush tenha voltado para sua crença política mais fundamental.
Bush começou a Guerra do Iraque repetindo o sentimento incorporado à Declaração de Independência -o de que nosso Criador dotou todos os seres humanos do direito à liberdade e da capacidade de funcionar como cidadãos democráticos. Anteontem à noite, ele disse com confiança absoluta que os iraquianos são, em seus corações, democratas.
Bush está apostando sua Presidência -e o futuro de curto prazo dos EUA- nessa premissa americana fundamental.
Trata-se de uma aposta épica. Isso porque, verdade seja dita, não sabemos se todas as pessoas querem realmente viver em liberdade. Não sabemos se os iraquianos têm alguma noção do significado real de cidadania democrática. Não sabemos se eles interpretam palavras como ""liberdade" e "pluralismo" como insultos mortais ao modo de vida que lhes é caro. Não sabemos quem são nossos inimigos. Serão eles uma pequena minoria de baathistas e jihadistas, ou será que existe um pouco de Moqtada al Sadr no coração de cada iraquiano?
Bush está submetendo essa premissa básica de nossa doutrina a um teste terrível, sob as piores circunstâncias possíveis. No último ano os americanos cometeram erros pavorosos. E, se essa aposta falhar, não será apenas a competência de nossos representantes que será colocada em dúvida -será a própria doutrina americana.
Se essa aposta falhar, essa missão americana será vista por muitos como sendo falsa. Talvez a democracia e a liberdade não sejam realmente valores universais, dirão alguns. Talvez sejam apenas produtos de uma cultura específica. Será difícil fazer frente aos tiranos que vão arriscar o mundo.
Por outro lado, se continuarmos firmes no Iraque, da maneira como pudermos, e alguma espécie de nação semidemocrática for pouco a pouco emergindo, isso não será fruto da habilidade americana. Acontecerá porque a doutrina democrática é tão forte que é capaz de superar as piores incompetências. Nesse caso, realmente haverá esperança de um Oriente Médio democrático. A guerra contra o terror aparecerá como a que realmente pode ser vencida.
Neste momento, a impressão que se tem é que essa saída feliz está muito distante. Mas pelo menos Bush enfrentou cara a cara as conseqüências de sua doutrina. Sempre houve algo de antidemocrático no conceito de construção de uma nação -a idéia de que um país podia entrar em uma terra estrangeira e depois entregá-la de volta a sua população.
Bush está apostando sua Presidência nos iraquianos e em sua capacidade de se governar melhor do que nós os governamos. Pelo menos, agora, ele está agindo de maneira que corresponde à convicção básica dos EUA. Se temos fé em alguma coisa, deve ser nesse sonho democrático, que sempre justificou nossas esperanças.


Tradução de Clara Allain


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