São Paulo, sábado, 26 de agosto de 2006

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Congresso extrapolou, diz García

Vice de Morales defende que Constituinte vote por maioria simples, apesar de a Lei de Convocatória prever 2/3

Em entrevista à Folha, García Linera diz que congressistas não tinham a atribuição de criar regras para a Constituinte


FABIANO MAISONNAVE
ENVIADO ESPECIAL A BRASÍLIA

Ex-guerrilheiro nos anos 1990, quando foi torturado e passou cinco anos preso, o vice-presidente boliviano, Álvaro García Linera, 43, hoje é considerado o principal ideólogo do MAS (Movimento ao Socialismo) e, no exterior, atua como um porta-voz de estilo mais moderado do governo de Evo Morales.
Na última quinta-feira, ele se reuniu com o presidente Luiz Inácio Lula da Silva para tentar superar o estremecimento diplomático e reabrir os impasses gerados pela nacionalização do gás, decretada em 1º de maio. Após o encontro, ele concedeu a seguinte entrevista à Folha:

 
FOLHA - O governo anunciou recentemente a suspensão temporária de parte da nacionalização, o presidente da YPFB (estatal boliviana) está sendo responsabilizado por irregularidades administrativas, as negociações com a Petrobras não avançam e alguns prazos do decreto já venceram. Por que há essa crise?
ÁLVARO GARCÍA LINERA -
A nacionalização é uma tarefa bastante complicada, que vai exigir um conjunto de ajustes, como os que estão sendo feitos agora. É complicado em termos políticos porque há forças de antigos governos que resistem a que isso e que vão usar todos os meios para impedir que haja êxito nesse caminho. A nacionalização é a coluna vertebral de um novo país, de um novo regime econômico. Politicamente, a história da nacionalização é o fim de qualquer possível regresso a formas neoliberais de economia. Em termos técnicos, é muito complicado porque envolve muitas áreas de toda a cadeira hidrocarbonífera. Não será estranho se outras irregularidades aparecerem.

FOLHA - O MAS passou a defender que a votação na Assembléia Constituinte seja por maioria simples, apesar de a Lei de Convocatória prever dois terços. Não se trata de mudar as regras no meio do jogo?
ÁLVARO GARCÍA LINERA -
Nós, desde que levantamos a bandeira da Assembléia Constituinte como reivindicação social em 2002, defendemos que a Assembléia seja refundadora, isto é, acima dos Poderes atualmente estabelecidos. Uma coisa é dizer que estou acima de você, outra coisa é dizer que você não existe. Justamente por isso foi que, quando se elaborou, em 2005, o pedido para o Parlamento aprovar uma Lei de Convocatória [da Constituinte], se dizia que o Congresso não deveria fazer uma lei não normativa, como acabou acontecendo. E a lei diz que só o texto final precisa ser aprovado por dois terços.
Além disso, a Constituição diz que o Congresso poderá convocar, nada mais. Os congressistas extrapolaram as suas atribuições, porque elaboram a convocatória, a modalidade de eleição, mas, além disso, colocam normas. Isso é romper a legalidade e o acordo de 2005.
E o que quer agora a oposição? Que o regulamento, a parte administrativa, que cada um dos artigos seja por dois terços. Nós, o que queremos? Que cada um dos artigos e a base administrativa sejam aprovadas por maioria simples. Por princípio, acreditamos que, se é uma Assembléia originária, não deveria haver nenhum Poder acima, mas isso é parte do debate. O que não deveria ser o tema do debate é a parte administrativa e a parte dos artigos.

FOLHA - Mas o sr. disse na campanha que o objetivo do MAS era ter de 70% a 80% da Assembléia, visando os dois terços. A Lei de Convocatória é de março e foi aprovada por um Congresso com maioria do MAS. O debate sobre a maioria simples só começou agora. Não é casuísmo?
GARCÍA -
Todo candidato diz que vai ganhar as eleições. O que você está mencionando é campanha, dissemos que tínhamos de obter até 90%. É otimismo de campanha. Mas era impossível chegar a mais de 63%, porque elaboramos a lei assim. Eu relatei essa lei na parte dos votos e das porcentagens, fiz as fórmulas diante dos deputados. Essa parte é minha responsabilidade. Não é que mudamos de posição porque não obtivemos 70%, mas a imprensa confunde o discurso de campanha com o fato prático e frio das cifras.

FOLHA - Porém o MAS usou outras siglas partidárias como estratégia para ajudar a chegar aos dois terços.
GARCÍA -
Lamentavelmente, não fizemos muito, apenas em Cochabamba, e obtivemos cinco constituintes. Faltou tempo. Mas habilitamos a presença de minorias, e assumimos a responsabilidade de consenso. O fato de que queremos trabalhar com maioria absoluta não tira o fato de que nos esforçamos por consensos. Mas é uma questão de princípios diante de partidos que governaram com 25% do eleitorado e agora querem transformar 15%, 20% em ditadura diante de uma maioria simples.

FOLHA - O governo tenta processar o ex-presidente Eduardo Rodríguez (2005-2006), responsável pela bem-sucedida transição política, pelo envio de cerca de 30 mísseis aos EUA, fato que ele diz que desconhecia e que mandou investigar ao ser revelado. Não há exagero?
GARCÍA -
Ninguém tira o valor do ex-presidente Rodríguez em assumir a transição num momento tão complicado e conflitivo. É preciso parabenizá-lo. Mas há uma mancha potencial, que não é qualquer coisa e envolve a soberania do nosso país. O que diria você se os aviões e mísseis da Força Aérea Brasileira amanhã aparecessem em outro país? Talvez ele não seja o culpado, mas era o comandante das Forças Armadas. Ele tem de explicar o que ocorreu. Mas isso não tira seu grande papel na transição democrática.


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