São Paulo, domingo, 26 de setembro de 2004

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ARTIGO

O equívoco da guerra ao "terror global"

JOHANN HARI
DO "INDEPENDENT"

Enquanto jihadistas iraquianos ameaçavam decapitar o refém britânico Kenneth Bigley, a palavra ""terrorista" estava em toda parte. Se eu pudesse proibir alguma palavra da língua inglesa, seria essa. Eis um exemplo de sua utilização desigual: há duas semanas, jihadistas tchetchenos assassinaram mais de 300 crianças em Beslan. Eles são ""terroristas". Desde 1991, as tropas russas já assassinaram mais de 40 mil tchetchenos. Elas não são "terroristas" -são "nossas aliadas".
O termo terrorista designa simplesmente "violência que não apoiamos". No mundo adulto, cada ato individual de violência precisa ser discutido com base em seu mérito próprio e dentro de seu próprio contexto. Algumas das pessoas que gritam "terrorista" mais alto admitem que utilizam o termo para calar qualquer discussão. O guru neoconservador Richard Pearle diz que precisamos "descontextualizar o terror". "Qualquer tentativa de discutir as raízes do terrorismo é uma tentativa de justificá-lo", diz ele. "O terrorismo precisa apenas ser combatido e destruído." É preciso analisar um pouco da história recente para compreender até que ponto essa visão é equivocada. Quando a União Soviética caiu, a população tchetchena buscou tornar-se independente da Rússia, o país que a vinha oprimindo havia mais de um século. Os tchetchenos têm uma língua e uma cultura separados; era uma exigência perfeitamente razoável -mas a porta de saída foi rapidamente trancada. A Tchetchênia é fonte importante de acesso às reservas de petróleo e gás natural da região. Nenhum governo russo ia deixar sua população livre.


"Guerra ao terror", nome equivocado, permite que toda ditadura de meia-tigela ataque suas minorias insatisfeitas. A batalha real se dá contra um tipo específico de extremismo islâmico wahabita


Então os tchetchenos lançaram uma campanha de violência limitada. Em resposta, a Rússia arrasou a Tchetchênia. Desde então, um quarto da população tchetchena ""desapareceu" nos ataques. Em 1996 o governo russo finalmente se cansou de bombardear escombros e ser bombardeado em resposta. Ele concedeu à Tchetchênia a soberania ""de facto". A violência parou. A paz reinou durante três anos.
Mas, quando duas bombas explodiram em dois prédios de apartamentos de Moscou em 1999, matando 200 pessoas inocentes, Vladimir Putin não hesitou em afirmar que o fato era prova de que nenhum gesto conciliatório é capaz de apaziguar os tchetchenos. Existe um problema nesse argumento: vários jornalistas respeitados, entre eles meu colega Patrick Cockburn, descobriram que uma terceira bomba, idêntica às duas primeiras, foi plantada num prédio de apartamentos próximo aos dois primeiros. Os responsáveis por essa terceira bomba foram capturados -e, mais tarde, soltos pela polícia quando esta descobriu que eles eram agentes do serviço secreto russo.
Existem evidências consideráveis de que Putin reiniciou a guerra na Tchetchênia -e, de quebra, acabou com a paz frágil da região- para fomentar seus objetivos políticos e estratégicos próprios. Quem são os "terroristas" nesse cenário? Como esse rótulo nos ajuda a compreender esse conflito?
Pearle diria que a simples apresentação desse contexto já significa pedir desculpas pelo terrorismo. Imagine que isso fosse dito sobre qualquer outro acontecimento histórico. Existe entre os historiadores um consenso de que as injustiças contidas no Tratado de Versalhes contribuíram para a ascensão do nazismo. Será que isso significa que todos esses historiadores são pró-nazistas?
O termo "terrorismo", conforme é utilizado pela imprensa e os políticos hoje, convida a todos nós para que participemos de um desconhecimento estranho e proposital sobre causa e efeito. Como pode isso constituir uma resposta séria a nossos problemas?
Quando ocorrem ataques violentos, precisamos compreender por que estão acontecendo. Se não o fizermos, vamos ficar nos movendo inutilmente dentro de um vazio histórico, impotentes para prevenir ataques futuros. Se Putin realmente quisesse pôr fim aos ataques contra civis russos, ele retiraria suas tropas assassinas da região e concederia independência a ela. Ele não o faz porque, claramente, atribui valor maior às reservas de petróleo e gás -e a sua reputação por ser "intransigente"- do que à vida humana.
É bobagem descrever a batalha que estamos travando desde 11 de setembro de 2001 como uma "guerra ao terror". Esse nome equivocado vem permitindo que toda ditadura de meia-tigela ataque suas próprias minorias insatisfeitas, tachando-as de "terroristas".


A maioria dos jihadistas combaterá até muito depois de termos resolvido as reivindicações com as quais os ocidentais simpatizam. A maioria de suas reivindicações não pode ser atendida sem abrirmos mão de nossos valores


A batalha que realmente estamos travando -mas que temos melindres em descrever como o que ela realmente é- se dá contra um tipo específico de fundamentalista islâmico wahabita. Por que Tony Blair não a chama por seu nome correto, em lugar de falar aereamente sobre "derrotar o terrorismo global para sempre" -uma frase absurda e sem sentido?
Em todo lugar onde se permitiu que o jihadismo tomasse o poder, como no Afeganistão, os jihadistas têm cometido violações dos direitos humanos comparáveis aos piores excessos do comunismo e do fascismo (as vítimas, em sua maioria, têm sido muçulmanos inocentes). Eles acreditam no valor de se exterminar grupos minoritários como os homossexuais, os judeus e até mesmo outras seitas muçulmanas. Acreditam que, em muitas circunstâncias, a morte é preferível à vida -e estão dispostos a levar com eles muitas pessoas que não concordam com essa visão.
É precisamente porque essa filosofia é tão perigosa que não podemos nos dar ao luxo de não levar o contexto em conta. Precisamos compreender os fatores que tornam o jihadismo tão atraente a tantos jovens, senão jamais poderemos preveni-lo. O jihadismo não é algo inerente à fé islâmica. Existem poucos jihadistas em países muçulmanos prósperos e estáveis, como a Turquia, ou entre as populações muçulmanas da Europa e América. Não, o jihadismo é um vírus que se dissemina sob condições de pobreza, humilhação e opressão sangrenta.
Onde existem queixas legítimas sendo exploradas por jihadistas, elas precisam ser tratadas com urgência. É preciso haver uma Tchetchênia independente, uma Caxemira livre, um Estado palestino e o fim da revoltante dinastia Saud.
É claro que satisfazer a todas essas reivindicações não vai automaticamente fazer todos os jihadistas voltarem para as cavernas de onde saíram, mas vai reduzir em muito sua base de apoio e fazer com que seja mais difícil recrutarem uma nova geração de simpatizantes.
No entanto, nossos governos mal começaram o longo processo de reorientar nossa política externa de modo a que ela enfraqueça essas causas do jihadismo. Eles ainda apóiam os massacres de Putin na Tchetchênia. Ainda apóiam e armam Ariel Sharon, enquanto ele reforça assentamentos na Cisjordânia. Na Ásia central, estão criando um novo Oriente Médio, repleto de tiranos corruptos pró-Ocidente e de populações revoltadas que se voltam ao islamofascismo.
Se estamos nos preparando para uma luta longa e perigosa contra o jihadismo, então precisamos começar a apagar esses incêndios de ódio. Apenas quando essas reivindicações justas tiverem sido atendidas -quando não houver mais justiça do lado jihadista- nossos líderes poderão criar um consenso para combater os últimos resquícios do fundamentalismo islâmico.
Que não fiquem ilusões. A maioria dos jihadistas vai continuar a combater até muito depois de termos resolvido as reivindicações com as quais os liberais ocidentais podem simpatizar. A maioria de suas reivindicações simplesmente não poderia ser atendida sem abrirmos mão de nossos valores.
Vejam-se os jihadistas que, no início deste mês, fizeram civis franceses reféns no Iraque. Estavam tentando forçar o governo eleito francês a revogar a proibição do uso do véu muçulmano nas escolas estaduais. Sua queixa é tanto contra o secularismo quanto contra a democracia. Alguém pensa que essa reivindicação deveria ser atendida?
Ou veja-se o caso dos jihadistas que fizeram Kenneth Bigley refém no Iraque. Eles exigiram a libertação, entre outros, da especialista em armas químicas de Saddam Hussein. Como pode ser tratada essa reivindicação -o desejo da volta do regime de Saddam Hussein- senão com balas? Chame-os de defensores de Saddam, chame-os de monstros. Mas, por favor, não reforce uma das grandes cretinices de nossa era. Não os chame de "terroristas".

Tradução de Clara Allain


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