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São Paulo, domingo, 26 de outubro de 2003

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IMPRENSA

ONU cria país fictício para treinar profissionais que vão à guerra; aumenta procura por cursos preparatórios

Conflitos matam mais jornalistas em 2003

SÉRGIO DÁVILA
ENVIADO ESPECIAL AO "SUDISTÃO"

São 18h em Kurkulan, capital do Sudistão. Um grupo de jornalistas estrangeiros é conduzido a um posto de controle da Unfisud, a missão de paz da Organização das Nações Unidas (ONU) neste país arrasado por guerrilhas e divisões internas desde a queda do Muro de Berlim, em 1989.
Ao norte, rebeldes fundaram a República do Novuskão, de maioria muladina, com capital na cidade de Novosukan. O sul, de maioria serodoxa, viu nascer a República Federativa do Sudistão, com sede em Alejogrado. É no centro que as duas forças se enfrentam e é pelo centro que caminham os jornalistas agora.
Às 18h05, o posto da ONU voa pelos ares. Os repórteres correm em direção ao atentado e logo percebem que um carro-bomba explodiu próximo a uma das guaritas dos capacetes azuis. Um adulto muladino se feriu gravemente, assim como as três crianças que o acompanhavam.
Corta. O Sudistão, os muladinos e os serodoxos nunca existiram, os "feridos" são soldados-atores, e, na verdade, o carro-bomba é um velho Falcon argentino dos anos 80. Tudo não passa de uma encenação criada pelos organizadores do Curso Internacional para Jornalistas em Zonas de Conflito e Missões de Paz.
As aulas são ministradas numa vila militar ao sul de Buenos Aires pela ONU e pelo Centro Argentino de Treinamento para Operações de Paz (Caecopaz, na sigla em espanhol). Teóricas pela manhã, com temas como "legislação internacional", "uso de mapas", "primeiros socorros" e "negociação em situação com reféns", viram uma mistura do jogo "War" com psicodrama à tarde.
Os 43 jornalistas da turma da qual a Folha participou há duas semanas, vindos de 13 países da América Latina (mais Espanha e Caribe), teriam ainda de se proteger de tiroteios de fuzis, seriam sequestrados, vendados com sacos pretos e algemados e levados para valas cavadas no chão durante um assalto de madrugada.
Sofreriam ainda "torturas" e teriam de matar seu próprio coelho no meio da floresta e depois cozinhá-lo, sempre em situações-limite causadas por uma das duas facções em litígio no "Sudistão", cuja inspiração óbvia são as frágeis repúblicas dos Bálcãs.
O curso tem similares na Europa e nos Estados Unidos e surgiu de uma constatação recente da entidade mundial com sede em Nova York: nunca morreram tantos jornalistas em conflitos como ocorre nos últimos meses.
Segundo cálculos divulgados na semana passada pela ONG Repórteres sem Fronteiras, são 31 os repórteres feridos fatalmente em conflitos até setembro de 2003, contra 25 do ano todo passado. Para o Comitê de Proteção ao Jornalista, foram 26 as vítimas em igual período, contra 20 no ano passado (os números variam porque cada entidade tem uma definição diferente de "conflito").
Os números gerais também cresceram. De acordo com dados publicados ainda na semana passada pela Associação Mundial de Jornais, nos nove primeiro meses deste ano, 51 jornalistas morreram em ação, contra 46 em 2002.

Guerra do Iraque
A Guerra do Iraque aparece como vilã, embora cada ano sempre tenha um conflito principal que responda por boa parte das mortes. Neste caso, em seus 42 dias de duração, morreram 18 dos 900 jornalistas estrangeiros presentes no país. Para se ter uma idéia, durante os 11 anos da Guerra do Vietnã (1964-1975), perderam a vida apenas 54 dos 6 mil profissionais da imprensa que cobriram o conflito naquela região da Ásia.
Para o historiador Patrick Eveno, autor de "O Capital na Imprensa Francesa, de 1820 aos Nossos Dias" (Editions du CTHS, 2003), há cada vez mais não só conflitos como também jornalistas dispostos a chegar mais próximos da linha de frente da batalha. "Dessa maneira, os profissionais se expõem cada vez mais", diz.
Já para Bill Hammond, historiador do Centro de História Militar do Exército dos EUA, a guerra é perigosa para quem quer que esteja na linha de frente, soldado ou jornalista. "Talvez os repórteres estejam em maior perigo, pois correm os mesmos riscos que os militares, mas não andam armados nem em veículos blindados."
E talvez seja por isso que a busca por cursos de preparação para reportagens em zonas perigosas tenha explodido nos últimos meses. No Reino Unido e nos EUA, em que duas semanas de aula podem custar de US$ 15 mil a US$ 20 mil, o assédio dos futuros alunos mais do que dobrou desde a Guerra do Afeganistão, em 2001.
Na América Latina, o equivalente sai por US$ 600 graças ao subsídio da ONU, e a procura também cresce a cada semestre.
"Depois da avalanche de mortos no Afeganistão e no Iraque, os jornalistas estão se conscientizando de que não adianta apenas a vontade de cobrir a guerra e o desejo de que tudo corra bem para sobreviver numa situação dessas", disse à Folha Karen Marón, 29 anos, co-diretora do Caecopaz. "É preciso muito preparo."
A jornalista argentina, que já trabalhou no Oriente Médio e foi sequestrada pelas Farc, na Colômbia, fez o primeiro curso e cuida da elaboração do currículo desde o segundo. Hoje, são oferecidas quase três dezenas de cadeiras nos dez dias de duração. O resultado não é unânime.
"Confesso que esperava menos teoria e mais prática", disse à Folha Yuli García Peña, repórter colombiana que atua na CNI Canal 40, emissora do México, e pretende cobrir a guerrilha na Colômbia já no início do ano que vem. "Mas o curso valeu para me mostrar o quanto eu achava que estava preparada e na verdade não estou."
Dela discorda Juan Carlos Cruzado Castilho, repórter do diário "El Peruano", de Lima. "Vi e ouvi tantos relatos impressionantes que perdi a visão romântica que tinha da guerra", afirmou ele. "Ninguém pode dizer que, na hora, não vai sentir medo." Principalmente quando começar a ouvir as primeiras balas de verdade.


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