São Paulo, segunda-feira, 26 de dezembro de 2005

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ENTREVISTA DA 2ª

GAY TALESE

Para autor de clássico sobre o "New York Times", o maior jornal do mundo "enamorou-se do poder"

Bush anestesiou imprensa e anulou oposição, diz escritor

Jacqueline Lamra - 12.dez.05/Associated Press
Manifestante solitária ergue cartaz na Filadélfia com a palavra "lies" (mentiras), em protesto contra a ocupação americana do Iraque, que já dura mais de dois anos


MARCELO NINIO
DA REDAÇÃO

Não foi um ano fácil para o jornal mais influente do mundo. Em outubro, o "New York Times" foi obrigado a admitir falhas na condução do ruidoso escândalo de vazamento de informações do governo Bush, que expôs a identidade de uma agente da CIA e levou uma de suas principais repórteres, Judith Miller, a passar 85 dias presa por não revelar sua fonte.
Miller já fora pivô de outro embaraço para o jornal ao escrever reportagens que reforçaram a tese, mais tarde desmentida, de que Saddam Hussein tinha armas de destruição de massa, usada pelos EUA para invadir o Iraque.
Para o escritor e jornalista americano Gay Talese, autor daquela que é considerada a história definitiva do "New York Times", Miller é apenas o símbolo de uma série de fracassos éticos e administrativos que contaminaram boa parte da imprensa americana.
Nascido em 1932 na pequena ilha de Ocean City, Nova Jersey, Talese foi um dos fundadores na década de 60 da vertente conhecida como "New Journalism", que usa a narrativa literária em textos não-ficcionais.
Em entrevista à Folha, Talese foi impiedoso com a imprensa e os políticos de seu país, "vítima de sua própria propaganda". Um dia após a entrevista, o "Times" denunciou a prática de grampos ilegais do governo Bush e admitiu que segurou a notícia por um ano a pedido da Casa Branca, em mais um capítulo da intrincada relação entre mídia e poder. Leia a seguir trechos da entrevista.
 

Folha - Seu livro sobre o "New York Times" aborda amplamente a relação entre mídia e poder. Como o sr. vê a relação do jornal com o governo desde o 11 de Setembro?
Gay Talese -
A cobertura da guerra e do período que a antecedeu no "Times" é tão enganosa quanto o governo de que ela trata. O incidente Judith Miller é embaraçoso por reafirmar que repórteres em Washington às vezes ficam próximos demais do poder. O "Times" e outros grandes jornais freqüentemente enamoram-se de seu acesso ao poder e, sem sentir, viram apologistas dos órgãos do governo. Os editores buscaram se dissociar do que, inadvertidamente ou preconceituosamente, Miller escreveu, tornando-se porta-voz de neoconservadores ansiosos para invadir o Iraque. Mas ela não publicou seus artigos, só os escreveu. A culpa deve ir para o alto, inclusive para o próprio [Arthur] Sulzberger, publisher e dono do jornal. Fizeram de Miller um símbolo, mas há muitos outros que poderiam ter servido como estratégia do "Times" para sair do dilema de estar lado a lado com o governo, com a gangue de Bush. O "Times" ama o poder e tem muitas coisas que podem ser usadas pelo governo, muito mais do que gostaria de admitir.

Folha - Qual foi o maior pecado do jornal?
Talese -
Há alguns meses, participei de um debate com Sulzberger e disse a ele que o jornal cometeu um erro ao permitir que seus repórteres ficassem "embutidos" nas tropas americanas na invasão do Iraque. Quando se permite que jornalistas fiquem em tanques e tenham acesso a soldados, eles viram parte da missão. Ficam próximos demais dos que estão no Iraque para defender a política de Bush. E a informação que obtêm assim é irrelevante. O problema é estratégico: o "Times" deixou de ser objetivo por estar próximo demais do governo Bush.

Folha - O sr. diz que os erros do "Times" podem ter sido fruto de preconceito. De que tipo?
Talese -
Após o 11 de Setembro, o país entrou num clima de vigilância, de vingança, para usar um termo da época, de "choque e horror". A política externa americana é influenciada pelos neoconservadores, não é segredo. Muitos jornalistas tinham acesso a eles porque compartilhavam as percepções da Casa Branca de Bush, delegando a si próprio a tarefa de apoiar a guerra, embora, como jornalistas, devessem se dissociar de qualquer coisa ligada à propaganda do governo. Mas isso é difícil para jornalistas que amam o poder. Eles gostam de ter "fontes", um termo ridículo. Estou feliz de ver que algumas das fontes estão sendo identificadas, embora ainda não na medida em que eu gostaria. Todas deveriam ser identificadas, pois informação obtida de fontes que não querem se identificar geralmente é fornecida para reforçar uma posição e minar outra. É simplesmente lixo.


As pessoas não se rebelam. No jornalismo, jamais houve rebelião, no Congresso, também não

Folha - O sr. faz parte de uma minoria: os jornalistas americanos em geral consideram sagrado o direito de não revelar suas fontes, não é?
Talese -
Penso o contrário: as fontes devem ser expostas. No meu trabalho, sempre dei nome às fontes. E jamais aceitaria uma informação sob a condição de não dizer ao leitor quem é minha fonte. Alguns repórteres ficaram preguiçosos porque estão em Washington há tempos. Há repórteres demais em Washington. São como pássaros bicando a mesma informação. Comem, mastigam, cospem, engolem de novo.

Folha - O lema do "New York Times", considerado o melhor jornal do mundo, é: "All the news that's fit to print" (todas as notícias que cabem ser publicadas). Em quanto do que lê hoje no jornal o sr. crê?
Talese -
Não acredito em nada do que vem de Washington. Acredito na seção de esportes, a única parte honesta, e nos resultados do futebol. Também se pode acreditar na programação da televisão e na previsão do tempo, mas nem sempre. Os jornais estão preocupados com a sua sobrevivência. E com razão, pois o produto que vendem é muito ruim. Se a família Sulzberger gerisse a GM ou a Sony, os conselhos de administração já teriam se livrado dela.

Folha - Isso é fruto de incompetência ou de uma agenda política?
Talese -
O "Times" enamorou-se do poder. Os jornais sempre dizem que mantêm a publicidade separada da Redação, mas num país que tem um presidente poderosíssimo, como Bush, os publicitários acham que o que é bom para os negócios é bom para o governo e vice-versa. Há uma aliança. Quem escreve algo antipatriótico fica em desvantagem.

Folha - A caça às bruxas está de volta aos EUA?
Talese -
Hoje em dia, há uma certa caça às bruxas no país sobre ser desleal. Então, o que os americanos fazem? Colam adesivos nos carros de apoio às nossas tropas. Mas a maioria dos americanos não é afetada pela guerra. Quem é afetado são jovens que não têm dinheiro para ir à faculdade. Alistam-se no Exército porque as oportunidades econômicas são miseráveis. Poucos no poder têm filhos no Exército. Ao menos no Vietnã havia filhos de gente poderosa, de senadores, de reitores de universidades. Eles estavam lá porque havia o alistamento obrigatório. Os protestos contra a guerra eram liderados por estudantes que não queriam ir para o front. Mas eles também tinham parentes com poder. Hoje quem está no Exército são os desafortunados, os devedores. Gente que se alistou na Guarda Nacional porque ganhava US$ 200 (cerca de R$ 460) por mês e precisava de um complemento no orçamento. São todos voluntários. Eu sou a favor do alistamento obrigatório. As pessoas continuam morrendo, mas a maioria dos americanos não é afetada, pois os "grandes" estão ganhando, faturando. Não sei quanto isso vai durar, mas as pessoas não estão se rebelando. No jornalismo, jamais houve rebelião, no Congresso, também não. Hillary Clinton e os democratas jamais protestaram contra essa guerra. Eles temem ser rotulados de antiamericanos, antipatriotas. Nossa nação se tornou vítima de sua própria propaganda. Não há dissensão. Nós nos tornamos vítimas de uma farsa, de um governo que enganou o povo e a imprensa sobre as armas de destruição em massa no Iraque e a ligação entre Saddam Hussein e a Al Qaeda. Mas os jornalistas e donos dos veículos de mídia que se importam com a verdade deveriam ter checado, não poderiam ter acreditado nas mentiras do governo Bush.

Folha - Agora eles estão bem mais desconfiados, não é?
Talese -
Mas quem se importa agora? Deveriam ter checado as informações três anos atrás. Agora há todos esses mortos e feridos. Se tivesse havido alguma reportagem investigativa na época, se os jornais não tivessem permitido que a propaganda do governo fosse tão eficaz, talvez as coisas tivessem sido diferentes. O problema real é que o jornalismo fracassou. O governo mentiu e fracassou. É uma mancha para a história do jornalismo.

Folha - Há hoje nos EUA algum foco de dissensão?
Talese -
Não. Não há voz que possa competir com a Casa Branca de Bush. Eles têm [a secretária de Estado] Condoleezza Rice. Ninguém grita mais alto do que essa mulher. Ninguém é melhor na televisão do que [o secretário da Defesa, Donald] Rumsfeld. Ele devora qualquer jornalista. [O vice-presidente Dick] Cheney também. Não há ninguém forte o suficiente para fazer frente a eles. Essas pessoas sabem como usar a palavra. Eles seqüestraram a palavra. Seu uso da linguagem é tão eficiente que dão a impressão de que a guerra é justificada.

Folha - Como isso funciona?
Talese -
É como a grande igreja medieval, que intimidava os dirigentes seculares da Europa. Os grandes papas tinham um jeito de tornar sua mensagem tão profunda e sagaz que qualquer um que discordasse era infiel, era o demônio. Era o bem contra o mal, exatamente como temos hoje nos EUA, com mocinhos e bandidos. Isso é cômico, é como uma criança lendo história em quadrinhos: o mocinho de chapéu branco e o bandido de chapéu preto. Sua mensagem é clara e simples e por isso sempre prevalece.

Folha - O sr. diz que não há oposição hoje nos EUA. Por quê?
Talese -
Temos uma Presidência imperial, que cooptou a linguagem e o conceito de patriotismo de tal maneira que uma das únicas pessoas que representam a tradição de justiça e liberdade de pensamento dos EUA, Ramsey Clark [ex-secretário de Justiça dos EUA], é vilificado por defender Saddam Hussein em seu julgamento. Não estamos dando um julgamento justo a ninguém. É uma piada.

Folha - A oposição doméstica é fraca, mas a internacional persiste. Isso não tem influência?
Talese -
Essa oposição também foi minimizada, silenciada, trivializada. Como disse Rumsfeld, é a "velha Europa". O único país que faz frente aos EUA é a China, que também começa a ser vilificada.

Folha - Por que a qualidade da imprensa caiu nos EUA?
Talese -
Os jornalistas hoje têm muito mais estudo. Sua educação é melhor, freqüentam as melhores faculdades. Isso os fez ficar mais parecidos com as pessoas que estão no poder. Quando eu era jovem, era diferente. Todas as pessoas com as quais eu trabalhei quando comecei no "New York Times" eram das camadas mais baixas. Não vínhamos das escolas de elite, éramos "outsiders", víamos o mundo com ceticismo.

Folha - O sr. ainda se considera um "outsider"?
Talese -
Sim. Eu jamais seria um "embutido".


Leia a íntegra em http://www1.folha.uol.com.br/folha/mundo/ult94u90877.shtml

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