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ENTREVISTA DA 2ª
GAY TALESE
Para autor de clássico sobre o "New York Times", o maior jornal do mundo "enamorou-se do poder"
Bush anestesiou imprensa e anulou oposição, diz escritor
Jacqueline Lamra - 12.dez.05/Associated Press
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Manifestante solitária ergue cartaz na Filadélfia com a palavra "lies" (mentiras), em protesto contra a ocupação americana do Iraque, que já dura mais de dois anos |
MARCELO NINIO
DA REDAÇÃO
Não foi um ano fácil para o jornal mais influente do mundo. Em
outubro, o "New York Times" foi
obrigado a admitir falhas na condução do ruidoso escândalo de
vazamento de informações do governo Bush, que expôs a identidade de uma agente da CIA e levou
uma de suas principais repórteres, Judith Miller, a passar 85 dias
presa por não revelar sua fonte.
Miller já fora pivô de outro embaraço para o jornal ao escrever
reportagens que reforçaram a tese, mais tarde desmentida, de que
Saddam Hussein tinha armas de
destruição de massa, usada pelos
EUA para invadir o Iraque.
Para o escritor e jornalista americano Gay Talese, autor daquela
que é considerada a história definitiva do "New York Times", Miller é apenas o símbolo de uma série de fracassos éticos e administrativos que contaminaram boa
parte da imprensa americana.
Nascido em 1932 na pequena
ilha de Ocean City, Nova Jersey,
Talese foi um dos fundadores na
década de 60 da vertente conhecida como "New Journalism", que
usa a narrativa literária em textos
não-ficcionais.
Em entrevista à Folha, Talese foi
impiedoso com a imprensa e os
políticos de seu país, "vítima de
sua própria propaganda". Um dia
após a entrevista, o "Times" denunciou a prática de grampos ilegais do governo Bush e admitiu
que segurou a notícia por um ano
a pedido da Casa Branca, em mais
um capítulo da intrincada relação
entre mídia e poder. Leia a seguir
trechos da entrevista.
Folha - Seu livro sobre o "New
York Times" aborda amplamente a
relação entre mídia e poder. Como
o sr. vê a relação do jornal com o
governo desde o 11 de Setembro?
Gay Talese - A cobertura da
guerra e do período que a antecedeu no "Times" é tão enganosa
quanto o governo de que ela trata.
O incidente Judith Miller é embaraçoso por reafirmar que repórteres em Washington às vezes ficam
próximos demais do poder. O
"Times" e outros grandes jornais
freqüentemente enamoram-se de
seu acesso ao poder e, sem sentir,
viram apologistas dos órgãos do
governo. Os editores buscaram se
dissociar do que, inadvertidamente ou preconceituosamente,
Miller escreveu, tornando-se porta-voz de neoconservadores ansiosos para invadir o Iraque. Mas
ela não publicou seus artigos, só
os escreveu. A culpa deve ir para o
alto, inclusive para o próprio [Arthur] Sulzberger, publisher e dono do jornal. Fizeram de Miller
um símbolo, mas há muitos outros que poderiam ter servido como estratégia do "Times" para
sair do dilema de estar lado a lado
com o governo, com a gangue de
Bush. O "Times" ama o poder e
tem muitas coisas que podem ser
usadas pelo governo, muito mais
do que gostaria de admitir.
Folha - Qual foi o maior pecado
do jornal?
Talese - Há alguns meses, participei de um debate com Sulzberger e disse a ele que o jornal cometeu um erro ao permitir que seus
repórteres ficassem "embutidos"
nas tropas americanas na invasão
do Iraque. Quando se permite que
jornalistas fiquem em tanques e
tenham acesso a soldados, eles viram parte da missão. Ficam próximos demais dos que estão no
Iraque para defender a política de
Bush. E a informação que obtêm
assim é irrelevante. O problema é
estratégico: o "Times" deixou de
ser objetivo por estar próximo demais do governo Bush.
Folha - O sr. diz que os erros do
"Times" podem ter sido fruto de
preconceito. De que tipo?
Talese - Após o 11 de Setembro, o
país entrou num clima de vigilância, de vingança, para usar um termo da época, de "choque e horror". A política externa americana
é influenciada pelos neoconservadores, não é segredo. Muitos jornalistas tinham acesso a eles porque compartilhavam as percepções da Casa Branca de Bush, delegando a si próprio a tarefa de
apoiar a guerra, embora, como
jornalistas, devessem se dissociar
de qualquer coisa ligada à propaganda do governo. Mas isso é difícil para jornalistas que amam o
poder. Eles gostam de ter "fontes", um termo ridículo. Estou feliz de ver que algumas das fontes
estão sendo identificadas, embora
ainda não na medida em que eu
gostaria. Todas deveriam ser
identificadas, pois informação
obtida de fontes que não querem
se identificar geralmente é fornecida para reforçar uma posição e
minar outra. É simplesmente lixo.
As pessoas não se rebelam. No jornalismo, jamais houve rebelião, no Congresso, também não
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Folha - O sr. faz parte de uma minoria: os jornalistas americanos em
geral consideram sagrado o direito
de não revelar suas fontes, não é?
Talese - Penso o contrário: as
fontes devem ser expostas. No
meu trabalho, sempre dei nome
às fontes. E jamais aceitaria uma
informação sob a condição de não
dizer ao leitor quem é minha fonte. Alguns repórteres ficaram preguiçosos porque estão em Washington há tempos. Há repórteres
demais em Washington. São como pássaros bicando a mesma informação. Comem, mastigam,
cospem, engolem de novo.
Folha - O lema do "New York Times", considerado o melhor jornal
do mundo, é: "All the news that's
fit to print" (todas as notícias que
cabem ser publicadas). Em quanto
do que lê hoje no jornal o sr. crê?
Talese - Não acredito em nada
do que vem de Washington. Acredito na seção de esportes, a única
parte honesta, e nos resultados do
futebol. Também se pode acreditar na programação da televisão e
na previsão do tempo, mas nem
sempre. Os jornais estão preocupados com a sua sobrevivência. E
com razão, pois o produto que
vendem é muito ruim. Se a família
Sulzberger gerisse a GM ou a
Sony, os conselhos de administração já teriam se livrado dela.
Folha - Isso é fruto de incompetência ou de uma agenda política?
Talese - O "Times" enamorou-se
do poder. Os jornais sempre dizem que mantêm a publicidade
separada da Redação, mas num
país que tem um presidente poderosíssimo, como Bush, os publicitários acham que o que é bom para os negócios é bom para o governo e vice-versa. Há uma aliança. Quem escreve algo antipatriótico fica em desvantagem.
Folha - A caça às bruxas está de
volta aos EUA?
Talese - Hoje em dia, há uma
certa caça às bruxas no país sobre
ser desleal. Então, o que os americanos fazem? Colam adesivos nos
carros de apoio às nossas tropas.
Mas a maioria dos americanos
não é afetada pela guerra. Quem é
afetado são jovens que não têm
dinheiro para ir à faculdade. Alistam-se no Exército porque as
oportunidades econômicas são
miseráveis. Poucos no poder têm
filhos no Exército.
Ao menos no
Vietnã havia filhos de gente poderosa, de senadores, de reitores
de universidades.
Eles estavam lá
porque havia o
alistamento obrigatório. Os protestos contra a
guerra eram liderados por estudantes que não queriam ir para o
front. Mas eles também tinham
parentes com poder. Hoje quem
está no Exército são os desafortunados, os devedores. Gente que se
alistou na Guarda Nacional porque ganhava US$ 200 (cerca de R$
460) por mês e precisava de um
complemento no orçamento. São
todos voluntários. Eu sou a favor
do alistamento obrigatório. As
pessoas continuam morrendo,
mas a maioria dos
americanos não é
afetada, pois os
"grandes" estão
ganhando, faturando. Não sei
quanto isso vai
durar, mas as pessoas não estão se
rebelando. No
jornalismo, jamais houve rebelião, no Congresso, também não.
Hillary Clinton e os democratas
jamais protestaram contra essa
guerra. Eles temem ser rotulados
de antiamericanos, antipatriotas.
Nossa nação se tornou vítima de
sua própria propaganda. Não há
dissensão. Nós nos tornamos vítimas de uma farsa, de um governo
que enganou o povo e a imprensa
sobre as armas de destruição em
massa no Iraque e a ligação entre
Saddam Hussein e a Al Qaeda.
Mas os jornalistas e donos dos
veículos de mídia que se importam com a verdade deveriam ter
checado, não poderiam ter acreditado nas mentiras do governo
Bush.
Folha - Agora eles estão bem
mais desconfiados, não é?
Talese - Mas quem se importa
agora? Deveriam ter checado as
informações três anos atrás. Agora há todos esses mortos e feridos.
Se tivesse havido alguma reportagem investigativa na época, se os
jornais não tivessem permitido
que a propaganda do governo
fosse tão eficaz, talvez as coisas tivessem sido diferentes. O problema real é que o jornalismo fracassou. O governo mentiu e fracassou. É uma mancha para a história do jornalismo.
Folha - Há hoje nos EUA algum foco de dissensão?
Talese - Não. Não há voz que
possa competir com a Casa Branca de Bush. Eles têm [a secretária
de Estado] Condoleezza Rice.
Ninguém grita mais alto do que
essa mulher. Ninguém é melhor
na televisão do que [o secretário
da Defesa, Donald] Rumsfeld. Ele
devora qualquer jornalista. [O vice-presidente Dick] Cheney também. Não há ninguém forte o suficiente para fazer frente a eles. Essas pessoas sabem como usar a
palavra. Eles seqüestraram a palavra. Seu uso da linguagem é tão
eficiente que dão a impressão de
que a guerra é justificada.
Folha - Como isso funciona?
Talese - É como a grande igreja
medieval, que intimidava os dirigentes seculares da Europa. Os
grandes papas tinham um jeito de
tornar sua mensagem tão profunda e sagaz que qualquer um que
discordasse era infiel, era o demônio. Era o bem contra o mal, exatamente como temos hoje nos
EUA, com mocinhos e bandidos.
Isso é cômico, é como uma criança lendo história em quadrinhos:
o mocinho de chapéu branco e o
bandido de chapéu preto. Sua
mensagem é clara e simples e por
isso sempre prevalece.
Folha - O sr. diz que não há oposição hoje nos EUA. Por quê?
Talese - Temos uma Presidência
imperial, que cooptou a linguagem e o conceito de patriotismo
de tal maneira que uma das únicas pessoas que representam a
tradição de justiça e liberdade de
pensamento dos EUA, Ramsey
Clark [ex-secretário de Justiça dos
EUA], é vilificado por defender
Saddam Hussein em seu julgamento. Não estamos dando um
julgamento justo a ninguém. É
uma piada.
Folha - A oposição doméstica é
fraca, mas a internacional persiste.
Isso não tem influência?
Talese - Essa oposição também
foi minimizada, silenciada, trivializada. Como disse Rumsfeld, é a
"velha Europa". O único país que
faz frente aos EUA é a China, que
também começa a ser vilificada.
Folha - Por que a qualidade da
imprensa caiu nos EUA?
Talese - Os jornalistas hoje têm
muito mais estudo. Sua educação
é melhor, freqüentam as melhores faculdades. Isso os fez ficar
mais parecidos com as pessoas
que estão no poder. Quando eu
era jovem, era diferente. Todas as
pessoas com as quais eu trabalhei
quando comecei no "New York
Times" eram das camadas mais
baixas. Não vínhamos das escolas
de elite, éramos "outsiders", víamos o mundo com ceticismo.
Folha - O sr. ainda se considera
um "outsider"?
Talese - Sim. Eu jamais seria um
"embutido".
Leia a íntegra em
http://www1.folha.uol.com.br/folha/mundo/ult94u90877.shtml
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