São Paulo, domingo, 27 de janeiro de 2002

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"Problema é político, não religioso", diz feminista

FREE-LANCE PARA A FOLHA

Nawal Saadawi, 70, é talvez a feminista egípcia mais conhecida no mundo. Formada em psiquiatria, a autora de mais de 35 livros traduzidos em vários idiomas teve contato com a opressão feminina muito antes de atender mulheres vítimas de abuso.
Lutando há mais de 50 anos pelos direitos das mulheres, Saadawi teve parte na vitória feminista de 1995, quando o governo egípcio tornou ilegal a mutilação genital feminina nos hospitais públicos. A prática da circuncisão feminina, que não é islâmica, mas africana, vitimou a própria Saadawi quando ela tinha apenas seis anos.
Em sua biografia ela conta que, aos dez anos, escapou de um casamento forçado quando o pretendente descobriu que ela sabia ler e escrever. Presa por motivos políticos durante o regime de Anwar Sadat, a vida de Saadawi mostra que ser feminista num país islâmico é arriscado.
Em 1992, depois de ter sido informada de que seu nome estava na lista negra de fundamentalistas islâmicos, num país em que críticas à religião podem levar à morte, Saadawi decidiu ir morar nos EUA e lá ficou até 1997.
De volta ao Egito, a batalha contra o fundamentalismo continua. A seguir, leia os principais trechos de sua entrevista à Folha. (PS)

Folha - Como a sra. vê a situação do movimento feminista no islã atualmente?
Nawal Saadawi -
O feminismo no islã, assim como o feminismo no cristianismo, no judaísmo, na religião hindu e no budismo, ou em qualquer religião, não tem diferença. Porque todas as religiões tratam a mulher como sendo inferior ao homem. Quando dizemos "feminismo no islã", isso significa que existem mulheres muçulmanas que estão mudando a interpretação do islã para algo mais progressista. É como quando se diz "feminismo no cristianismo". Existem mulheres que estão tentando interpretar a Bíblia de maneira mais avançada.

Folha - A sra. é muçulmana?
Saadawi -
Meus pais eram muçulmanos. Eu sou uma livre pensadora, eu sou livre.

Folha - Entre os ocidentais, há a sensação de que o islã coloca a mulher em uma posição de inferioridade única entre as religiões.
Saadawi -
O cristianismo oprime a mulher. A Bíblia condena à morte tanto o adúltero quanto a adúltera. O Alcorão recomenda o chicoteamento de ambos.

Folha - Por que, hoje em dia, existem muçulmanos que continuam seguindo tais recomendações, enquanto cristãos e judeus não interpretam o Novo ou o Antigo Testamento nesse nível?
Saadawi -
Há os [judeus e cristãos" que seguem. Eu morei nos EUA por vários anos, e os cristãos fundamentalistas estavam matando médicos que faziam aborto. Os fundamentalistas judeus também oprimem a mulher. Os budistas fundamentalistas também, os hindus idem.

Folha - De fato, quando se comparam as Escrituras, o Alcorão parece, em alguns aspectos, mais evoluído. Por que o islã menos progressista está ganhando terreno?
Saadawi -
Porque isso está diretamente relacionado com o sistema político, não com a religião.

Folha - Se os políticos estão de fato manipulando a religião, a sra. acha que eles estejam perpetuando uma visão desigual do homem e da mulher e atribuindo isso ao islã?
Saadawi -
Exatamente. É o sistema político que está fazendo isso.

Folha - E por que razão eles estariam querendo manter as mulheres como seres inferiores?
Saadawi -
Eles querem manter todo o povo como inferior. Como não conseguem controlar todos, eles querem que os maridos controlem as mulheres, e aí o governo só controla o marido.

Folha - A sra. acha que a circuncisão seja traumática?
Saadawi -
Muito traumática.

Folha - Os árabes são circuncidados com que idade?
Saadawi -
Com poucos dias de vida, uma semana. Os garotos. As meninas a partir dos seis anos.

Folha - Qual a porcentagem de circuncisão de mulheres no Egito?
Saadawi -
A maioria. Dá para dizer que 50% nos centros urbanos e talvez 80% no interior [estudos oficiais do governo e da Organização Mundial da Saúde dão conta que mais de 95% das mulheres no Egito são circuncidadas".

Folha - No estudo "Mulheres no Islã e Mulheres na Tradição Judaico-Cristã", Sherif Abdelazim cita uma palestra sua em que feministas de outras religiões reagiram quando a sra. falou da imposição do véu nas outras religiões.
Saadawi -
Ah, é verdade. Teve muita mulher judia que ficou com raiva porque elas acham que o judaísmo é perfeito, pois não existe discriminação e a imposição do véu. O véu começou no judaísmo. O "Talmud" diz que o cabelo da mulher é como o seu corpo sem roupa. E o conceito de cobrir a cabeça: no judaísmo, elas usam peruca pela mesma razão. O véu começou no judaísmo porque a mulher é supostamente um corpo sem cabeça. E, quando elas casam, o homem se torna a sua cabeça. As freiras usam véu. Elas escondem o cabelo. São como as muçulmanas.

Folha - Mas se a sra. comparar estatisticamente a incidência do véu nas religiões...
Saadawi -
Isso não é uma questão de número, é de origem.

Folha - Mas, no presente, a maioria das mulheres judias segue uma interpretação mais progressista da Torá, enquanto a maioria das muçulmanas...
Saadawi -
É. Por causa do sistema político.

Folha - Dá para dizer que muçulmanos estão presos à Escritura?
Saadawi -
Não. O que dá para dizer é que os muçulmanos são governados por sistemas políticos opressivos.

Folha - E qual é o ponto comum entre os países islâmicos que os faz manterem essa mentalidade?
Saadawi -
É como qualquer outro país do Terceiro Mundo. Na África, no Brasil, na América Latina. Eu morei na América e eu não acho que lá as mulheres sejam liberadas. Até pelo jeito de se vestir. Porque o véu e a nudez são dois lados da mesma moeda. A maquiagem é um véu pós-moderno. Não é questão de democracia.

Folha - A sra. acha que existe democracia na América?
Saadawi -
Onde existem apenas dois partidos e é preciso ser bilionário para se eleger? Eu critico muito a democracia americana, inglesa, qualquer outra.

Folha - A sra. acha que, se as mulheres estivessem no poder, haveria democracia?
Saadawi -
Não. Nós tivemos a Margaret Thatcher no Reino Unido, e as mulheres perderam seus direitos. Não é uma questão de substituir homem por mulher, é preciso mudar a mentalidade.
Na França, o ministro da Educação proibiu o uso do véu nas escolas públicas. E na Dinamarca uma funcionária de um supermercado foi proibida de trabalhar usando o véu. O que você acha disso? Qual é a diferença entre o véu e um chapéu? Por que eles permitem chapéu e não véu? As pessoas deveriam ser livres para usar o véu.


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