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"Problema é político, não religioso", diz feminista
FREE-LANCE PARA A FOLHA
Nawal Saadawi, 70, é talvez a feminista egípcia mais conhecida
no mundo. Formada em psiquiatria, a autora de mais de 35 livros
traduzidos em vários idiomas teve contato com a opressão feminina muito antes de atender mulheres vítimas de abuso.
Lutando há mais de 50 anos pelos direitos das mulheres, Saadawi
teve parte na vitória feminista de
1995, quando o governo egípcio
tornou ilegal a mutilação genital
feminina nos hospitais públicos.
A prática da circuncisão feminina, que não é islâmica, mas africana, vitimou a própria Saadawi
quando ela tinha apenas seis anos.
Em sua biografia ela conta que,
aos dez anos, escapou de um casamento forçado quando o pretendente descobriu que ela sabia ler e
escrever. Presa por motivos políticos durante o regime de Anwar
Sadat, a vida de Saadawi mostra
que ser feminista num país islâmico é arriscado.
Em 1992, depois de ter sido informada de que seu nome estava
na lista negra de fundamentalistas
islâmicos, num país em que críticas à religião podem levar à morte, Saadawi decidiu ir morar nos
EUA e lá ficou até 1997.
De volta ao Egito, a batalha contra o fundamentalismo continua.
A seguir, leia os principais trechos
de sua entrevista à Folha.
(PS)
Folha - Como a sra. vê a situação
do movimento feminista no islã
atualmente?
Nawal Saadawi - O feminismo
no islã, assim como o feminismo
no cristianismo, no judaísmo, na
religião hindu e no budismo, ou
em qualquer religião, não tem diferença. Porque todas as religiões
tratam a mulher como sendo inferior ao homem. Quando dizemos
"feminismo no islã", isso significa
que existem mulheres muçulmanas que estão mudando a interpretação do islã para algo mais
progressista. É como quando se
diz "feminismo no cristianismo".
Existem mulheres que estão tentando interpretar a Bíblia de maneira mais avançada.
Folha - A sra. é muçulmana?
Saadawi - Meus pais eram muçulmanos. Eu sou uma livre pensadora, eu sou livre.
Folha - Entre os ocidentais, há a
sensação de que o islã coloca a mulher em uma posição de inferioridade única entre as religiões.
Saadawi - O cristianismo oprime a mulher. A Bíblia condena à
morte tanto o adúltero quanto a
adúltera. O Alcorão recomenda o
chicoteamento de ambos.
Folha - Por que, hoje em dia, existem muçulmanos que continuam
seguindo tais recomendações, enquanto cristãos e judeus não interpretam o Novo ou o Antigo Testamento nesse nível?
Saadawi - Há os [judeus e cristãos" que seguem. Eu morei nos
EUA por vários anos, e os cristãos
fundamentalistas estavam matando médicos que faziam aborto.
Os fundamentalistas judeus também oprimem a mulher. Os budistas fundamentalistas também,
os hindus idem.
Folha - De fato, quando se comparam as Escrituras, o Alcorão parece, em alguns aspectos, mais
evoluído. Por que o islã menos progressista está ganhando terreno?
Saadawi - Porque isso está diretamente relacionado com o sistema político, não com a religião.
Folha - Se os políticos estão de fato manipulando a religião, a sra.
acha que eles estejam perpetuando uma visão desigual do homem e
da mulher e atribuindo isso ao islã?
Saadawi - Exatamente. É o sistema político que está fazendo isso.
Folha - E por que razão eles estariam querendo manter as mulheres
como seres inferiores?
Saadawi - Eles querem manter
todo o povo como inferior. Como
não conseguem controlar todos,
eles querem que os maridos controlem as mulheres, e aí o governo
só controla o marido.
Folha - A sra. acha que a circuncisão seja traumática?
Saadawi - Muito traumática.
Folha - Os árabes são circuncidados com que idade?
Saadawi - Com poucos dias de
vida, uma semana. Os garotos. As
meninas a partir dos seis anos.
Folha - Qual a porcentagem de
circuncisão de mulheres no Egito?
Saadawi - A maioria. Dá para dizer que 50% nos centros urbanos
e talvez 80% no interior [estudos
oficiais do governo e da Organização Mundial da Saúde dão conta
que mais de 95% das mulheres no
Egito são circuncidadas".
Folha - No estudo "Mulheres no
Islã e Mulheres na Tradição Judaico-Cristã", Sherif Abdelazim cita
uma palestra sua em que feministas de outras religiões reagiram
quando a sra. falou da imposição
do véu nas outras religiões.
Saadawi - Ah, é verdade. Teve
muita mulher judia que ficou com
raiva porque elas acham que o judaísmo é perfeito, pois não existe
discriminação e a imposição do
véu. O véu começou no judaísmo.
O "Talmud" diz que o cabelo da
mulher é como o seu corpo sem
roupa. E o conceito de cobrir a cabeça: no judaísmo, elas usam peruca pela mesma razão. O véu começou no judaísmo porque a mulher é supostamente um corpo
sem cabeça. E, quando elas casam, o homem se torna a sua cabeça. As freiras usam véu. Elas escondem o cabelo. São como as
muçulmanas.
Folha - Mas se a sra. comparar estatisticamente a incidência do véu
nas religiões...
Saadawi - Isso não é uma questão de número, é de origem.
Folha - Mas, no presente, a maioria das mulheres judias segue uma
interpretação mais progressista da
Torá, enquanto a maioria das muçulmanas...
Saadawi - É. Por causa do sistema político.
Folha - Dá para dizer que muçulmanos estão presos à Escritura?
Saadawi - Não. O que dá para dizer é que os muçulmanos são governados por sistemas políticos
opressivos.
Folha - E qual é o ponto comum
entre os países islâmicos que os faz
manterem essa mentalidade?
Saadawi - É como qualquer outro país do Terceiro Mundo. Na
África, no Brasil, na América Latina. Eu morei na América e eu não
acho que lá as mulheres sejam liberadas. Até pelo jeito de se vestir.
Porque o véu e a nudez são dois
lados da mesma moeda. A maquiagem é um véu pós-moderno.
Não é questão de democracia.
Folha - A sra. acha que existe democracia na América?
Saadawi - Onde existem apenas
dois partidos e é preciso ser bilionário para se eleger? Eu critico
muito a democracia americana,
inglesa, qualquer outra.
Folha - A sra. acha que, se as mulheres estivessem no poder, haveria democracia?
Saadawi - Não. Nós tivemos a
Margaret Thatcher no Reino Unido, e as mulheres perderam seus
direitos. Não é uma questão de
substituir homem por mulher, é
preciso mudar a mentalidade.
Na França, o ministro da Educação proibiu o uso do véu nas escolas públicas. E na Dinamarca
uma funcionária de um supermercado foi proibida de trabalhar
usando o véu. O que você acha
disso? Qual é a diferença entre o
véu e um chapéu? Por que eles
permitem chapéu e não véu? As
pessoas deveriam ser livres para
usar o véu.
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