São Paulo, quinta-feira, 27 de janeiro de 2005

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IRAQUE SOB TUTELA

Maioria da população do bairro mais pobre de Bagdá apóia saída democrática pelo fim dos ataques

Sadr City, bastião da resistência, quer votar

KAREN MARÓN
ESPECIAL PARA A FOLHA, EM SADR CITY

"Sim, sim Moqtada. Viva o Exército de Al Mahdi!", dizem as pichações em tom desafiador que recobrem muros em Sadr City. ""O petróleo é para os iraquianos, não para os americanos", se lê em outras, enquanto em cada marquise, vitrine de loja, parada de ônibus ou qualquer outro espaço disponível se vêem fotos de Moqtada Al Sadr, seu pai, Mohammed-Mohammed, e o clérigo Al Hakim.
O segundo foi assassinado por Saddam; o terceiro, morto na cidade sagrada de Najaf num atentado suicida e irmão do líder do Conselho Supremo pela Revolução Islâmica, Abdul Aziz al Hakim.
É claro que quem não pode faltar é o homem mais importante dessas eleições: o grão-aiatolá Ali al Sistani, que, sem ser candidato, se tornou o indiscutível protagonista do pleito.
O personalismo que imperou durante o regime de Saddam Hussein se vê hoje nas ruas de Sadr City, com as homenagens feitas a seus clérigos. No bairro mais pobre de Bagdá -com dois milhões de habitantes que foram reprimidos por sua filiação xiita durante o regime do Partido Baath-, a população se prepara para as eleições de 30 de janeiro mergulhada no abandono ao qual já está acostumada, sem ter se resignado a ela.
A destruição dos esgotos provoca inundações nas ruas, que ficam intransitáveis; as calçadas recobertas de lixo alimentam as centenas de ovelhas vigiadas pelos pastores em pleno centro urbano. A falta de água por cinco dias seguidos, os cortes de energia elétrica e a falta de combustíveis não amedrontam as pessoas.
Apesar de ser vista como o alvo militar predileto dos grupos sunitas de inspiração wahabita e dos ex-agentes de Saddam ligados a eles, a maioria da população deixou claro que considera a democracia o melhor caminho para chegar ao governo.
Mesmo assim, os seguidores do jovem clérigo Moqtada -um misto de aiatolá Khomeini e Che Guevara e rival mais radical de Al Sistani- não vão se candidatar porque as consideram ""um logro dos americanos". Mas estão dispostos a votar quando for anunciado um cronograma para a retirada das tropas.
""O mais importante para nós é a segurança, porque estamos vivendo no terror", diz Yassim, 35, casado e com cinco filhos. ""Por trás dos atentados estão estrangeiros que vêm da Arábia Saudita, do Kuait e da Síria, não são iraquianos que fazem as operações suicidas. Por isso é importante votar, para que o medo não triunfe", diz o comerciante, que também atua como diretor de um centro eleitoral, trabalho que mantém em sigilo, por razões de segurança.
Como os outros xiitas, Yassim vai votar na Lista 169 da Aliança Unida Iraquiana, que tem o apoio oficial de Al Sistani, após o xeque Al Abudi ter dito que ""o grão aiatolá afirma a necessidade de que as eleições sejam realizadas na data prevista e apóia a lista 169".
A lista, que conta com os principais partidos xiitas, ""inclui personalidades muito importantes, xiitas, sunitas, curdos, cristãos e turcomanos. É a representação de muitas expressões do país", diz Yassim.
Enquanto jovens oferecem gasolina nas calçadas e crianças jogam futebol de mesa ou treinam com seus fuzis ou pistolas de brinquedo, as mulheres com suas ""abayas" -uma manta negra que cobre seu corpo e sua cabeça completamente- lutam para continuar cobrindo seus rostos, num gesto recorrente entre elas. Dizem não sentir medo, porque os protege o Exército de Al Mehdi, conhecido como ""milícias do Profeta", liderado por Moqtada e que opôs resistência violenta contra a ocupação.
""O Exército de Al Mehdi vigia a zona", diz Raad, exultante. ""Seus integrantes trabalham em segredo para proteger as pessoas das ameaças, e, embora não haja plano de segurança para as eleições, se houver riscos, ele cuidará de sua gente."
Enquanto alguns se preparam para votar, os seguidores do jovem clérigo não o farão. ""A maioria de nós não vai votar, não por sermos contra as eleições, mas porque as consideramos ilegítimas, já que os americanos estão por trás delas", diz Raad, erguendo um retrato de seu líder.
""Votar é boa idéia, mas, na prática, é complicado. Além disso, as urnas serão abertas na Jordânia, e nesse país não nos respeitam, porque seu rei é um agente que serve aos interesses americanos."
Embora sejam alvo dos atentados com carros-bomba e dos assassinatos seletivos mais sangrentos dos últimos tempos -o último deles diante da mesquita de Al Taf, no bairro de Um Al Maalif, que deixou 15 mortos e 40 feridos-, eles acusam: ""Por trás dos atentados está a CIA dos americanos, a Mossad e também o governo. Eles se encarregam das "operações negras" contra os xiitas, com o objetivo de desestabilizar para ficar com as muitas riquezas deste país".
Muitos dos xiitas (que compõem 60% da população iraquiana), excetuando os seguidores de Moqtada, estão dispostos a votar, nem que para isso ponham suas vidas em risco. Eles vão obedecer à fatwa (lei) decretada pelo líder espiritual, embora admitam ter medo. ""Mas temos de votar", repete Yassim, e Sadr City se prepara para fazê-lo.


A argentina Karen Marón é co-diretora do Curso Internacional para Jornalistas em Zonas de Conflito e Missões de Paz; cobriu conflitos na Colômbia, no Peru, no Oriente Médio e em Chipre.

Tradução de Clara Allain


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