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TRANSIÇÃO EM CUBA / A VOZ DO POVO
Futuro separa cubanos em classes sociais
Insatisfação com o regime é mais forte entre "novos-ricos", parcela entre 10% e 15% que trabalha com pesos conversíveis
Trabalhadores braçais e aposentados são os mais conformados com status quo; ninguém acredita em mudanças radicais sob Raúl
LAURA CAPRIGLIONE
ENVIADA ESPECIAL A HAVANA
O que vai acontecer em Cuba,
agora com Raúl Castro à frente
do governo? A reportagem da
Folha fez essa pergunta ontem
a trabalhadores braçais, estudantes universitários, gente
que trabalha com o turismo e a
um velho militante do Partido
Comunista Cubano.
"Nada", respondem entre colheradas de marmita as varredoras de rua sentadas nas escadarias da Catedral de San Cristóbal, igreja barroca no centro
histórico. E isso é bom ou
ruim? "É assim porque assim
é", disse uma delas. E só.
"Nada", afirma Carlos Sánchez, 21, do quarto ano de história da Universidade de Havana, que pede "uns CDs graváveis, uma memória flash, qualquer coisa". Ele diz que o governo só lhe permite fazer "turismo imaginário" e que, por isso,
sua saída é conversar com gente de fora do país, para saber o
que é moderno.
"Nada", diz o professor e comerciante Yavlev Corriente,
28, seis argolas de ouro "de verdade", como salienta, penduradas nas orelhas. Yavlev corre
atrás da reportagem para que
lhe entregue uma carta de acolhimento no Brasil -pré-requisito para sair de Cuba.
"Tudo vai melhorar", afirma
o livreiro Vicente Pimentel, 77,
"companheiro de armas" de
Raúl e Fidel Castro desde a revolução de 1959.
Economia do turismo
Em Cuba, o foco de descontentamento está nos ricos, em
quem tem ou trabalha com pesos conversíveis (cotados a U$
1,12 ou R$ 1,89, usados por turistas). E não nos pobres, como
acontece em geral. Pobres e velhos, principalmente, estão a
favor do status quo. O diagnóstico, feito por um diplomata
graduado em Havana, é a síntese da divisão de renda e expectativas vigente hoje em Cuba.
Calcula-se que algo entre
10% e 15% dos cubanos possam
ser classificados como emergentes ou "nova classe média",
fruto da economia do turismo.
Nas ruas, são vistosos. Andam com camisetas escritas em
letras douradas garrafais: "Dolce & Gabbana" (é a grife internacional preferida no país).
Têm dentes, pulseiras e colares
de ouro. Lotam as Tendas de
Recuperação de Divisas, administradas pelo Exército desde
2005 e que, no começo, eram
abertas apenas para turistas.
Hoje, essas lojas estão lotadas
de cubanos, para cuja liqüidez
em pesos conversíveis o governo faz vista grossa.
No hotel Habana Libre por
exemplo, existe uma dessas lojas, que vende tênis de marca.
Às 10h de ontem, sete pessoas
consumiam lá dentro. As sete
eram cubanas -quatro homens e três mulheres. "Não
tem nenhum estrangeiro
aqui?", perguntou a Folha.
"Não, é claro", responde Yavlev, 28. "Qual estrangeiro viria
para Cuba para comprar um tênis?" Xeque-mate.
"Desperdício de mim"
Yavlev é professor em uma
escola secundária cubana. Nas
terças, quartas e quintas-feiras,
dedica os 30 minutos iniciais
das aulas à discussão de notícias nacionais e internacionais.
Ontem, ele leu o notíciário do
"Granma" e do "Juventud Rebelde" sobre a eleição de Raúl
Castro e do novo Conselho de
Estado. Terminadas as aulas,
foi vender artesanato em Havana Velha, centro histórico.
A barraca de Yavlev, que é
privada, paga o equivalente a
R$ 350 por mês ao governo para funcionar. Mas Yavlev fatura
uma média de R$ 500 ao dia,
que divide com outra funcionária. Na saída da tenda, no final
da tarde, foi às compras, onde
arrematou um tênis Adidas pelo equivalente a R$ 389, uma
fortuna para o cubano médio.
O comerciante quer sair de
Cuba. "Se nada muda, mudo
eu", diz. Ele fala alemão, é professor de história e julga-se
preparado para viver fora. "Se
eu não sair daqui, queimo todo
meu dinheiro com essas bobagens. Não posso comprar carro,
não posso comprar uma casa e
o básico o governo me dá. É um
desperdício de mim", diz.
Os cubanos viajam proporcionalmente mais para o exterior do que os brasileiros. Vão a
congressos, vão para estudar
no exterior, vão ao que chamam de "missões internacionalistas", vão para participar
de campeonatos desportivos e
a festivais artísticos. Mas não
podem viajar com suas famílias, o que é fonte de frustração.
Vida digna
Quem não lida com o turismo, em geral os menos escolarizados e os aposentados, também afirma que nada mudará.
Mas, para eles, isso é bom. Os
mercados que operam em pesos cubanos (que valem 1/20 de
um peso conversível) vendem o
feijão preto a R$ 0,12 o quilo
-cota mensal racionada.
E se até dois anos atrás esses
mercados estavam desabastecidos, agora têm café, leite em
pó, pasta de dentes e sabonetes,
entre outros itens. Hoje, já não
é comum pessoas pedindo gêneros de higiene pessoal nas
portas dos hotéis.
"Onde mais uma pessoa que
não trabalha tem condições de
viver dignamente como aqui?",
pergunta o ex-major do Exército Vicente Pimentel, os olhos
cheios de lágrimas ao lamentar
o que está acontecendo com a
juventude.
"Estão envolvidos em tudo o
que é trambique. E roubam. Se
algo tem de mudar é aumentar
o controle sobre a juventude.
Mas sei que isso é difícil", diz
ele. Havana fermenta.
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