São Paulo, quarta-feira, 27 de fevereiro de 2008

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TRANSIÇÃO EM CUBA / A VOZ DO POVO

Futuro separa cubanos em classes sociais

Insatisfação com o regime é mais forte entre "novos-ricos", parcela entre 10% e 15% que trabalha com pesos conversíveis

Trabalhadores braçais e aposentados são os mais conformados com status quo; ninguém acredita em mudanças radicais sob Raúl

LAURA CAPRIGLIONE
ENVIADA ESPECIAL A HAVANA

O que vai acontecer em Cuba, agora com Raúl Castro à frente do governo? A reportagem da Folha fez essa pergunta ontem a trabalhadores braçais, estudantes universitários, gente que trabalha com o turismo e a um velho militante do Partido Comunista Cubano.
"Nada", respondem entre colheradas de marmita as varredoras de rua sentadas nas escadarias da Catedral de San Cristóbal, igreja barroca no centro histórico. E isso é bom ou ruim? "É assim porque assim é", disse uma delas. E só.
"Nada", afirma Carlos Sánchez, 21, do quarto ano de história da Universidade de Havana, que pede "uns CDs graváveis, uma memória flash, qualquer coisa". Ele diz que o governo só lhe permite fazer "turismo imaginário" e que, por isso, sua saída é conversar com gente de fora do país, para saber o que é moderno.
"Nada", diz o professor e comerciante Yavlev Corriente, 28, seis argolas de ouro "de verdade", como salienta, penduradas nas orelhas. Yavlev corre atrás da reportagem para que lhe entregue uma carta de acolhimento no Brasil -pré-requisito para sair de Cuba.
"Tudo vai melhorar", afirma o livreiro Vicente Pimentel, 77, "companheiro de armas" de Raúl e Fidel Castro desde a revolução de 1959.

Economia do turismo
Em Cuba, o foco de descontentamento está nos ricos, em quem tem ou trabalha com pesos conversíveis (cotados a U$ 1,12 ou R$ 1,89, usados por turistas). E não nos pobres, como acontece em geral. Pobres e velhos, principalmente, estão a favor do status quo. O diagnóstico, feito por um diplomata graduado em Havana, é a síntese da divisão de renda e expectativas vigente hoje em Cuba.
Calcula-se que algo entre 10% e 15% dos cubanos possam ser classificados como emergentes ou "nova classe média", fruto da economia do turismo.
Nas ruas, são vistosos. Andam com camisetas escritas em letras douradas garrafais: "Dolce & Gabbana" (é a grife internacional preferida no país). Têm dentes, pulseiras e colares de ouro. Lotam as Tendas de Recuperação de Divisas, administradas pelo Exército desde 2005 e que, no começo, eram abertas apenas para turistas. Hoje, essas lojas estão lotadas de cubanos, para cuja liqüidez em pesos conversíveis o governo faz vista grossa.
No hotel Habana Libre por exemplo, existe uma dessas lojas, que vende tênis de marca. Às 10h de ontem, sete pessoas consumiam lá dentro. As sete eram cubanas -quatro homens e três mulheres. "Não tem nenhum estrangeiro aqui?", perguntou a Folha. "Não, é claro", responde Yavlev, 28. "Qual estrangeiro viria para Cuba para comprar um tênis?" Xeque-mate.

"Desperdício de mim"
Yavlev é professor em uma escola secundária cubana. Nas terças, quartas e quintas-feiras, dedica os 30 minutos iniciais das aulas à discussão de notícias nacionais e internacionais. Ontem, ele leu o notíciário do "Granma" e do "Juventud Rebelde" sobre a eleição de Raúl Castro e do novo Conselho de Estado. Terminadas as aulas, foi vender artesanato em Havana Velha, centro histórico.
A barraca de Yavlev, que é privada, paga o equivalente a R$ 350 por mês ao governo para funcionar. Mas Yavlev fatura uma média de R$ 500 ao dia, que divide com outra funcionária. Na saída da tenda, no final da tarde, foi às compras, onde arrematou um tênis Adidas pelo equivalente a R$ 389, uma fortuna para o cubano médio.
O comerciante quer sair de Cuba. "Se nada muda, mudo eu", diz. Ele fala alemão, é professor de história e julga-se preparado para viver fora. "Se eu não sair daqui, queimo todo meu dinheiro com essas bobagens. Não posso comprar carro, não posso comprar uma casa e o básico o governo me dá. É um desperdício de mim", diz.
Os cubanos viajam proporcionalmente mais para o exterior do que os brasileiros. Vão a congressos, vão para estudar no exterior, vão ao que chamam de "missões internacionalistas", vão para participar de campeonatos desportivos e a festivais artísticos. Mas não podem viajar com suas famílias, o que é fonte de frustração.

Vida digna
Quem não lida com o turismo, em geral os menos escolarizados e os aposentados, também afirma que nada mudará. Mas, para eles, isso é bom. Os mercados que operam em pesos cubanos (que valem 1/20 de um peso conversível) vendem o feijão preto a R$ 0,12 o quilo -cota mensal racionada.
E se até dois anos atrás esses mercados estavam desabastecidos, agora têm café, leite em pó, pasta de dentes e sabonetes, entre outros itens. Hoje, já não é comum pessoas pedindo gêneros de higiene pessoal nas portas dos hotéis.
"Onde mais uma pessoa que não trabalha tem condições de viver dignamente como aqui?", pergunta o ex-major do Exército Vicente Pimentel, os olhos cheios de lágrimas ao lamentar o que está acontecendo com a juventude.
"Estão envolvidos em tudo o que é trambique. E roubam. Se algo tem de mudar é aumentar o controle sobre a juventude. Mas sei que isso é difícil", diz ele. Havana fermenta.


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