São Paulo, sábado, 27 de março de 2010

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CLÓVIS ROSSI

Assim na Terra como no céu


Ante denúncias, Vaticano usa como defesa o mesmo argumento utilizado pelo lulo-petismo no mensalão


QUANDO COBRIA a eleição do papa que viria a ser Bento 16, conversei informalmente com um cardeal-eleitor que chegou a figurar, ainda que tangencialmente, na lista (imensa) de "papabili".
Disse-me, a horas tantas, que, ao fim e ao cabo, quem decidiria a eleição seria o Espírito Santo, que sopraria ao ouvido de cada cardeal o nome certo para conduzir a igreja.
Creio que os católicos, pelo menos os não fundamentalistas, me perdoarão a irreverência de ter pensado que o Espírito Santo era um brincalhão. Só se explicaria a necessidade de sucessivas votações se Ele soprasse um nome ao ouvido de uns quantos cardeais, outro nome a um número menor, um terceiro ou quarto aos demais eleitores, em vez de dizer de uma boa vez o nome definitivo a todos.
Essa origem divina do papa torna ainda mais chocante o fato de "L'Osservatore Romano", a palavra oficial da igreja, ter recorrido à mesmíssima argumentação do lulo-petismo para reagir à reportagem do "New York Times" sobre a omissão de Joseph Ratzinger no caso do sacerdote Lawrence Murphy, que abusou de cerca de 200 crianças surdas.
Para o jornal do Vaticano, a reportagem não passa de "evidente e ignóbil intento de atingir, a todo custo, Bento 16 e seus colaboradores".
Não lembra a desonesta alegação dos petistas, inclusive da academia e da imprensa chapa-branca, de que a mídia conspirava contra o presidente Lula no episódio do mensalão? Todo o mundo sabia que a única conspiração era a dos fatos, tanto que o presidente se viu forçado a pedir publicamente desculpas, além de alegar que o PT fez "o que todo mundo faz", aludindo a um suposto caixa dois, que, de todo modo, "é coisa de bandido", conforme afirmou à época o ministro da Justiça, Márcio Thomaz Bastos.
O que espanta, no caso do Vaticano, é que havia alguma "rationale" no lulo-petismo, embora torpe: é óbvio que a oposição tentaria usar os fatos para atingir o governo, com fins eleitorais. No caso do papa, como a eleição é decidida pelo Espírito Santo, que tipo de interesse poderia haver em atingi-lo?
Anticlericalismo? Pode ser, mas não é ele, e sim os fatos, que podem atingir a igreja. Culpar o jornal é tentar quebrar o espelho para que não mostre o lado feio de uma "instituição que, por séculos, carregou os ideais de dignidade, amor e solidariedade na sociedade ocidental", como escreveu ontem nesta Folha Francisco Borba Ribeiro Neto, coordenador de projetos do Núcleo Fé e Cultura da PUC-SP.
É essa carga histórica, não o anticlericalismo, que torna mais chocante a sequência de episódios de abusos cometidos por sacerdotes. É também ela que torna indefensável o argumento de que os casos de pedofilia envolvendo religiosos são uma parcela ínfima dos abusos cometidos por outros atores.
Quando surgiram denúncias na Alemanha, um religioso chegou a calcular que, dos 210 mil casos de abusos denunciados no país desde 1995, só 94 (0,044%) envolveram pessoas da Igreja Católica.
Aritmeticamente, é verdade. Mas não pode servir de habeas corpus para os que são dirigidos pelos que conversam com o Espírito Santo, não souberam respeitar a santidade do corpo alheio e ainda ocultam os pecados culpando o espelho.


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