São Paulo, domingo, 27 de abril de 2008

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ARTIGO

A encruzilhada democrata

Escolher Hillary Clinton como candidata é se arriscar a enfurecer eleitorado democrata; preterir a senadora pode levar à perda de apoio em Estados-chave

CARLOS DA FONSECA
ESPECIAL PARA A FOLHA

A escolha do candidato democrata às eleições presidenciais americanas de 2008 é das mais disputadas que se tem notícia. Em 2004, John Kerry definiu a corrida logo após a chamada Superterça. Em 2000, Al Gore era vice-presidente e teve como único rival o senador Bill Bradley. Em 1996, Bill Clinton era presidente e não teve rivais.
Em 1992, Clinton, jovem governador de Arkansas, começou mal, mas deu a volta por cima, vencendo na Superterça. Há controvérsia sobre as conseqüências, para o Partido Democrata, do acirramento da disputa entre Barack Obama e Hillary Clinton. Via de regra, enumeram-se, entre as conseqüências positivas, a mobilização dos eleitores, a atenção da mídia e a arrecadação de fundos. A contrapeso, está a percepção de que a indefinição da escolha deve-se a situação que pode torná-la um risco para os interesses do partido em novembro: a insistência de um dos candidatos, com chances remotas de vitória, de aferrar-se à disputa.
Apesar da recente vitória na Pensilvânia, a situação de Hillary Clinton é muito difícil, e não é incomum ouvirem-se comentários que associam a probabilidade de sua eventual vitória a um "milagre".

Premissa frustrada
A estratégia da senadora foi traçada, em meados do ano passado, com base na premissa de um favoritismo indiscutível: acumular vitórias entre janeiro e a Superterça (em fevereiro, quando os eleitores de mais de 20 Estados votaram), de maneira a forçar os demais concorrentes à capitulação rápida.
Certa da vitória, Hillary ensaiava, já no começo do ano, discurso de candidata oficial, pairando sobre os correligionários nos debates do partido. Mas a súbita popularidade de Barack Obama frustrou a blitzkrieg da senadora, forçando-a a contínuas mudanças de estratégia, sem reverter a situação.
Depois dos resultados pífios da Superterça e de uma série de 11 derrotas consecutivas sofridas até março, a senadora logrou o que parecia uma reação, com as vitórias no Texas e em Ohio. A partir daí, abriu-se uma guerra de trincheiras entre os dois pré-candidatos.
Nas ultimas semanas, Hillary tentou de tudo para virar o jogo: mudou a aritmética das prévias, argumentando que venceu nos Estados com maior peso eleitoral; pressionou pela inclusão dos votos de Flórida e de Michigan, invalidados pelo partido porque os dois Estados desrespeitaram o calendário eleitoral; tentou convencer os superdelegados indecisos a votarem nela ou, ao menos, a não aderirem por enquanto ao seu rival; e inverteu o ônus do resultado das prévias na Pensilvânia, afirmando que uma derrota de Obama, desde sempre previsível (Hillary somava 33 pontos de vantagem no Estado, nas pesquisas feitas em dezembro), atestaria sua inelegibilidade em novembro.
Não obstante o empenho, a situação da senadora é das mais complicadas. Pelas contas de hoje, computados os votos da Pensilvânia, Obama teria cerca de 1.700 delegados e Hillary, 1.550. Entre 6 de maio e 7 de junho, serão disputados os últimos 408 delegados, distribuídos entre oito Estados e o território de Guam.
Para que Hillary supere Obama, terá que conquistar, na média geral, 65% da preferência dos eleitores, e ainda conseguir computar os votos da Flórida e de Michigan. Caso isso ocorra, passará Obama em delegados eleitos e terá argumentos para convencer os superdelegados indecisos a apoiá-la.
É improvável que isso aconteça. A disputa nos dois Estados com maior número de delegados tem Obama como favorito: vence na Carolina do Norte por 13 pontos percentuais e em Indiana por 5. Dos Estados restantes, é provável que Hillary ganhe em Porto Rico, Virgínia Ocidental e Kentucky, mas que perca em Oregon. Guam, Montana e Dakota do Sul são eleitoralmente irrelevantes.
A se manterem as tendências mostradas nas últimas pesquisas e respeitando-se a distribuição proporcional de delegados, ao final do processo Obama teria entre 1.880 e 1.900 delegados, e Hillary no máximo 1.800. Para derrotar seu adversário, a senadora dependeria do voto de boa parte dos cerca de 250 superdelegados indecisos, que teria de convencer a votar contra a escolha popular.
Isso dificilmente acontecerá. Votar contra o desejo dos eleitores dividiria o partido e desmobilizaria setores inteiros do eleitorado, especialmente a população negra, essencial nos Estados sulinos.

Memória de 1968
A memória coletiva dos democratas há muito metabolizou anticorpos contra essa possível tentação. Em 1968, a convenção de Chicago, composta exclusivamente por superdelegados, escolheu o vice-presidente Hubert Humphrey contra a opinião da maioria dos eleitores, que preferiam Eugene McCarthy. A reunião terminou em tumulto, com intervenção da polícia e vários presos.
Humphrey, desprestigiado, perdeu para Nixon. O conflito acabou levando à reforma que, na década de 1970, estabeleceu o atual sistema de primárias. Em tais circunstâncias, seria improvável que o partido arriscasse outra fratura, especialmente em ano que se anuncia alvissareiro, dada a rejeição ao presidente Bush e, por tabela, a fragilidade republicana.

Decisão difícil
Preterir Hillary, no entanto, também é decisão difícil. A senadora não apenas tem o apoio do eleitorado feminino, como vence entre latinos e, em geral, entre eleitores de baixa renda, o que seria fundamental, na disputa de novembro, para ganhar Estados-chave como Pensilvânia, Ohio e Flórida. Não por acaso, pesquisas recentes mostram que, no confronto direto com McCain, a senadora vence nesses três Estados. Obama perde nos três.
Confrontados com esse dilema, muitos superdelegados preferem esperar. A depender do resultado nas prévias de Indiana e Carolina do Norte (ambas em 6 de maio), a espera poderá esticar-se até a convenção democrata, em agosto. É com o que conta Hillary, que torce por um tropeço do rival. O problema é que, nesse meio tempo, o desgaste da disputa poderá levar a que tropecem os dois.


CARLOS DA FONSECA é mestre em políticas públicas pela Universidade Harvard e professor do Instituto Rio Branco


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