São Paulo, domingo, 27 de junho de 2004

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IRAQUE OCUPADO

Para estudioso, gastos na infra-estrutura devem ir para pequenos projetos e não grandes iniciativas

Reconstrução precisa mudar, diz analista

MÁRCIO SENNE DE MORAES
DA REDAÇÃO

A segurança e o direito de influir no futuro da nação são as duas questões mais importantes agora para os iraquianos. Se não conseguirem debelar a insurgência, os líderes do governo interino -que assume nesta semana- não terão nenhuma chance de dar alento à reconstrução do país.
A análise é de Frederick Barton, diretor do Projeto para Reconstrução Pós-Conflito, do Centro para Estudos Estratégicos e Internacionais, um reputado "think tank" de Washington, especialista em expansão da democracia e em manutenção da paz e professor da Universidade de Princeton.
Segundo ele, é preciso mudar a ideologia da reconstrução -privilegiando pequenos projetos em detrimento de grande iniciativas, que são mais vulneráveis- e a percepção popular do processo.
 

Folha - Como o sr. vê o período que se seguirá à entrega do poder?
Frederick Barton -
Acredito que ele venha a ser muito difícil para os iraquianos e para os estrangeiros que continuarem no país. Essencialmente, as pessoas que querem governar o Iraque se esforçam para restabelecer o antigo modelo de poder. Ou seja, tentam provar que são os líderes mais duros para obter respeito. Assim, esse período será complexo em dois aspectos: o da segurança pública e o da falta de condições para progredir na reconstrução por conta do alto nível de insegurança. Os incontáveis ataques recentes são um mau presságio do que deverá ocorrer no futuro próximo.

Folha - Quais são as precondições indispensáveis para que o governo interino possa dar alento ao processo de reconstrução do país?
Barton -
Antes de tudo, os iraquianos em geral têm de sentir-se seguros em seu país, o que não ocorre atualmente. Ademais, eles têm de sentir que têm grande influência sobre o processo político e sobre seu próprio futuro. Eles sabem que não controlarão o futuro do país a partir de julho, mas devem ter condições de influir realmente no que ocorrerá no Iraque. Sem dúvida, a segurança e o direito de exercer influência sobre o futuro da nação são as duas questões mais importantes agora.
Se conseguirem atingir esses objetivos de alguma forma, o que é pouco provável no futuro próximo, os líderes iraquianos terão, então, muito trabalho. Por exemplo, eles terão de garantir que o processo de seleção do governo que deverá assumir em janeiro não será interrompido, de remover da sociedade as forças que tentam intimidar os iraquianos, como as milícias que não aceitam a autoridade do governo central, e de inserir no mercado de trabalho o grande número de jovens desocupados do país.
Para tanto, os iraquianos precisarão de muita ajuda financeira internacional. Muito dinheiro já vem entrando no país e muito mais entrará a curto e médio prazos. Infelizmente, contudo, a maior parte desse dinheiro entra na forma de contratos distribuídos às grandes empresas, o que impede que esses fundos se tornem um verdadeiro multiplicador de empregos. Ademais, eles têm de pôr a indústria petrolífera em funcionamento, pois ela é uma importante fonte de receitas.

Folha - É possível controlar a insurgência a curto ou médio prazos?
Barton -
As autoridades americanas e iraquianas ainda estão muito longe desse objetivo. Trata-se, sem dúvida, do maior problema do país. Se a violência persistir, será impossível dar continuidade ao processo de reconstrução da sociedade iraquiana.

Folha - Quais foram as principais realizações da coalizão?
Barton -
Ela conseguiu livrar-se dos antigos líderes iraquianos, que eram fiéis a Saddam Hussein, e melhorar o nível de vida em ao menos metade do país, além de ter aberto um diálogo público sobre o futuro da sociedade iraquiana. A população tem muito mais liberdade para dizer o que quer. Além disso, a coalizão conseguiu religar o Iraque ao mundo.
No que tange à infra-estrutura, houve muitos progressos. Todavia o trabalho efetuado é muito vulnerável, pois a coalizão priorizou grandes projetos, que são muito mais fáceis de serem sabotados que projetos menores. Muitas escolas e diversos hospitais foram reconstruídos, e um número considerável de crianças voltou às aulas em certas áreas do país.
O problema é que esses projetos também são grandes e ficam expostos à violência da insurgência, o que é negativo. A coalizão também conseguiu envolver milhares de iraquianos nas estruturas administrativas de suas comunidades. Contudo ao menos cem deles já foram mortos. Tudo isso mostra que a segurança é crucial.

Folha - Os futuros dirigentes iraquianos devem, portanto, privilegiar pequenos projetos?
Barton -
Ante o grau de insegurança atual, isso é vital. Assim, se alguém destruir uma rede de energia elétrica ou um gerador que serve a 30 famílias, as pessoas ficarão bastante descontentes com isso e se sentirão compelidas a denunciar o infrator, o que não ocorre com grandes projetos, pois seus benefícios são pulverizados.
Num país como o Iraque, esse "policiamento" local feito pela própria população é primordial. É preciso, portanto, mudar a ideologia da reconstrução e a percepção popular do processo.

Folha - Quais foram os outros grandes erros da coalizão?
Barton -
O principal erro diz respeito à violência. Desde a queda do regime de Saddam, os soldados americanos deveriam ter mantido a ordem a qualquer custo, impedindo os saques e a bagunça que vimos no ano passado. Afinal, deixando de fazê-lo, a coalizão permitiu o surgimento de um ambiente generalizado de insegurança desde o início.
O segundo grande erro foi não permitir que os iraquianos liderassem o governo ou outros setores da sociedade civil. Com isso, os esforços de reconstrução transformaram-se numa iniciativa da coalizão, não dos cidadãos iraquianos, o que, obviamente, foi malvisto por uma parcela significativa da população local.


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