São Paulo, domingo, 27 de junho de 2004

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Velha prática, decapitar inimigos ressurge via internet

IGOR GIELOW
SECRETÁRIO DE REDAÇÃO
DA SUCURSAL DE BRASÍLIA

A decapitação de inimigos voltou à moda, agora travestida de espetáculo internético, como subproduto da "guerra ao terror" de George W. Bush. Mas Daniel Pearl, Nick Berg ou Kim Sun-il não são os primeiros, nem serão os últimos a tombar por um dos mais antigos métodos de execução conhecidos do homem.
Não há um registro exato para o surgimento da prática, mas provavelmente ela acompanhou a forja das primeiras espadas na Idade do Bronze (c. 3500 a.C). O motivo é banal: separar a cabeça do corpo é uma das formas mais eficazes e baratas de assassinato.
Há vários registros na antigüidade. No Egito, a famosa Paleta de Narmer, um hieróglifo datado de 3200 a.C., mostra decapitados em homenagem ao deus Horus.
A decapitação floresceu em diversas culturas, muitas vezes associada à religião. A simbologia do sangue é forte, como atesta a defesa de que ele carrega a alma, como diz o livro bíblico Levítico. A cosmogonia hindu é repleta de deuses a quem são oferecidos sacrifícios de sangue e cabeças, como Kali, deidade da noite.
Na Antigüidade Clássica, surgiu a noção de que seria uma forma "digna" de execução, por supostamente indolor, algo questionável, visto que as vítimas não podiam ser consultadas a respeito. Mas a idéia pegou, embasada pelo famoso historiador grego Xenofante (século 5º a.C.), em seu "Anabasis". Os romanos reservavam a prática aos nobres e ricos -ao povão sobravam as cruzes.
No ideário judaico-cristão, cabeças rolaram em abundância. Há a história de Judith, que seduziu o general assírio Holofernes no século 6º a.C. e o decapitou, salvando os judeus acossados por Nabucodonosor.
Exemplos ainda mais famosos: Golias, decapitado após ser morto por Davi com uma pedrada, e João Batista, cuja cabeça foi servida numa bandeja a Salomé.
A decapitação era corrente entre mongóis e outros ""bárbaros". Os celtas, hoje vistos como magos bonzinhos pelos "new agers", cavalgavam com cabeças dos vencidos penduradas.
Do outro lado do Atlântico, era forma de sacrifício entre os pré-colombianos. No sítio maia de Chichén Itzá (México), há esculturas de cabeças cortadas.
Na primeira expansão muçulmana, iniciada no século 7º, a decapitação de inimigos foi adaptada de costumes tribais. O famoso jurista Al Mawardi, da Bagdá de 1058, a defendeu como primeira medida a ser tomada contra infiéis citando Muhammad.
Quarenta anos mais tarde, cristãos e muçulmanos se enfrentaram nas Cruzadas. Nenhum lado poupou o pescoço do outro. Pátria-mãe do islamismo, a Arábia Saudita é hoje o centro da decapitação oficial no mundo: 53 execuções por espada em 2003.
De volta à Europa, a versão greco-romana de "morte digna" à nobreza indesejável virou norma. Os ingleses a usaram entre 1076 e 1747 e tiveram em Ana Bolena, segunda mulher do rei Henrique 8º, sua vítima mais famosa -morreu aos 29 anos, em 1536.
Mas foi do outro lado do canal da Mancha que o corte de cabeças atingiu status de política pública moderna. Pensando na tal "morte digna", democrática como a Revolução Francesa que a defendia, o médico Joseph-Ignace Guillotin criou em 1792 o instrumento que ganhou seu nome.
Nos séculos seguintes, os países europeus foram abandonando a pena de morte e a decapitação. A prática acabou associada a "selvagens" das colônias.
Ainda assim, no papel vigorou em locais como a Alemanha, até 1949. Nos EUA, só prosperou em lendas como a do cavaleiro sem cabeça de Sleepy Hollow.
Esse refluxo trouxe às novas gerações a impressão de que a decapitação era algo restrito à Ásia, como no Camboja de Pol Pot (anos 70), ou às guerras em Ruanda (1994) e Serra Leoa (2003). Nas Américas, Haiti e Brasil deram exemplos recentes.
Talvez o público "ocidental", que consome violência no cinema, no noticiário e no dia-a-dia, não se choque mais apenas com seqüestros como os ocorridos no Líbano na década de 80. É preciso algo mais: o horror gráfico, com artérias e veias jorrando sangue. De uma forma ou de outra, os casos recentes mostram a perenidade da decapitação.


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