São Paulo, domingo, 27 de junho de 2004

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ELEIÇÕES NOS EUA

Biografia de Clinton e títulos sobre os bastidores do governo Bush ganham importância central na campanha

Livro recupera prestígio na eleição dos EUA

CARLOS EDUARDO LINS DA SILVA
ESPECIAL PARA A FOLHA

A surpreendente ascensão de Howard Dean ao primeiro lugar entre os favoritos para a candidatura do Partido Democrata (de oposição ao governo Bush) parecia indicar como, graças à adesão de internautas, um líder sem quase nenhum lastro no establishment político poderia conquistar os votos da maioria do eleitorado.
De fato, o uso inteligente de blogs, Meetups e listas de endereços eletrônicos deu consistência a um movimento que em alguns instantes chegou a lembrar o entusiasmo de campanhas históricas como a de Eugene McCarthy que, em 1968, embora sem obter para o então senador a candidatura democrata, tirou o presidente Lyndon Johnson da disputa.
Mas, apesar da impressionante soma de recursos financeiros amealhada por meio de pequenas contribuições individuais solicitadas e recolhidas virtualmente pela rede, o ex-governador de Vermont não teve fôlego para passar nem pelos dois primeiros testes eleitorais, em Iowa e New Hampshire.
A hierarquia do Partido Democrata pressentiu que Dean poderia levá-lo a uma derrota fragorosa, do tipo da que Richard Nixon impôs a George McGovern em 1992, e cerrou fileiras em torno do aspirante mais tradicional entre os 11 que se haviam oferecido para desafiar George W. Bush, que ainda desfrutava de popularidade invejável. E John Kerry rapidamente se tornou o candidato das forças anti-Bush.
Nesta altura da campanha, quem aparentemente emerge como o meio de comunicação de massas mais influente da temporada eleitoral é o livro, o mais antigo e menosprezado de todos os instrumentos de marketing político.
Nesta semana, por exemplo, o lançamento de "Minha Vida", a autobiografia de Bill Clinton, foi o fato mais relevante do mundo político americano. As conseqüências da ressurreição do ex-presidente como fator eleitoral ainda terão de ser avaliadas.
Não se sabe nem mesmo com precisão o que Clinton almeja ao se recolocar na arena da opinião pública. No início do processo eleitoral, suas tropas se alinharam com o general Wesley Clark, numa frustrada tentativa de fazer do ex-comandante da Otan o adversário de Bush.
Meio a contragosto, Clinton e companhia aderiram a Kerry. Muitos analistas acreditam, no entanto, que o melhor cenário para Clinton seria a vitória de um Bush enfraquecido, que abriria as portas para a candidatura de sua mulher, Hillary, em 2008.
A turnê de Clinton pelo país para a promoção de "Minha Vida", no entanto, foi planejada tanto por ele quanto pelos assessores de Kerry com o objetivo de auxiliar a campanha do democrata. Um dos motivos fundamentais por que Al Gore não venceu o pleito de 2000 foi a decisão de alienar Clinton de sua estratégia para chegar à Casa Branca. Kerry não cometerá o mesmo erro.
A popularidade de Clinton junto a determinados segmentos da população (negros, pobres, liberais e jovens) ainda é impressionante. E a lembrança de sua Presidência -o período de maior prosperidade econômica do país desde a Segunda Guerra e em que as mentiras presidenciais se limitavam a detalhes de suas peripécias sexuais e não produziam morte ou destruição- é capaz de mobilizar muitos eleitores que se disponham a compará-la com o momento atual.
O livro de Clinton não foi o primeiro a ter impacto sobre a atual campanha. Em março, "Contra Todos os Inimigos", do ex-chefe do setor de antiterrorismo da Casa Branca, desencadeou processo de desconfiança em relação à competência de Bush no campo da segurança nacional que chegou ao seu auge nesta semana, quando, pela primeira vez, o presidente deixou de ser visto pela maioria dos americanos como a pessoa mais bem preparada para liderá-los nessa área.
A luta contra o terrorismo e a invasão do Iraque eram os principais ativos de Bush na campanha. Mas o depoimento de Richard Clarke, respeitado e insuspeito técnico, começou a transformá-los em passivos eleitorais. Outros livros, como "Desarmando o Iraque", de Hans Blix, ex-inspetor-chefe da ONU no Iraque, contribuíram para solapar o prestígio do presidente como líder guerreiro (houve quem chegasse a equipará-lo a Winston Churchill).
Entres os livros importantes na formação da opinião pública nesta campanha eleitoral, não se pode deixar de mencionar o do ex-secretário do Tesouro dos EUA Paul O'Neill, que desmascarou, com o depoimento de alguém que acompanhou intimamente as mais graves decisões dos primeiros anos da gestão Bush, muitas das lendas que davam suporte aos enormes índices de aprovação pública obtidos pelo presidente.

Câmeras indiscretas
Quando for escrita a história de como os meios de comunicação atuaram na eleição de 2004 nos Estados Unidos, um capítulo terá de ser dedicado às câmeras digitais e aos telefones celulares acoplados a elas.
Foi por meio delas que se obtiveram as imagens degradantes de maus-tratos impostos a prisioneiros iraquianos por soldados americanos. As fotos, enviadas a familiares de alguns desses militares, foram depois tornadas públicas e têm tido efeito devastador sobre a atual administração federal junto a grande parte da população.
Também foi assim que se produziram as fotografias de caixões de militares mortos no Iraque que o governo Bush proibira de serem feitas e exibidas. Postadas em blogs e sites da internet, chegaram aos jornais, que as veicularam.
O que leva o assunto de volta à internet, que, embora possa não ter tido ainda neste ano um papel fundamental no marketing eleitoral (a televisão provavelmente se mantém líder no setor), mesmo assim passou a ser um personagem importante no debate político.


Carlos Eduardo Lins da Silva, 51, mestre em comunicação pela Michigan State University (EUA), livre-docente e doutor em comunicação pela ECA-USP, é diretor da Patri Relações Governamentais & Políticas Públicas. Foi correspondente da Folha em Washington e é autor de "Marketing Eleitoral", da coleção Folha Explica (Publifolha).


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