São Paulo, segunda-feira, 27 de junho de 2011

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Bagdá tenta se equilibrar entre opressões

Oito anos após a queda do regime de Saddam, cidade convive com cisão entre área ultraprotegida e porção violenta

Região que concentra o poder tem facilidades e abastecimento; na área miserável só há energia durante 8 horas por dia

IGOR GIELOW
ENVIADO ESPECIAL A BAGDÁ

Todo dia cedo, quando pega as chaves de sua picape Trailblazer, Ahmed Hussein pensa em desistir.
"Eu sei o inferno que vou passar para chegar até o trabalho. A palavra que me vem à cabeça é opressão", diz o produtor de vídeo iraquiano de 29 anos.
A escolha do termo é precisa. Mais de oito anos após a derrubada do regime de Saddam Hussein pelos americanos, Bagdá é uma cidade espremida entre opressões complementares.
A pobreza e o clima envenenado após anos de conflito sectário que emana de Sadr City se entrechocam com o mundo de faz-de-conta da Zona Verde.

PODER
Hussein mora na última, o encrave ocidental que abriga o poder estrangeiro e iraquiano. Herdou um apartamento antigo de um tio, que hoje renderia US$ 3.000 de aluguel. "Mas não saio. Aqui tenho luz direto. Mas sei que é uma contradição defender o Iraque livre e usar isso", diz, mostrando a carteira de residente que lhe facilita a vida não só na Zona Verde, mas na cidade toda.
Fora da Zona Verde, a média de energia diária é de 8 horas. O suprimento acaba sendo feito por geradores, de pequenos modelos chineses fumacentos a gigantes turcos que fazem o chão tremer.
Não há calçada sem eles -ou sem lixo e alguma pessoa armada com algum uniforme.
Fios elétricos em chumaços são vistos em vários lugares em que os comerciantes racham a energia, como no restaurante de Mohammed Abdul na rua Rashid, no centro antigo, cruzando o rio a partir da Zona Verde.

ÁGUA PURIFICADA
Comendo um falafel com Hussein, bebendo a onipresente água purificada saudita, ele sofre da nostalgia típica de quem tem mais de 40 anos na cidade.
"Eu sou sunita, embora nunca tenha apoiado Saddam [que era deste ramo muçulmano, minoritário no Iraque]. Hussein aqui é xiita [maioria no país]. Nunca brigaríamos no passado, mas, agora, mal deixam nossas famílias conviverem", conta.
Ele mora na sobreloja de seu restaurante, tendo mudado em 2008 depois que o governo colocou barreiras de concreto dividindo sua rua da vizinhança xiita no bairro de Tahal (zona leste).
As barreiras são cicatrizes permanentes da turbulência pós-Saddam. Um belo negócio para gente como o chefão da região autônoma do Curdistão, Massoud Barazani, cujas empresas fornecem um modelo de concreto reforçado com 4 metros de altura por até US$ 3.000 a peça. São milhares em toda a Bagdá, escondendo mesquitas centenárias e criando labirintos perto de prédios oficiais e ocupados por estrangeiros.
Não que não haja motivo, ainda que a violência tenha caído. A ONG Iraq Body Count, que sistematiza estatísticas, contava em 2006 e 2007 cerca de 70 mortes diárias por ataques e conflitos no Iraque, a maior parte em Bagdá. Em 2011, são 12 ""mas os ataques são diários.
Os americanos dizem que foi o aumento de tropas entre 2007 e 2008, os iraquianos afirmam que os xiitas radicais baseados em Sadr City se deram por satisfeitos após controlar quase 2/3 da capital à custa de muito sangue.
Mas o perigo continua, como lembram as barreiras e pontos de controle. Na quinta passada, Hussein demorou uma hora para cruzar os 4 km até a Academia Iraquiana de Belas Artes, onde trabalha por US$ 700 mensais (o resto de sua renda vem de serviços por fora).

"PISTOLINHA"
Passou por 12 checagens. Em duas, soldados checaram documentos. Em quatro, policiais só fizeram perguntas e apontaram "pistolinha" que, dizem, detecta explosivos sob o carro (dizem os locais também que foi uma compra superfaturada em mais de 1.000% feita em Dubai, e que o negócio não funciona). Em uma, um segurança o fez abrir o porta-malas. Nas outras, um sorriso bastou.
O trânsito, infernal, torna-se impraticável pelo descumprimento de regras básicas e pelo fato de que muitos dos guardas de trânsito são soldados armados. Os bloqueios militares sempre têm um jipe blindado Humvee fornecido pelos americanos.
A Folha viu mais de uma vez fuzis sendo apontados para apartar brigas entre transeuntes com carrinhos, taxistas impacientes e a miríade de carros ditos "oficiais".
Já os americanos, que para gente como Hussein e Abdul são os culpados pelo caos instalado, são invisíveis em terra ""exceto quando há algum comboio.
Mas invariavelmente estão no céu, no intenso tráfego de helicópteros militares. "É isso. Eles acham que acabaram seu serviço e só vão ver a confusão lá de cima", afirma Hussein.


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