São Paulo, domingo, 27 de agosto de 2006

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Cerco mergulha palestinos na pobreza

Desgoverno e asfixia econômica já levaram o primeiro-ministro Ismail Haniyeh a levantar a possibilidade de dissolver a ANP

Racionamento de alimentos e eletricidade em Gaza se tornou rotineiro; salários dos funcionários estão atrasados há sete meses

MARCELO NINIO
DA REDAÇÃO

A guerra entre Israel e o Hizbollah no Líbano ofuscou a grave crise que se aprofunda a cada dia nos territórios palestinos. A situação, que tornou-se crítica com a chegada ao poder do grupo terrorista Hamas, nas eleições de janeiro, piorou depois do seqüestro do soldado Gilad Shalit, no fim de junho, que desencadeou uma ampla ofensiva militar israelense na faixa de Gaza e na Cisjordânia.
O desgoverno e a asfixia econômica chegaram a tal ponto que o premiê Ismail Haniyeh, membro do Hamas, disse ao Parlamento que é preciso considerar a possibilidade de dissolver a Autoridade Nacional Palestina (ANP) e entregar o controle de Gaza e da Cisjordânia de volta ao comando militar israelense. Foi a primeira vez que um alto funcionário palestino tocou no assunto.
Criada em 1994 por um acordo de paz com Israel, a ANP foi concebida para ser um governo de transição até o estabelecimento do Estado palestino independente. Mas essa perspectiva tornou-se distante com a eleição do Hamas.
A advertência de Haniyeh foi motivada pela prisão do presidente do Parlamento, Aziz Dweik, mais um dos vários políticos palestinos detidos por ligação com uma "entidade terrorista". Além de Dweik, estão presos quatro membros do gabinete e 28 deputados do Hamas. Israel também congelou o repasse dos US$ 60 milhões mensais em impostos palestinos. Mais de 200 palestinos já morreram na atual ofensiva.

Modelo sul-africano
A idéia de dissolver a ANP não é nova, mas só agora ocupa o centro do debate político palestino. Nos anos 90, um grupo de intelectuais palestinos encabeçados por Edward Said defendeu a desobediência civil contra a ocupação israelense. O modelo eram os protestos antiapartheid que abriram caminho para a chegada ao poder da maioria negra na África do Sul.
Com o governo palestino do Hamas imobilizado pelo cerco israelense e pelo boicote financeiro internacional, muitos palestinos passaram a apoiar a iniciativa. "Precisamos simplesmente aceitar que estamos sob regime militar", disse recentemente ao "Wall Street Journal" o influente editor do jornal palestino "Al-Hayat Al-Jadida", Hafez Barghouti. "Devemos recorrer à desobediência civil, queimar nossas carteiras de identidade e lutar até que obtenhamos nossos direitos."
Com os salários dos servidores atrasados sete meses e o bloqueio militar limitando o acesso ao mercado de trabalho israelense, principal fonte de renda dos palestinos, a situação é miserável. O "mecanismo temporário" criado pela União Européia para enviar ajuda aos palestinos sem passar pelo Hamas fez chegar cerca de US$ 135 milhões nos territórios nos últimos dias. Mas, considerando-se que a despesa mínima da ANP com salários chega a US$ 100 milhões por mês, o mecanismo da UE é só um paliativo.
O racionamento de alimentos e eletricidade em Gaza tornou-se rotina. "Só temos 14 horas de eletricidade por dia, divididas em dois períodos. Sete horas com e sete sem. Você pode imaginar os problemas causados por isso", diz Wael Alqarra, que trabalha para uma organização de direitos humanos na Cidade de Gaza.
Se o movimento pela dissolução da ANP cresce, muitos palestinos ainda resistem à idéia, por achar que ela só serve para reforçar a tese do governo de Israel de que não tem um parceiro para a paz. "Em vez de discutirmos o fim da ANP, nós deveríamos buscar meios de fortalecer nossas instituições", diz Saeb Erekat, principal negociador palestino antes da vitória do Hamas. "O público palestino está cansado de saber que o principal objetivo de Israel é destruir a ANP."
Turbulências no governo palestino, porém, também têm conseqüências indesejadas para Israel, que não tem a ganhar com o caos e a radicalização nos território vizinhos. Os planos do premiê israelense, Ehud Olmert, de repetir na Cisjordânia a retirada unilateral efetuada por Ariel Sharon em 2005 em Gaza também deverão ser revistos. O fim da ocupação israelense de Gaza, após 38 anos, mostrou que a retirada, por si só, não garante a estabilidade.
"A dissolução da ANP será um duro golpe para os palestinos moderados, pois servirá como prova de que os canais pacíficos e políticos fracassaram em promover a causa nacional palestina", lembrou Dhalia Shaham, analista do centro de estudos israelense Reut, no jornal "Jerusalem Post". "Além disso, o caos na ANP crescerá, e os incentivos para um cessar-fogo desaparecerão."


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