São Paulo, sábado, 27 de novembro de 2004

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IGREJA

Pesquisador alemão revela que Vaticano liberou livro de Hitler sob o argumento de que autoridade estatal "vem de Deus"

Meandros da censura católica vão à internet

CAROLINA VILA-NOVA
DA REDAÇÃO

Mantidos em sigilo ao longo de quatro séculos, segredos do Index Librorum Prohibitorum (Índice de Livros Proibidos) da Igreja Católica -a mais ampla iniciativa censora do Vaticano desde a Inquisição- estão prestes a ser revelados na internet graças à iniciativa de pesquisadores alemães.
Liderado pelo professor Hubert Wolf, da Universidade de Münster, um time de historiadores vasculha documentos recém-publicados para revelar os livros analisados e o debate na igreja sobre por que proibi-los ou liberá-los. A idéia é colocar essas informações numa base de dados on-line a partir de 2005. O endereço eletrônico ainda não foi divulgado.
"A censura não funcionava como um "big brother". Havia fortes discussões, opiniões de especialistas, opiniões contrárias de outros especialistas, brigas e intrigas - tudo por causa da questão sobre se determinado livro deveria ser indexado ou não", disse por e-mail o professor Wolf à Folha.
"Por mais de 400 anos, Roma monitorou todo o mercado editorial e revisou as publicações mais importantes", afirmou Wolf. "Até hoje, sabíamos apenas os livros que foram proibidos e podiam ser encontrados no Index. Ninguém sabia nada sobre os livros aprovados na revisão, já que as liberações nunca eram publicadas."
Os pesquisadores descobriram, por exemplo, que os censores papais travaram debates acalorados sobre o livro "A Cabana do Pai Tomás", da americana Harriet Beecher Stowe, publicado pela primeira vez em 1852. O primeiro especialista consultado sugeriu a proibição da obra, já que havia sido escrita por uma mulher protestante e, além disso, pregava idéias abolicionistas, consideradas revolucionárias.
"Isso levou a brigas ferrenhas na congregação", diz Wolf. Um segundo especialista foi chamado e defendeu a liberação do livro com base na teologia da criação, segundo a qual todos os seres humanos -incluindo escravos negros- são filhos de Deus.
"O papa concordou com a segunda opinião, e o livro não foi proibido", conta o pesquisador.
Outro livro liberado foi o polêmico "Minha luta", de Adolf Hitler. "Eles argumentaram que Hitler havia sido legitimamente eleito e então aplicaram a carta de são Paulo aos romanos, capítulo 13, que diz que toda autoridade estatal vem de Deus e deve ser obedecida", explica Wolf.
O Índice de Livros Proibidos começou em 1542 numa tentativa da Inquisição de combater a onda de livros produzida pela Reforma Protestante. A censura seguiu até 1967, tendo sido o filósofo francês Jean-Paul Sartre (1905-1980) um dos últimos alvos.
"A doutrina da Igreja Católica tinha de ser protegida, e católicos tinham de evitar uma "infecção" pelo vírus do protestantismo escondido nos livros", diz Wolf.
Obras consideradas perigosas podiam ser denunciadas ao Vaticano por uma autoridade da igreja, como um bispo, e também por leigos. "Grande importância era dada a relatos enviados por um chefe de Estado católico por via diplomática", diz o professor.
A decisão final sempre cabia ao papa, que divulgava um decreto com as proibições. A cada década, uma lista oficial era compilada e republicada. Católicos não podiam ler ou possuir os livros indexados, e editoras católicas não tinham permissão para imprimi-los. A pena para quem desobedecesse a norma era a excomunhão.
Apesar de o foco inicial ter sido o protestantismo, a censura de Roma não ficou restrita a livros teológicos ou filosóficos. "A intenção era controlar o mercado de livros totalmente", diz Wolf. Com o tempo, a ênfase mudou para livros feitos por católicos que, na visão da igreja, desviavam da verdadeira doutrina.
Os pesquisadores se surpreenderam ao descobrir que, apesar de a Inquisição ter processado Galileu no século 17 por afirmar que a Terra girava ao redor do Sol, o Vaticano nem chegou a discutir a "Origem das Espécies" (1859), de Charles Darwin, tampouco as obras de Sigmund Freud.
"A avaliação dos arquivos mostra que a igreja tolerava hipóteses das ciências naturais na maioria dos casos e só interferia quando havia uma contradição entre as visões científicas e a verdade dogmática ou bíblica", afirma Wolf.


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