|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
ANÁLISE
Haiti: pedaço e inspiração para África no Caribe
DO ENVIADO A PORTO PRÍNCIPE
É comum dizer que o Haiti
"não pertence" ao continente
americano e que, na verdade, o
país caribenho é um pedaço da
África no hemisfério Ocidental.
Há muito de verdade nisso.
Proporcionalmente, existem
até mais negros no Haiti (95%)
do que na África do Sul (80%),
por exemplo.
Em desenvolvimento humano, a realidade dos haitianos é
compatível com a africana. No
ranking anual elaborado pela
ONU, o Haiti ocupa o 149º lugar, à frente de 31 países africanos e atrás de outras 20.
Toda a paisagem urbana africana está firmemente implantada por aqui: mulheres equilibrando carga na cabeça, porcos
passeando nas ruas, táxis com o
vidro dianteiro rachado, vendedores sem troco, crianças com
manchas de desnutrição no
couro cabeludo.
Paralelo impreciso
Mas há algo de inadequado
na comparação.
Em primeiro lugar, não há
uma única África, assim como
não há um Terceiro Mundo
apenas. Existe uma África, sobretudo no centro e no sul do
continente, que acharia profundamente injusta uma comparação com o Haiti. Uma África que tem um embrião de classe média e que poderia se virar
para os haitianos e perguntar:
onde está a sua?
Em diversos países africanos,
há pelo menos bolsões de conforto e um esboço de mercado
consumidor. Muito localizado,
mas perceptível.
Aqui não, e, segundo me relatam, isso não pode ser posto
apenas na conta do terremoto.
O desastre só veio piorar o que
-todos achavam- não tinha
como ficar pior.
A última década foi de crescimento robusto em vários cantos da África, puxado por alta
nos preços de commodities.
Em alguns lugares -surpresa-
existem inclusive boas práticas
públicas.
Em cidades como Nairóbi
(capital do Quênia), Dar-es-Salaam (Tanzânia) ou Campala
(capital de Uganda), há negócios funcionando, advogados e
engenheiros trabalhando e
shopping centers sendo erguidos em meio à miséria predominante.
Ilhas de excelência e algo de
um Estado que funciona, portanto.
Já a sensação predominante
no Haiti é a de que não há para
onde escapar, com terremoto
ou sem terremoto.
Sim, há uma outra África que
se aproxima mais do Haiti, a
África que passou nos anos recentes por turbulência comparável -República Democrática
do Congo, Guiné-Bissau ou
Serra Leoa.
Nestes países, a sensação é a
mesma: desolação.
Os haitianos podem responder com alguns fatos: nunca
houve um genocídio em seu
país, e as crises de fome não se
comparam às de uma Etiópia.
Sobretudo, podem se consolar na história.
O Haiti foi a primeira república negra, 150 anos antes de
outras surgirem na África. Sua
revolução serviu de inspiração
para o movimento da "negritude", a base ideológica da descolonização africana.
O Haiti pode ser considerado
um pedaço da África. Mas a
África também tem em si um
pedaço do Haiti.
(FÁBIO ZANINI)
O autor é jornalista formado pela Escola de Comunicações e Artes da USP, com mestrado em
relações internacionais pela School of Oriental
and African Studies (Soas), da Universidade de
Londres, e titular do blog "Pé na África", hospedado na Folha Online e que deu origem ao livro
homônimo, publicado pela Publifolha no ano
passado
Texto Anterior: Pacto: Brasil e França querem plano conjunto para reerguer Haiti Próximo Texto: Crise no BC argentino chega ao Congresso Índice
|